Israel, terra do leite e do mel ou do falafel e do húmus?

Sabores marroquinos, egípcios, palestinianos, libaneses, turcos, gregos, ibéricos, húngaros, russos, tradições árabes e tradições judaicas — de que é feita, afinal, a cozinha de Israel? O que os israelitas sabem de certeza é que é uma festa.

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Alexandra Prado Coelho

“Queremos três pratos de húmus, por favor, um hamshuka, um msabbaha e um ful, com feijão”, pede Avihai Tsabari, o nosso guia. Estamos sentados numa rua estreita junto ao mercado de Carmel, em Telavive, e ainda não parámos de comer. Avihai quer dar-nos tudo a provar. Temos pouco tempo para perceber o que é, afinal, a cozinha israelita — e se há coisa que não podemos dispensar, é, claro, o húmus.

Mas se imaginávamos que essa seria a parte fácil — afinal, o húmus já se internacionalizou e é cada vez mais popular nas grandes capitais europeias — o facto é que aqui estamos no Médio Oriente e seria difícil conseguir um consenso sobre qual é o melhor húmus, quem inventou este prato ou como deve ser comido.

“Há quem se perca em longas discussões sobre como se deve usar o pão para apanhar o húmus, se rodando à volta do prato ou entrando numa linha recta em direcção ao centro”, explica Avihai. Olhamos para ele, incrédulos, pensando se uma semana será suficiente para descobrirmos pelo menos o básico sobre tudo isto. Comecemos então pelo húmus, que chega à mesa acompanhado pelo tradicional pão pita mas também por pão iemenita chamado saluf.

“Não se atrapalhem, a ideia é mesmo sujarmos as mãos”, encoraja Avihai, enquanto mergulhamos pedaços de pão nos três pratos. O húmus tradicional, chamado húmus-bi-tahini, é feito de grão-de-bico e pasta de sementes de sésamo, a omnipresente tahini; o hamshuka leva por cima shakshuka, uma espécie de tomatada; já o ful é acompanhado pelo feijão preto pequeno que lhe dá o nome; e no msabbaha o grão-de-bico é deixado inteiro e não esmagado.

Quanto a opiniões, Avihai não tem dúvidas: aqui, no Shlomo & Doron, casa inaugurada em 1937 em pleno bairro iemenita, come-se “o melhor húmus do universo”. Mas, atenção, se viajarmos para outras partes de Israel, encontramos versões diferentes. “Em Jaffa é muito fino e um pouco mais doce porque tem mais tahini. Em Nazaré fazem-no mais grosso, com mais textura, e noutros sítios da Galileia leva muito azeite e pinhões tostados. O de Jerusalém é servido numa taça em vez de um prato e nunca o servem com esta forma arredondada.”

Isto para não falar, claro, dos outros países da região. No meio das tensões políticas do Médio Oriente, o húmus pode tornar-se uma questão delicada. Diz-se que a receita mais antiga de um prato semelhante foi encontrada num livro no Cairo do século XIII. Mas hoje é o Líbano que se declara o país de origem do húmus e acusa Israel se querer “roubar” os pratos tradicionais árabes apresentando-os como “cozinha israelita”.

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Para garantir o seu estatuto, o Líbano fez, em 2010, aquele que foi considerado o maior prato de húmus do mundo (oito toneladas de grão, duas de tahini e duas de sumo de limão), com 10.450 quilos, ultrapassando assim o recorde israelita de 4100 quilos. Falou-se na “guerra do húmus” e, com tanta polémica, o prato tornou-se até estrela de filmes como Hummus the movie (2015), do israelita Oren Rosenfeld, ou o documentário Make Hummus Not War (2012), do australiano Trevor Graham.

Até ao final dos anos 1970, os israelitas não falavam muito sobre o que comiam. O novo país, nascido em 1948, pedia uma cozinha que, pensavam então os mais jovens, não seria a dos avós que podiam ter vindo da Hungria ou do Egipto — tinha que ser algo de novo. Israel, a Terra do Leite e do Mel que os judeus acreditam ter-lhes sido prometida por Deus, procura hoje a identidade da sua cozinha. E esta passa, sem dúvida, pelo húmus e o falafel (pasta de grão de bico frita e servida em pequenas bolas). O país pode ser pequeno mas a história da sua comida não pára na fronteira.

Nazaré e Galileia

A nossa viagem para tentar perceber se existe realmente uma cozinha israelita tinha começado uns dias antes no Norte do país: em Nazaré, a maior cidade árabe de Israel, com 70% de muçulmanos e 30% de cristãos.

Quem aí nos recebe é Nir. Baixo e magro, moreno, de cabelo apanhado num rabo de cavalo, conta-nos que vive , por opção, numa tenda-casa no moshav de Amirim, fundado há 60 anos por franceses e alemães promotores do vegetarianismo. Amirim continua a ser conhecida como uma localidade vegetariana, embora Nir não o seja. “A minha mãe é marroquina, como é que eu ia sobreviver se não comesse carne?”, pergunta, sorrindo.

Como ainda só estamos a meio da manhã, nem carne nem legumes — começamos com doces, até porque Nazaré é conhecida pela sua doçaria e estamos mesmo à porta de uma das casas mais famosas da cidade, a Mahroum Etnic Sweets. Orgulham-se de estar aqui há 70 anos e todos os dias apresentar aos clientes grandes tabuleiros cheios dos doces tradicionais, da baklava à halva (pasta de sésamo com mel, passando pela irresistível knafeh (ou kanafeh), especialidade dos países do Levante, que tem uma base de queijo de cabra e no topo massa tipo vermicelli muito fina e embebida numa calda doce com umas gotas de água de rosas.

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Alexandra Prado Coelho

Passamos pela Igreja da Anunciação, principal razão da vinda de tantos turistas a Nazaré, e seguimos para o mercado onde rapidamente nos dispersamos a ver os pepinos selvagens, a planta que parece tomilho mas que serve para fazer o za’atar, que aqui é usado em muitos pratos ou comido simplesmente com pão, a loja onde é torrado e moído o café e que cheira a café e a cardamomo, as beringelas gigantes ou as deliciosas tâmaras.

Paramos no pequeno restaurante de Abu Ashraf para provar outra especialidade, o qatayef, um pastel frito que pode ter um recheio de frutos secos ou de queijo e que é servido polvilhado com pistácios. E despedimo-nos do mercado com uma última paragem, na El Babour, loja de especiarias onde mil cheiros se misturam no ar e um dos proprietários nos explica que o nome vem da máquina “a vapor” que os árabes baptizaram como babour.

Não sabíamos ainda, mas esperava-nos o momento mais alto da volta pela Galileia, a visita à quinta de produção de queijo Goats with the Wind, em Yodfat. A carrinha mal consegue passar e parece completamente deslocada num cenário que nos leva para um qualquer tempo perdido na Galileia, com as cabras brancas, castanhas e de vários tons de cinzento que nos olham com uma curiosidade altiva enquanto Dhalia nos dá as boas vindas, desculpando-se por só ter queijos ainda muito frescos.

Com uma túnica longa, cabelo caído pelas costas, Dhalia parece uma Maria Betânia transformada em guardadora de cabras há mais de 20 anos, primeiro com cinco animais, hoje com 200. O marido, Amnon, aparece daí a pouco, cabelo também comprido e despenteado, calças rasgadas, ele sim camponês desde sempre (Dhalia foi jornalista noutra vida) e ficamos sentados num recanto mágico, pernas cruzadas em cima de almofadas, um vento muito leve, pratos de madeira, pequenas ervas a enrolarem os talhares e jarros de água com uma gota de água de rosas.

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Alexandra Prado Coelho

Tudo é bonito aqui, dizemos, e quando pensávamos que íamos apenas provar queijos começam a chegar da cozinha saladas fresquíssimas, pratos com labané (o queijo fresco dos beduínos, feito apenas com o leite coagulado com limão, transformado em iogurte e coado num pano branco), pão pita, vinho biológico feito por um dos filhos de Dhalia e Amnon.

Há ricotta com sumac, pó feito de uma planta selvagem, haloumi frito com picante e tomate, fahima (queijo com carvão), pecorino com pimenta. Não queremos ir embora, prolongamos a conversa um pouco mais, falamos dos vinhos portugueses e Dhalia pergunta onde conseguirá encontrar uma cataplana para cozinhar. Fica combinado que virão a Portugal.

Ainda temos uma visita a uma produção de azeite em Avtalyon e é já escuro quando chegamos a Tiberíades para uma noite no histórico Scots Hotel. Mas, antes disso, mais uma breve viagem por outra cozinha com características muito próprias. Tiberíades, junto ao mar da Galileia e sem população árabe, tem uma cozinha de peixe e é por isso que Abigail, uma cozinheira local, nos quer mostrar o mercado de peixe, ainda aberto a esta hora.

Conta que um dos pratos favoritos dos habitantes de Tiberíades é feito com um peixe do mar da Galileia frito em azeite, com muito alho, malagueta, paprika e, no fim, coentros e sumo de limão. Tem que ser comido à mão e é o prato do shabbat, sexta-feira à noite, início do dia santo para os judeus.

Mas a história da cozinha local também se cruza com Portugal e com a figura de D. Gracia Nasi Mendes, judia portuguesa, dona de um império de especiarias, que ficou famosa no século XVI tendo apoiado a vinda de muitos judeus para Tiberíades. Terá sido por sua influência que aqui chegaram dois pratos ibéricos: o sofrito (que Abigail descreve não como refogado mas sendo feito com batata, galinha e pão frito) e a paella (feita com peixe e sem marisco).

Sentamo-nos num muro a olhar a lua cheia e a pensar nas aventuras dos judeus sefarditas fugidos da Inquisição e ajudados por D. Gracia a instalar-se em Tiberíades, enquanto comemos sufganiya, uma espécie de bolas de Berlim que acabámos de comprar e que são típicas da Hanukkah. Nesta festa judaica, as comidas fritas são muito usadas porque lembram o milagre do azeite: quando os judeus macabeus libertaram o Templo de Jerusalém (163 a.C), encontraram azeite para iluminar apenas uma noite, mas, milagrosamente, este azeite durou e durante oito noites houve luz.

Os vinhos dos Montes Golã

No dia seguinte temos uma visita aos Montes Golã. Estamos em território disputado, ocupado por Israel desde 1967, na sequência da Guerra dos Seis Dias. Os Golã, que pertenciam à Síria, ficaram divididos: dois terços sob ocupação israelita, o outro do lado sírio, entre eles uma zona tampão. Por tudo isto, escolher viver nos Montes Golã é um statement político.

É precisamente nos Golã que fica a fábrica de sumos Keshet, administrada por um moshsav (comunidade) muito religioso, ao qual pertencem Shari e Ronen, que aqui nos recebem. Afinal não vai ser possível visitar a fábrica onde se fazem os sumos de fruta, mas mostram-nos um filme para percebermos o processo. Da pequena fábrica criada há 12 anos (o moshav tem 43) saem sumos óptimos, mas o que nos fica é sobretudo o que Shari e Ronen contam sobre os “grandes incentivos” para que haja mais gente a ir viver para os Golã e como é o processo para se ser aceite num moshav como este, que tem actualmente 130 famílias. Cada nova candidatura é avaliada e aprovada, ou não, tendo em conta a maior ou menor identificação do candidato com os princípios da comunidade.

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Alexandra Prado Coelho

Também o restaurante Moshbutz (a palavra mistura dois tipos de organização comunitária, o kibbutz e moshav) é uma homenagem a estes colonatos que marcam a presença de Israel nos Montes Golã. Há nas paredes fotos dos primeiros dias do colonato fundado em 69. “A rapariga que vê naquela fotografia antiga na cozinha comunitária é hoje avó e dirige um bed and breakfast aqui em frente”, conta Erez Regev, o dono do restaurante.

A aposta do Moshbutz é na carne, até porque o sócio de Erez tem mil vacas e um talho ao lado do restaurante. Por isso, antes do almoço vamos conhecer a câmara frigorífica onde estão grandes nacos de carne a maturar, envolvidos em gordura. “Não é fácil manter um restaurante aqui”, lamenta Erez. “No Trip Advisor, por exemplo, somos identificados como um restaurante nos ‘Montes Golã, Médio Oriente’.” A ocupação israelita da região não é reconhecida internacionalmente, por isso a situação é contornada desta forma.

Mas, política à parte, tivemos no Moshbutz uma das grandes refeições desta viagem, pela carne, sim, mas também por todas as entradas e sobremesas — houve paté de fígado de galinha com maçã, pasta de beringela, carpaccio com parmesão local, beringela grelhada com iogurte, vegetais assados com queijo feta, carne grelhada, em salsichas (feitas no talho ao lado) e um pedaço cozinhado em sous-vide e depois assado, com a carne a desfazer-se, acompanhado por um delicioso freekeh, trigo verde fumado, numa técnica tradicional dos países do Levante. Tudo com os vinhos da região.

E, a propósito de vinhos da região, seguimos viagem até à Golan Heights Winery, desde 1983 os grandes produtores de vinho dos Montes Golã, para provar as suas principais marcas, os vinhos Gamla e os Yarden. No meio, uma surpresa: o Yarden 2T é feito com duas castas portuguesas, a Touriga Nacional e a Tinta Cão, que os enólogos da casa conheceram numa visita ao Douro e que acharam muito interessantes e com potencial para fazer vinhos diferentes dos Sauvignon Blanc, Syrah e Cabernet Sauvignon que fazem habitualmente. Com as mesmas duas castas portuguesas fazem ainda um vinho fortificado, o Yarden T².

Victor Schoenfeld é hoje o enólogo estrela da Golan Heights Winery, em 2012 considerada a Adega do Ano no Novo Mundo pela revista Wine Enthusiast e é ele o responsável pelas experiências com castas diferentes como acontece com as duas portuguesas. Apesar de haver vestígios na produção de vinho na região há seis mil anos, nos tempos modernos a primeira vinha foi plantada nos Montes Golã em 1976 quando “não se pensava que houvesse o potencial para fazer um vinho de nível internacional em Israel”, explica Ayala Singer, directora de marketing.

Mas esta juventude permite fazer todo o tipo de experiências e por isso estão actualmente a estudar 150 castas diferentes e o potencial dos vários terroirs com altitudes e tipos de solo também diferentes que existem numa pequena área a Oriente e a Norte do Mar da Galileia. “Temos um solo vulcânico único desta área e, apesar de não haver muita chuva, temos lençóis de água no subsolo. Demorámos algum tempo a ajustar as castas ao terroir. Perdemos aqui 600 anos de experiência. Por isso, agora para nós é como descobrir o mundo todo outra vez.”

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Alexandra Prado Coelho

Jerusalém e o Machneyuda

É um lugar meio louco mas foi isso que lhe deu — e garantiu até hoje — a fama. Fica ao lado do famoso mercado de Jerusalém, o Machane Yeduda (o nome do restaurante Machneyuda brinca com a forma como os locais pronunciam as duas palavras, fundindo-as numa), não é fácil arranjar mesa e não é barato. Mas o ambiente é de total descontracção, parece uma taberna moderna, com as portas abertas para a rua, música muito alta e uma confusão de mesas e pessoas a comer ao balcão, em frente à cozinha aberta, onde os cozinheiros tanto podem estar a fazer sair pratos de comida como a fazer improvisações de batucadas nos tachos e panelas, encorajando os clientes a saltar para cima das mesas e a dançar.

Subimos para a parte de cima do restaurante, uma espécie de corredor-varandim de onde se pode assistir a todo o espectáculo que acontece em baixo. Mas o espectáculo sobe as escadas também, com os empregados a gritar uns para os outros, a fazer girar panos no ar sobre as cabeças e a cantar quando menos se espera. A comida vai chegando no meio desta confusão e já ninguém se entende, mas a ideia é mesmo essa. O Machneyuda criou um estilo e é por isso que as pessoas lá vão.

Por isso e pela comida, claro. Os criadores do restaurante, Yossi Elad, Assaf Granit e Uri Navon, chamam-lhe “cozinha israelita moderna” e isso tanto pode significar polenta “Jerusalém style”, com cogumelos, espargos e queijo servida num pote de vidro, como shakshuka ou beringelas ou peixe, ou várias outras coisas que vão chegando à mesa sempre acompanhadas por jarros de vinho e muita animação.

O Machneyuda criou escola e há dois anos os mesmos sócios abriram, com dois irmãos londrinos, Zoe e Layo Paskin, o Palomar, no Soho, Londres. Com o caminho já aberto por Yotam Ottolengui, que tornou a cozinha do Médio Oriente um sucesso em Londres, foi fácil para o Palomar afirmar-se. O ambiente é mais calmo que o de Jerusalém, mas muitas das receitas são as mesmas e é possível também que por trás do balcão da cozinha aberta um dos chefs comece, de repente, a batucar enquanto grita o nome dos pratos que estão prontos a sair.

O livro de receitas do Palomar talvez seja um bom ponto de partida para percebermos algumas coisas sobre esta “cozinha israelita moderna”, neste caso feita por israelitas que já estão em Londres há duas ou três gerações e que, lê-se na introdução, tratam “com carinho as receitas de gerações vindas do Sul da Europa, do Norte de África, do Médio Oriente e do Levante”. “Misturamos estes sabores de casa e da história com o lado vibrante da cozinha moderna.”

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Yadid Levy/Robert Harding World Imagery/Getty Images

Para quem quiser cozinhar estas receitas é aconselhável ter alguns produtos básicos na despensa: freekeh (o tal trigo verde fumado), bulgurcouscoustahini, xarope de tâmaras, sal kosher, água de rosas, água de flor de laranjeira. Depois, é preciso ter sempre à mão muitos vegetais e algumas coisas que se podem fazer em casa como limões curados (em azeite e sal), pasta de harissa, feita com pimentos secos, ou labné, o queijo fresco que se faz a partir de iogurte e se come com azeite e za’atar (mistura de várias ervas secas, como tomilho, orégãos, manjerona, gergelim, sumagre e sal).

Depois do almoço, e enquanto voltávamos à camioneta que nos levaria de regresso a Telavive, Avihai, o nosso guia, pára num dos restaurantes do mercado e compra kibbeh (também chamado kubbeh) com chamusta, ou seja, pastéis fritos ou cozidos, com uma sopa ácida, com muito limão, um prato que, explica, é da zona do Iraque e Curdistão, mas que se encontra, em diferentes versões, por todo o Levante. É que, apesar de termos acabado de comer, Avihai nunca deixa de pensar que, a qualquer momento, podemos ter fome outra vez.

Telavive

Mercados, mercados, mercados. Avihai quer mostrar-nos o passado e o futuro dos mercados de Telavive (embora ele claramente prefira o passado). Arrumemos então o futuro em duas linhas: como em muitos outros lugares do mundo, a mais recente tendência em Telavive são os mercados estilo food courts, com algumas lojas e muitos espaços para comer ou comprar comida. O melhor exemplo é o mercado de Sarona, situado num bairro fundado no século XIX por uma comunidade protestante alemã. Foi dos primeiros colonatos modernos criados por europeus na Palestina otomana e que teve uma história de grandes tensões com os judeus e o Estado de Israel. A zona, que então era agrícola, e onde havia até vinha, é hoje um moderno espaço comercial que guarda ainda um pouco da memória dessa história atribulada.

Podemos, então, passar para os mercados mais antigos e bem mais interessantes. Há, para começar, o de Jaffa, a cidade velha, unida a Telavive. “A verdadeira história está aqui, nesta zona”, avisa Avihai, antes de nos sentar à mesa do Café Bistro Rogette para bebermos café árabe e comer pudim de sêmola e leite com pistácios e chantilly, o Layali Beirute (Noites de Beirute), e Mitbe’a Basmeed, também feito de sêmola mas dentro de um pastel de massa folhada.

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Marta Perez

Para quem quiser comer a qualquer hora do dia ou da noite, aconselha a Bakery Said Abuelafia and Sons, que está aberta 24 horas e vende pão, pães recheados, tartes, sambusak (uma espécie de chamuça) recheado e outras especialidades nesta mesma esquina de Jaffa desde 1879.

A visita acaba por ser rápida porque temos mais dois mercados para conhecer. Primeiro o de Carmel, onde nos espera o tal “melhor húmus do universo”, mas antes é irresistível parar para ouvirmos Schlomo Cohen, o proprietário do Café Cohen, a cantar árias de ópera e músicas de Frank Sinatra para uma audiência de turistas que se vai deixando ficar, sentada nos bancos do pequeno espaço, tomando um café (que é torrado e moído no local) e sugerindo mais um hit, pedido ao qual Schlomo acede não escondendo o contentamento pelo sucesso da cantoria.

Sentamos-nos depois para o húmus no Shlomo & Doron e para ouvir Avihai contar histórias da cozinha judaica iemenita. “Desde o século XVIII que quem não era muçulmano não podia tornar-se cidadão do Iémen. Naturalmente, os judeus, não sendo cidadãos, não podiam ir para o Exército ou conseguir boas posições, o que fazia com que fosse muito pobres e não conseguissem comprar ingredientes frescos nem carne. Usavam, por isso, uma parte da perna da vaca que era deitada fora. Com esse pedaço de osso e jibeh, uma planta de gosto intenso que cresce na parte ocidental do Iémen e na Etiópia, faziam, com água, sal e óleo, uma sopa que cozinhava lentamente. Hoje vêm pessoas de todas as partes de Israel para provar essa sopa dos judeus do Iémen.”

Tempo ainda para mais duas visitas, rápidas mas indispensáveis: a primeira à banca de burika (pastel frito e recheado com puré de batata e ovo) servida dentro de um pão pita. Vale a pena assistir ao processo, até porque Kobi, o cozinheiro, é uma personagem.

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Alexandra Prado Coelho

Última paragem: o Etrog Medicine Man. A loja principal fica no mercado Mahene Yehuda em Jerusalém, mas recentemente abriram esta no Carmel, em Telavive. Lá dentro é uma explosão de cores, frutas, legumes. Cada copo de sumo colorido faz bem a qualquer coisa, de uma simples constipação à prisão de ventre, das enxaquecas ao nariz entupido, das úlceras aos problemas de pele.

medicine man chama-se Uzi Ellie mas quem está nesse dia na loja é a filha, que nos explica tudo e dá a provar as bebidas, algumas das quais parecem explodir na boca com a mesma intensidade da cor que têm. Um dos produtos base é o etrog, um citrino parecido com o limão e muito usado na festa judaica de Sukkot.

É tempo de partir outra vez. Temos um último mercado para conhecer e Avihai garante que é o seu preferido. Fundado nos anos 30 a partir de um grupo inicial de judeus vindos de Salónica, na Grécia, o mercado Lewinski cresceu depois com a chegada de imigrantes iranianos. Aos espaços onde se podia experimentar a cozinha dos Balcãs juntaram-se lojas de especiarias e sabores e cheiros de outras partes.

Paramos à porta de Chaim Raphael. “Esta família veio para cá após a II Guerra Mundial, em 1958”, conta Avihai. “Inicialmente queriam vender carvão para aquecimento mas perceberam que, com o tempo que aqui faz, não era grande ideia. Instalaram-se neste mercado e começaram a importar produtos da Grécia. O avô, Chaim, um sobrevivente do Holocausto e fundador da loja, morreu há dois anos, mas lá dentro estão o filho dele e o neto. Qualquer ingrediente que se precise para o shabbat encontra-se aqui, entre produtos locais e outros importados.”

Até hoje, a família viaja todos os anos até à Grécia ou a Espanha para provar e escolher azeitonas. Ficamos na rua, à porta, e tentamos equilibrar nas mãos os vários pratos com azeitonas, diferentes queijos, tapenade, limões curados, beringela, harissa, feijões, pão. E, para animar, arak, com o seu forte sabor a anis e os seus 40 graus de álcool. “Good for your soul”, vai dizendo Avihai, rindo-se das caras que fazemos. 

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Marta Perez

Passamos de seguida para o outro lado da rua com a missão de provar “as melhores burekas de Telavive” na loja de uma família vinda da Turquia. Recheadas com queijo ou com espinafres, as burekas saem quentinhas e podem ser acompanhadas com ayrak, o iogurte com água e sal também típico da Turquia.

Derradeira paragem antes do almoço (claro que vai haver almoço, garante Avihai) numa loja de queijos, a HaChalban. “São da Síria e fazem o seu próprio queijo. A loja está aqui apenas há seis anos mas a quinta existe há 58.” Chegam os queijos e vários legumes recheados em pickles e novamente provamos tudo no meio da rua, dedos a pingar, guardanapos improvisados, gargalhadas.

O Mercado Lewinski é o mais antigo da cidade e, receia Avihai, talvez não consiga manter por muitos mais anos algumas das suas características únicas. Por exemplo, a incrível Albert Patisserie, com os seus doces feitos artesanalmente — há, quando entramos, um homem a pelar amêndoas à mão e tudo o que provamos é fresquíssimo e delicioso.

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Alexandra Prado Coelho

A dois passos fica a Ouzeria, restaurante da chef Avivit Avichai, aberto há poucos meses, onde a comida é tão boa que quem pensava que não poderia comer mais nada rende-se ao labné, ao húmus, ao carpaccio de beringela, às lulas com feijão ou à carne com legumes sobre um puré feito de pão, alho e amêndoas.

E é aqui, onde também há música alta e festa à nossa volta e à volta dos pratos de comida, que terminamos este périplo à descoberta que uma cozinha que está a tentar definir a sua identidade a partir de tanta variedade. “A nossa cozinha é uma combinação de todos os imigrantes que vieram para cá, e é muito ligada ao lugar e aos ingredientes que temos, muito azeite, legumes frescos, os tomates que são muito bons aqui”, explica Avivit, que nasceu em Israel de uma mãe israelita e um pai vindo da Hungria.

A comida da Europa Central foi perdendo terreno por causa do clima. É, por isso, uma cozinha sobretudo mediterrânica e levantina, esta a que agora chamam (também) “cozinha israelita” — num país que tem apenas 68 anos e junta várias culturas gastronómicas riquíssimas.

“Este tipo de comida e de partilha estão muito ligados à cultura mediterrânica”, conclui Avivit. “A minha cozinha é descontraída, muitas ervas, não demasiadas especiarias, muito leve e fresca. É uma comida feliz.” Afinal, esta é, como diz o livro do Palomar, uma cozinha feita “dos sabores da casa e da história”. Muita história.

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Tamuz Rachman

Mais fun dining do que fine dining

Numa terça-feira, pelas nove da noite, o chef português José Avillez está entre a cozinha aberta e o balcão do restaurante Nithan Thai, em Telavive, supervisionando a saída dos pratos e cumprimentando os clientes que chegam. Nessa noite, perto de 100 pessoas vão experimentar o menu que trouxe para o festival Round Tables 2016, em Israel. E será assim, sempre, durante uma semana.

“O objectivo do Round Tables é conseguir que grandes chefs de todo o mundo venham aqui dar uma interpretação mais descontraída das suas cozinhas”, explica Yair Bekier, um dos organizadores (com Nirit Weiss e Maya Karvat) do festival, que teve este ano, em Novembro, a sua segunda edição.

Se no primeiro ano não foi muito fácil convencer cozinheiros famosos a vir trabalhar no duro para Telavive (o festival dura três semanas, mas cada grupo de chefs fica durante uma semana num dos vários restaurantes participantes), e “dos 300 contactados, 292 disseram não”, este ano houve mais respostas positivas, afirma Yair Bekier.

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Tamuz Rachman

De oito passaram para treze, mas com nomes muito mais sonantes, de José Avillez, representando Portugal, ao peruano Diego Muñoz de Lima (que veio para o restaurante Yaffo-Telavive), passando por David Thompson do Nahm de Banguecoque (para o Thai House), Jeremy Ford, do Matador Room de Miami (no The Blue Rooster) ou Matt Lambert do The Musket Room de Nova Iorque (no Quattro).

No entanto, o festival, que tem o patrocínio do cartão American Express, não escapou à polémica: grupos de defesa da Palestina protestaram contra o evento e pressionaram, através de emails, redes sociais e cartas, os chefs estrangeiros convidados. E os que aceitaram participar tiveram, em alguns casos, manifestações à porta dos restaurantes nos respectivos países ou, como aconteceu com o Cantinho do Avillez, no Porto, um protesto com tinta vermelha e cartazes colados à porta. Um dos argumentos do grupo era que o festival tinha o apoio do Governo de Israel e, nomeadamente, da adega dos Montes Golã, território que pertencia à Síria e que está sob ocupação israelita desde a guerra de 1967.

A ideia, segundo Yair Bekier, é dar a conhecer ao público israelita o trabalho destes chefs mas numa versão adaptada ao estilo local. Para além de trabalharem noutros restaurantes, de visitarem mercados e de cozinharem com produtos locais, que integram nos seus menus, os chefs entram no espírito gastronómico de Israel, que Bekier resume assim: “Aqui não temos fine dining, temos um fine dining descontraído. É um mercado pequeno, a comida é muito boa e as pessoas não percebem por que é que têm que pagar muito mais por outro tipo de comida. Ir jantar fora em Israel é um motivo de celebração, as pessoas não gostam de um sítio muito íntimo, querem é estar juntas num grande ambiente.”

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Tamuz Rachman

Avillez encontrou outra palavra para descrever esta forma de estar: fun dining. “Hoje emociono-me mais vezes neste tipo de restaurantes do que nos fine dining”, confessa. “São sítios que transmitem muito da cultura e da identidade do local. Acho que os restaurantes em que se tem quase medo de falar estão já a chegar ao fim da linha. Aqui há muito sabor, muita vida.”

E encantou-se com os produtos que encontrou e com a cozinha vibrante que descobriu. Se é difícil encontrar uma identidade nela? É relativo, porque tudo evolui. “Quando falamos do que era a cozinha portuguesa há 400 anos, não tínhamos o tomate ou a batata ou o pimento, logo as caldeiradas não podiam existir.” Elogia sobretudo a qualidade dos legumes. “E tem uma coisa de que gosto muito, especiarias, sabores intensos mas frescos, o que a torna diferente de outras cozinhas que usam muitas especiarias mas são pesadas. Esta tem frescura. E tem uma coisa que já não se vê em muitos países: alma.”

A Fugas viajou a convite do Ministério do Turismo de Israel

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