Fugas - restaurantes e bares

  • Albert Adrià
    Albert Adrià Miguel Manso
  • A assistir à apresentação de
Adrià estiveram chefs
como José Avillez,
Kiko e Sá Pessoa.
    A assistir à apresentação de Adrià estiveram chefs como José Avillez, Kiko e Sá Pessoa. Miguel Manso

Albert Adrià: “O restaurante mais bonito é o que está cheio”

Por Alexandra Prado Coelho

No meio da sua apresentação no Congresso de Gastronomia que aconteceu no dia 19 em Lisboa, reunindo três chefs portugueses e três espanhóis, Albert Adrià teve uma dúvida sobre se uma das receitas que estava a fazer levava ou não mais um ingrediente. Rindo, comentou: “Tenho cinco, não, seis, não, sete restaurantes. Não me lembro de todas as receitas”.

Depois de mais de duas décadas a trabalhar ao lado do irmão mais velho, Ferran Adrià, a grande referência da recente revolução gastronómica espanhola, no elBulli, Albert aprendeu muito, cresceu, passou por uma crise, apaixonou-se pela cozinha, aprendeu mais e, em 2006, cinco anos antes do elBulli fechar as portas, decidiu seguir o seu próprio caminho.

Hoje tem vários restaurantes com conceitos muito diferentes mas quase todos no mesmo bairro de Barcelona – da alta cozinha do Tickets, aos étnicos Pakta e Hoja Santa. Em Novembro vai abrir o seu mais recente projecto, o muito exclusivo Enigma. Em conversa com a Fugas durante o Congresso – no qual participaram também Kiko Martins (O Talho e A Cevicheria), João Rodrigues (Feitoria), Henrique Sá Pessoa (Alma), Nandu Jubany (Can Jubany) e Andoni Luis Aduriz (Mugaritz) – Albert Adrià revelou-se ao mesmo tempo um pragmático e um sonhador. Se fosse apenas pragmático, não existiria um Enigma.

Começou, com 15 anos, a trabalhar com o seu irmão Ferran Adrià no elBulli, o restaurante que revolucionou a gastronomia espanhola. Recorda-se do que pensava sobre cozinha nessa idade?

Não pensava. Gostava daquela maneira de viver. O elBulli ficava num parque natural, gostava do edifício, dos amigos que se fazem trabalhando, mas só me apaixono pela cozinha mais de doze anos depois. Tive um ano de transição um pouco estranho, retiro-me para escrever um livro sobre as sobremesas do elBulli, e quando volto em 1998 é porque já sei que vou ser cozinheiro para toda a vida.

E o que é que o levou nessa altura a apaixonar-se pela cozinha?

Apaixonei-me porque é uma sorte ser cozinheiro, é um trabalho em que todos os dias tens desafios novos, todos os dias percebes que não sabes nada, que te permite viajar, conhecer, ampliar o conhecimento sobre a cozinha a nível mundial. Pode acontecer noutros trabalhos mas não da mesma forma.

É uma profissão que te permite expressares-te cada dia de uma forma muito física, muito directa. Há uma frase que diz: “És como cozinhas e cozinhas como és”. Acredito muito nisso. Vamos evoluindo, adquirindo experiência. Às vezes um cineasta faz a sua obra-prima no primeiro filme, mas não conheço nenhum cozinheiro que saia da escola e abra um grande restaurante.

A questão da criatividade, que era muito forte no elBulli, é uma pressão difícil de gerir?

Os limites somos nós quem os impõe. Há diferentes níveis de criatividade. No elBulli havia um nível muito duro e exigente. Hoje tenho um nível de criatividade mais baixo que me permite viver mais descontraído. O elBulli abria as portas para mudar a gastronomia e eu abro para que as pessoas estejam bem.

A criatividade é algo que se pode desenvolver, trabalhar?

Sim, claro. Pode haver três tipos de criatividade: a adquirida, a natural e a natural adquirida. Eu tenho a sorte de conviver com a criatividade. Não me levanto e digo ‘vou ser criativo’. Sou como sou e acontece que sou criativo. E as pessoas que trabalham comigo têm que ser criativas, há essa afinidade.

Mas não sentem, da parte dos clientes, uma pressão para lhes oferecerem sempre uma experiência diferente? Imagino que não seja fácil estar sempre a dar algo totalmente novo.

Claro que não, mas a finalidade de um restaurante é estar cheio, não é ter três estrelas ou ser criativo. O restaurante mais bonito é o que está cheio. Restaurantes aos quais as pessoas vão comer porque são criativos há poucos. Vais comer fora para viver uma experiência mas pode ser uma experiência diferente, há restaurantes mais criativos, outros menos, uns que fazem uma proposta mais conceptual, outros mais de produto. Há muitas verdades em cozinha.

Porque decidiu abrir restaurantes ligados a cozinhas de outros pontos do mundo como a mexicana (o Hoja Santa) e a peruana-japonesa (o Pakta)?

Primeiro porque preenche um vazio em Barcelona. Não há muitos restaurantes mexicanos ou peruanos, se bem que o meu seja peruano-japonês – não me atreveria a abrir um só japonês. Divirto-me, ensinamos cultura, aprendemos cultura. A gastronomia é uma das melhores maneiras de dar a conhecer um país.

P – Disse numa entrevista que a gastronomia espanhola se tornou conhecida pela alta cozinha e não tanto pela cozinha tradicional. Há um trabalho a fazer aí?

R – É um trabalho que se vai fazer por si mesmo. Quando se tem uma cozinha tradicional tão forte, no final os extremos tocam-se: a vanguarda e a tradição.

P – Pode-se chegar à tradição começando pela vanguarda?

R – Claro, eu mesmo o faço. A tradição de hoje não é a mesma de há 100 ou 300 anos. A tradição evolui. Há tradições que é preciso abolir e outras que é preciso adaptar. Não só na comida. Não se pode abrir um restaurante de vanguarda com a crise. A vanguarda é um termo militar que designa os que vão à frente. E esses, ou os matam ou abrem caminhos. Por isso são tão importantes.

Mas o grosso é a retaguarda, são os que vencem o inimigo. Temos muitos restaurantes de retaguarda a abrir, de tapas, de cozinha tradicional, que cobram 30, 40 euros de preço médio, que é o que as pessoas querem. Não vão pagar mais. Tickets, Mugaritz, El Celler de Can Roca, Quique Dacosta, desses tem que haver poucos, como sempre aconteceu. É a elite. São restaurantes caros de manter. É preciso muito investimento e muito retorno.

Claro que são muito importantes porque são um farol para os mais novos. Mas têm que entender que nem todo o mundo pode ser cozinheiro de vanguarda e têm que ser felizes de outras maneiras. É curioso como muitos cozinheiros de vanguarda hoje olham para a tradição e querem ter um sítio humilde. A vanguarda é uma grande pressão. O Bairro do Avillez é como uma resposta ao Belcanto. Mas sem o Belcanto não existiria o Bairro do Avillez. Porque não é tão fácil como parece. Precisas de uma grande base, conhecimento, equipa, infra-estrutura para poder criá-lo. A cozinha de vanguarda é como a Fórmula 1, que serve para que as provas que se fazem nos carros passem a nova tecnologia aos veículos convencionais.

São também uma forma de democratizar o acesso à gastronomia de qualidade.

Eu tentei isso com o Tickets. Se o restaurante tem algum mérito é o de democratizar a alta cozinha. De repente fizemos alta cozinha por 70 euros, com produtos de grande qualidade. Agora já vamos nos 110, 140 euros.

Porque é que a alta gastronomia tem que estar sempre num espaço aborrecido e conservador? Porque é que não pode estar num sítio cheio de gente gritando e de crianças? Creio que foi a melhor decisão que tomei. Outra coisa pela qual o Tickets pode ser reconhecido é por ter combinado a tradição com a modernidade. Porquê pôr numa mão a tradição e na outra a modernidade, quando as duas convivem muito bem? Não pode haver modernidade sem tradição e a tradição no seu momento foi modernidade. Sou um vanguardista mas daqui a uns anos serei tradição.

P – E, no entanto, começou logo pela vanguarda, no elBulli.

R – Sim, mas formei-me através de livros, indo a restaurantes tradicionais e comendo muito.

P – Fala de uma nova linguagem gastronómica. O que é que as pessoas procuram hoje?

R – As pessoas não vão comer um menu de cinco pratos durante três horas ao almoço. E não podem todas as noites gastar 150 euros. Precisamos de uma fórmula nova. Podes ir ao Tickets de três em três meses, podes ir à Bodega [tapas tradicionais] uma vez por semana e ao Enigma, que vou abrir em Novembro, uma vez por ano. É preciso adaptarmo-nos às realidades das pessoas.

P – Os seus restaurantes são uma resposta a essa necessidade?

R – Sim, às diferentes necessidades. O mexicano é, no fundo, dois restaurantes: um com a comida de rua mexicana, tradicional, e o outro é uma tentativa de expressão dessa cozinha revisitada por nós. É preciso procurar estas fórmulas. Se só abro restaurantes que vão ter uma estrela Michelin, fecho-os em meio ano. É isso que os mais novos têm que entender também: cozinhar é apenas uma parte do jogo.

E os futuros cozinheiros começaram a entender melhor isso?

Quando abrir o Enigma, sei o que estou a fazer. É algo que vai tentar romper e ser vanguarda. Assumo essa responsabilidade. Um jovem tem que entender que é preciso um processo evolutivo e que não é possível ter um restaurante estrelado com dois cozinheiros e uma pessoa para lavar os pratos. Não pode ter um restaurante com uma estrela cobrando 80 euros por menu.

O problema é que, quando deixas de aprender, já estás morto. Os jovens hoje têm pouca paciência e querem montar restaurantes muito cedo. Recomendo que ninguém monte um restaurante com menos de 30 anos, no mínimo. Eu criei o primeiro aos 36. E comecei com 15.

--%>