Fugas - restaurantes e bares

Sabores das Descobertas num espelho d’água à beira Tejo

Por Alexandra Prado Coelho ,

Um luso-angolano e uma brasileira recuperaram um dos poucos edifícios sobreviventes da Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa, e criaram um local de encontro de culturas, com música, arte, residências artísticas e uma gastronomia muito especial. Visita ao Espaço Espelho d'Água.

“Um enorme espelho de água foi construído entre o Tejo e a Avenida da Índia. A meio deste espelho está situado um Restaurante e Casa de Chá; dos lados, pavilhões para Cervejaria, Gelados e Café. Teatro das atracções náuticas, o recinto do Espelho de Água é cheio de beleza e frescura”. Era assim que, em Julho de 1940, a “Revista dos Centenários” (reproduzida no blogue Restos de Colecção) anunciava o nascimento de um novo espaço para actividades lúdicas, projectado pelo arquitecto António Lino, na Exposição do Mundo Português, que aconteceu entre Junho e Dezembro daquele ano, na zona de Belém, em Lisboa.

Passados mais de 75 anos, quase nada resta dessa exposição, mas o edifício do Espelho d’Água continua no mesmo lugar, junto ao Padrão dos Descobrimentos e ao outro sobrevivente da década de 40, o Museu de Arte Popular. Ao longo dessas sete décadas, viveu vidas muito diferentes, mas agora parece ter regressado a alguma da sua antiga glória. 

Foi em Setembro de 2014 que o luso angolano Mário Almeida e a brasileira Mona Camargo tomaram conta do espaço, fazendo, com o arquitecto Duarte Caldas de Almeida, obras profundas para o devolver, tanto quanto possível, ao projecto original – e abriram um restaurante, uma galeria e uma sala para concertos. A ideia é que o Espaço Espelho d’Água seja um local de encontro de culturas no centro de um triângulo que une África, Brasil e Portugal – ou, talvez, de um círculo muito mais amplo, que passe pelos muitos locais ligados aos Descobrimentos portugueses.

Quando, em 2013, soube do concurso para a concessão de espaço, anteriormente ocupado por um restaurante chinês (numa das suas muitas vidas, mas já lá chegaremos), Mário pensou: “Parece um projecto feito para mim”. O proprietário daquele que, garante, é “um dos mais bonitos restaurantes do mundo”, o Espaço Bahia, em Luanda, tinha andado a passear por Lisboa e a sonhar alto. Inspirara-se com a frente ribeirinha e, vendo o abandono de algumas áreas, imaginava um local para residências artísticas, espectáculos ao ar livre, “uma plataforma onde gente de todo o mundo vinha para pensar”, um pouco à imagem do Distrito 798, em Pequim. 

Acabou por não acontecer na zona que o inspirara inicialmente, mas a oportunidade para um projecto desse tipo, embora numa escala bastante mais pequena, surgiu com o Espaço Espelho d’Água. Começaram então as obras, com Mário e Mona a estudarem a história do edifício – uma história que daria, depois, uma exposição da artista plástica Ana Perez-Quiroga. 

Terminada a Exposição do Mundo Português, o espaço foi redesenhado e ampliado pelo arquitecto Cottinelli Telmo para receber um restaurante – um anúncio de 1943 apresentava-o como Restaurante-Bar-Dancing e “ponto de reunião de requintado ambiente”. Após o fecho deste, conta ainda o blogue Restos de Colecção, foi cedido à Brigada Naval da Legião Portuguesa e passou a chamar-se Pavilhão dos Desportos Náuticos. 

Voltou uma vez mais a ser usado como restaurante, com o nome de O Peixe, mas em 1990 conheceu um novo projecto: o Belém-Clube-Museu. “Pretendia ser um clube privado, com sala de jogo, restaurante, sala de leitura”, conta Mário Almeida. O mentor da ideia foi Fernando Gonçalves, que desafiou o arquitecto Manuel Graça Dias e o galerista Luís Serpa. Peças de artistas contemporâneos e mobiliário de luxo não foram suficientes e o projecto durou pouco, restando, apesar de tudo, uma obra para contar a história. 

Foi Pedro Lapa, director do Museu Berardo, quem disse a Mário Almeida que sabia que existia uma obra do artista norte-americano Sol LeWitt numa das paredes. Mas a discoteca Clube T, primeiro, e o restaurante chinês que se seguiu, alteraram bastante o edifício e a pintura ficou escondida. Um dia, quando estava em Luanda, Mário recebeu uma fotografia dos empreiteiros, perguntando: “Será isto?”. Era mesmo. Restaurada, a pintura, do início dos anos 90, está hoje novamente visível ao fundo da sala do restaurante. “É uma pirâmide e a nossa vida tem sido entre Luanda, Lisboa e São Paulo, por isso foi mais uma coincidência”, diz, sorrindo.

Finalmente pronto, o edifício ficou muito mais luminoso (foi aberta uma clarabóia e criado um jardim vertical com dezenas de espécies de plantas), e na esplanada frente ao Espelho d’Água foram colocadas peças do artista madeirense Rigo 23 feitas em Cochim, na Índia, e trazidas até Belém. 

Em frente da porta principal, o artista angolano Yonamine fez uma recriação da calçada portuguesa e é ela que nos conduz até ao interior do espaço, que começa pela galeria, se prolonga pela cafetaria, cheia de luz e com mesas corridas para refeições mais descontraídas, para terminar na sala do restaurante (a mesma carta está disponível nos dois espaços).

Na parte de cima, que na altura do restaurante chinês tinha umas improvisadas instalações para os funcionários, existem agora quartos que Mário e Mona disponibilizam para residências artísticas – por enquanto ainda não com o ritmo que desejariam porque a gestão do restaurante ocupa-lhes muito tempo e a parte de programação cultural tem sido feita mais dos projectos que vêm ter com eles do que de uma procura mais sistemática.

Apesar disso, tiveram já várias exposições – actualmente têm uma que resulta de um trabalho de curadoria do angolano Benjamin Sabby, intitulada “Commuting: Os das Bandas” – e vários espectáculos. A fórmula de jazz ao pôr-do-sol, que já tiveram com, entre outros, um concerto de Mário Laginha, é uma das que querem recuperar, em princípio para os finais de tarde de domingo. Mas falam também do sucesso que foi o concerto de piano e tablas (instrumento de percussão indiano) com Vasco Pimentel e Niraj Singh, que gostariam de repetir. 

Para além destes cruzamentos culturais, o que se come no Espaço Espelho d’Água reflecte também a filosofia que Mário e Mona têm para aqui: uma cozinha que percorre, reinventando, as viagens dos portugueses pelo mundo. Aliás, recorda Mona, a primeira residência que tiveram foi precisamente a da chef brasileira Ana Soares do Mesa III Consultoria, em São Paulo, que passou aqui algum tempo a preparar a carta do restaurante.

“Toda a carta é baseada numa pesquisa muito interessante, sobre as permutas alimentares, feita pela jornalista gastronómica Guta Chaves e pela historiadora Dolores Freixa”, conta Mona. Guta Chaves relembra, num texto de apresentação desse projecto (que está pronto a tornar-se um livro, esperando apenas oportunidade editorial) que “Portugal foi o fio condutor” de uma série de trocas de ingredientes nativos. “Um exemplo é a mandioca, que, levada [do Brasil] para África, converteu-se na base da alimentação” em vários países do continente. 

A partir desta investigação, Ana Soares (Luís Calisto é actualmente o chef executivo) criou uma ementa que inclui pratos como rissóis com massa de milho e caril de camarão; ceviche de bacalhau com aromas de coco, coentro e limão, abóbora, batata doce e maçaroca de milho; moqueca de peixe, camarão e aboborinha com talharim de fubá de milho; garoupa com crosta de farofa de castanhas e azeitonas, puré de espargos, tomate confitado e molho de pimento; lombo de bacalhau com migas de couve lombarda, broa de milho e feijão preto; arroz de pato com cogumelos, espargos verdes, presento e chouriço; frango de leite ao tempero baiano; ou, nas sobremesas, bolo de rolo ao cacau com doce de leite, creme inglês de cardamono; bebinca de amêndoa; e salada de frutas tropicais com farofa de castanhas e sorvete de fruta.

E ainda as tajines Espelho d’Água, de garoupa e camarão com cuscus de especiarias e legumes ou de perna de borrego assada com alecrim, marmelos, castanhas, batata doce e cogumelos. Para estas tajines – com as quais Mário e Mona quiseram trazer também Marrocos para Belém – o estúdio de design Pedrita, que criou vários objectos para o espaço, desenhou uma tajine para servir cuscus mas, por que não, um cozido à portuguesa ou uma moqueca, diz Mário. “A nossa ideia”, acrescenta Mona, “é pegar as coisas boas de cada cultura e tê-las aqui, sem medo de copiar”. E assim são muitos os mundos que se reflectem no espelho d’água. 
 

Nome
Espaço Espelho d'Água
Local
Lisboa, Santa Maria de Belém, Avenida de Brasilia, Edifício Espelho de Água
Telefone
213010510
Horarios
Domingo das 11:00
Sexta-feira e Sábado das 11:00 às 01:00
Website
http://www.espacoespelhodeagua.com
Preço
25€
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