Fugas - Vinhos

Manuel Roberto

Legado, um vinho que ressuma sol e pedras

Por Manuel Carvalho

Quinta edição do grande vinho da vinha do Caêdo está a chegar. Um monumento a um lugar e à memória de um Douro antigo.

Os vinhos, dizem os grandes enólogos e sabem-no até os mais modestos apreciadores, são antes de tudo a expressão da bondade de uma certa vinha, instalada num certo lugar e consequência de um certo num ano climático. Quem um dia visitar a obra-prima da natureza que é Quinta do Caêdo, perto da margem esquerda do Douro, na freguesia de Ervedosa, tem, por isso, muito mais possibilidades de perceber a fundo o que é, o que vale e o que representa o vinho com a marca Legado. 
Uns oito hectares de videiras com mais de um século, retorcidas pelo tempo, instaladas em muros de xisto frágeis e irregulares, produzem um absoluto monumento à memória do Douro. Estão lá castas da moda como a dupla de tourigas (Nacional e Franca), mas estão lá também variedades antigas, de um tempo em que a mistura era a regra de ouro dos produtores, como a Tinta da Barca ou a Donzelinho.

É nesta vinha belíssima e misteriosa que desde 2008 a Sogrape faz o Legado. A haver um objecto que simbolizasse o compromisso do patriarca da empresa, Fernando Guedes, com os seus descendentes, que fosse uma vinha antiga, estudada com a ciência de hoje e protegida com o cuidado que merecem as coisas permanentes. Como uma vinha extraordinária dá origem a vinhos extraordinários, o enólogo Luís Sottomayor limita-se a colher “o que a natureza nos dá”. Basta fazer as operações agrícolas de rotina e, na vindima, vindimar com uns dias de antecipação os cachos das zonas mais baixas e mais expostas do Caêdo. Não é difícil: as videiras velhíssimas daqueles oito hectares preservados ao longo de gerações produzem, em média, meio quilo de uvas cada uma. Dá para imaginar a sua estrutura, concentração e complexidade?

O Legado, vinho com que a Sogrape pretende simbolizar a dimensão familiar do seu projecto empresarial e, ao mesmo tempo, a sua ligação ao mundo rural, carrega consigo a condição exclusiva da sua origem — aquela vinha nas margens da ribeira do Caêdo. É como que um manifesto de autenticidade dos vinhos tranquilos do Douro num tempo em que o deslumbramento com as modas internacionais, a mania da padronização ou a cedência aos gostos doces, frutadinhos e redondos ainda aprisiona e anula, por culpa de tantos enólogos deslumbrados, a extraordinária diversidade e autenticidade dos terroir durienses — e de outras regiões. O Legado é um vinho tão único como a vinha que lhe dá origem e a conservação dessa fidelidade é o maior elogio que se pode fazer aos seus criadores.

O Douro rodeado de arbustos como a esteva ou o rosmaninho está presente nos seus aromas de forma intensa e clara. A fruta madura, deliciosa e fina, ajusta-se a esse pano de fundo aromático onde se pressente também uma nota judiciosa de barrica. Há sensações um pouco mais remotas que sugerem especiaria e chocolate branco. Depois, a este prodígio de complexidade no nariz, chega o impacte assertivo e delicioso da prova de boca. Mantendo a sedosidade dos seus antecessores, esta edição do Legado (2012 foi um ano temperado) revela uma estrutura mais firme e uma sensação de frescura ácida mais pronunciada e uma textura talvez mais complexa.

--%>