A gastronomia de São Tomé e Príncipe é um livro de história

Dizem que os são-tomenses gostam de comida com molho, e aqui um bom molho leva dezenas de ingredientes. A história que cada um conta ajuda a contar a história do país.

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Miguel Madeira/TAP

Entrada: lábios de matabala

Há curvas e contracurvas para chegar a São João dos Angolares. Passa-se por pontes sobre rios onde as crianças tomam banho e as mulheres lavam a roupa, que depois estendem para secar à beira da estrada, no chão. Nesta zona do Sul de São Tomé parece não haver um metro quadrado de terra sem vegetação. Não há verde, há muito verde. E depois chega-se à roça de João Carlos Silva (vimo-lo no programa Na Roça com os Tachos).

Sentemo-nos na varanda, com vista sobre uma baía e muitas árvores em baixo. Os galos vão cantando, apesar de ser hora do almoço. Ouvir o “cozinhador” João Carlos Silva (é ele quem se define assim porque não gosta da palavra chef) é ouvir toda a roça, é ouvir todo o país, porque fala como quem cozinha um calulu, o prato tradicional de São Tomé e Príncipe (STP) que leva dezenas de folhas diferentes: junta-se um ingrediente a outro e depois outro, num guisado cheio de ligações para vários lados. A história de STP pode ser contada pelo que nos colocam em cima da mesa durante uma refeição.

Começamos com um pedaço de chocolate Corallo (também iremos visitá-lo) com gengibre picado e pimenta rosa para “um spa de língua”, diz João Carlos Silva. “As mães davam cacau fresco aos filhos que tinham às costas [enquanto estavam a colhê-lo], mas eles nunca chegavam a comer o chocolate. Vocês são uns privilegiados.” Seguem-se uns lábios crocantes de matabala frita (um tubérculo parecido com batata) com puré de mikókó e tomate recheado; banana-prata com flor do mosquito e coentros selvagens; limão filipino com peixe e cebola, maracujá e manga — e no meio do prato um pingo de fura-cueca (picante); choco com papaia verde, abacate e flor da moringa que se vê da varanda; ovas de espadarte cobertas com agrião, ananás, curcuma da roça, farofa de laranja portuguesa com farinha de mandioca de São Tomé, molho de azeitona com baunilha...

“São Tomé e Príncipe o que é? É um entreposto de sabores”, afirma o “cozinhador”. A gastronomia é a própria síntese do processo de colonização (a ilha foi achada no século XV). Tem, assim, “duas raízes matriciais: a europeia/portuguesa e a africana, particularmente da África Central, Gabão, Benim. Mais tarde [entram] os cabo-verdianos, moçambicanos, angolanos que vieram para as roças” como contratados. “A gastronomia são-tomense é a mistura dessas gastronomias todas.”

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Mercado Municipal de São Tomé Miguel Madeira/TAP

Prato principal: feijoada da terra

Alguns dias antes tínhamos entrado nos dois mercados de São Tomé, um a poucos passos do outro, separados por um terreiro de lama e rapazes montados em motos. “Se quiserem fotografar, primeiro, tem de criar afecto”, recomendam-nos — ou seja, temos de comprar qualquer coisa.

Encontramos frutas: safu (da cor da beringela, oval e do tamanho de um ovo; coze-se e come-se com pão, explica Fernanda, a vendedora); maracujás do tamanho de papaias; cajamanga; fruta-pão (do tamanho de melões, substitui o pão, o arroz ou a batata); ananás; cola (castanho, do tamanho de uma ameixa e que dá energia para o dia todo), bananas. Muitas bananas — banana-pão, de casca verde, come-se frita, cozida ou assada, tal como a banana-são-tomé; banana-prata, rosada, que se come frita ou seca; banana-ouro, mais perfumada e usada em doces e compotas; banana-maçã, usada para fazer farinha…

Encontramos ervas e temperos: erva mosquito (parecida com orégãos selvagens e usada no calulu), mikokó (outra que tal), mastruço, coentro à portuguesa (comprida, com sabor a coentro), ossame (um fruto que substitui a malagueta) e pau pimenta lado a lado, mússua, makéké, malaguetas de várias cores e tamanhos…

Encontramos peixe: peixe voador salgado (dois dias para secar e meia hora para a dessalga), espadarte, ica, vermelho, búzios do mar e da terra... Não há divisão clara entre legumes e peixe, e às vezes vendem-se todos na mesma banca ou no mesmo pedaço de chão.

Encontramos Inês Antónia, 60 e tal anos, há mais de 40 a vender no mercado. Já teve 13 filhos, “três estão com Deus”. Criou-os tal como foi criada: com panelas de banana, cozida com casca e tudo, e fruta-pão, “com malagueta pisada na pedra com limão e óleo de palma”, inhame, funge ou izaquente cozido com açúcar, ou sem ele. Muitas das doenças que há em São Tomé devem-se à falta de vitaminas que as cascas das frutas garantem, diz. “Os jovens já não comem a fruta cozida. Só comem arroz e esparguete. Antes não havia disto [aponta com desprezo para os caldos Knorr que tem na banca].”

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João Carlos Silva: "É muito mais fácil e muito mais cómodo estender a mão e esperar que as coisas venham" Miguel Madeira/TAP

João Carlos Silva queixa-se do mesmo. “Devíamos estar a comer menos arroz. Estamos completamente dependentes da ajuda alimentar do Japão... É muito mais fácil e muito mais cómodo estender a mão e esperar que as coisas venham. Semear e plantar leva tempo e dá muito trabalho.” Defende que deveria haver um plano “de grande fôlego, multidisciplinar, para ensinar as crianças em relação aos alimentos, aos ingredientes que devem ser utilizados, a produção de hortas, o aproveitamento das plantas selvagens. Algum conhecimento que existe é de pessoas com alguma idade que não estão a passar esse testemunho para os mais novos. Em cada lugarzinho, em cada rocinha, temos que nos mobilizar, olhar para o país e perguntar ‘o que podemos oferecer?’”.

Não sabemos se Joaquim Vítor fez essa pergunta a si próprio, mas desconfiamos que sim. Vivia na antiga sanzala da roça Saudade, onde as famílias cresciam e o espaço encolhia. Quis passar para a casa principal, abandonada, para ter mais privacidade. E então descobriu Almada Negreiros. Ficou a saber que o artista português filho de uma são-tomense tinha nascido precisamente ali. “Fui inteirar-me de quem era o Almada. Agora o objectivo da associação é divulgar a sua obra e sensibilizar as crianças para a leitura. Vamos ter uma minibiblioteca”. Há uma pequena sala com alguns livros e quadros na parede de artistas locais. “Estamos indo fazendo.”

O resto do projecto desenrola-se no campo. Planta-se tudo o que se pode para servir no restaurante. A mãe, Luísa, é quem prepara a feijoada à moda da terra que virá acompanhada de uma Rosema, a cerveja local que não tem rótulo nem carica própria para se identificar. Luísa aprendeu com a avó a fazer a feijoada e o filho recrutou-a para aqui, onde o tacho pousa em cima de brasas, durante algumas horas. Vai até ao jardim para apanhar erva mosquito e malagueta. “Não há como não gostar da sua comida”, diz Joaquim, um dos seus nove filhos.

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Luisa cozinha a feijoada à moda da terra no restaurante da Casa Almada Negreiros Miguel Madeira/TAP

Dos 190 mil habitantes de STP, 64% tem menos de 24 anos. Mas, segundo o Banco Mundial (BM), os jovens são os mais afectados pela pobreza em que vive 62% da população (o país ocupa o 166.º lugar entre as 189 economias que fazem parte do índice do BM). Sobretudo nas zonas urbanas, as dificuldades em encontrar emprego deixam muitos jovens sem rendimentos ao fim do mês.

Não admira, por isso, que eles estejam também no centro do trabalho de João Carlos Silva. “Vivemos a gastronomia à mesa, não é? Mas podemos pegar na gastronomia para trabalhar socialmente um lugar.” A oficina de gastronomia da Roça de São João “dá formação para a vida, porque a gastronomia é transversal: damos aqui lições de história, geografia, botânica, biologia, segurança alimentar, educação ambiental. Só depois pegamos na faca da cebola, do peixe, do tomate.”

Em todo o processo, há uma tentativa de aproximação ao que significa ser são-tomense. “A gastronomia implica plantar, semear, cuidar, cultivar. Implica conhecer as tradições.” Mas reconhece: “O pessoal mais jovem não quer muito roçar mato, não quer muito a agricultura, prefere o comércio”.

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A horta da roça Paciência, um projecto piloto desenvolvido por Francesca Orlandi Miguel Madeira/TAP

Sobremesa: izaquente de açúcar

A varanda em madeira da roça São João dos Angolares está tranquila, agora que os almoços já foram todos servidos, e os sete ou oito minutos de conversa que João Carlos Silva nos tinha prometido ao início multiplicaram-se várias vezes. Uma coisa leva à outra e agora falamos de izaquente.

“O izaquente tem histórias engraçadas. É um fruto enorme da floresta, não me lembro de ver alguém plantar, está aí, à mão de semear”, diz o “cozinhador”. “As senhoras deixam quase apodrecer, ficar muito maduro, a desfazer-se, para depois [extrair as sementes] secar e esmagar numa gamela com uma pedra redonda”, criando uma espécie de farinha com um alto teor calórico.

Faz-se salgado ou doce. “O izaquente salgado é feito com peixe fumado, erva mosquito, ossami, pau pimenta e óleo de palma — a nossa gastronomia está grávida do óleo de palma, por influência de Angola. É acompanhado de farinha de mandioca.” Mas se estivermos a pensar numa sobremesa, cozem-se os grãos e trituram-se, “junta-se açúcar, e há quem misture milho cozido fresco”, ou apenas canela por cima, como se fosse arroz doce. “Diz-se que muitos dos mulatos de STP foram criados à volta de izaquente.”

Como? Vários portugueses que chegavam ao arquipélago vinham sem a companhia das suas mulheres. “Algumas senhoras [são-tomenses] começavam como lavadeiras e depois lavavam tudo! Os filhos não eram registados e quando os homens partiam, de regresso a Portugal, as mamãs ficavam com os mulatinhos ao colo.” E lá iam para o rio, com as crianças e com o izaquente, levado em cestos. “Num lado estão a lavar roupas, no outro a lavar o izaquente que depois dão aos filhos.”

São Tomé e Príncipe é um país de fundação colonial e foi adquirindo uma função específica: produzir açúcar (século XV), produzir cacau, produzir café (século XIX). Tudo com mão-de-obra vinda de vários pontos de África, em regime de escravidão formal ou efectiva.

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Francesca Orlandi: “Houve um abandono e uma rejeição da agricultura, porque as pessoas associam-na a um passado de escravidão" Miguel Madeira/TAP

Quando a italiana Francesca Orlandi chegou ao Príncipe, em 2012, encontrou ainda marcas desses tempos. A estrutura agrícola parecia inalterada e mantinha-se “o papel do capataz, que não tem necessariamente mais conhecimentos do que a força de trabalho e de quem as pessoas têm medo”, afirma a agrónoma florestal. “Houve um abandono e uma rejeição da agricultura, porque as pessoas associam-na a um passado de escravidão, um passado que é preciso apagar da memória histórico-social. Tudo o que se vê agora que parece floresta na verdade são antigas plantações abandonadas... O perfil do pequeno agricultor orgulhoso da sua profissão, não existe. Faz porque lhe mandam fazer.” Por isso, a sua prioridade foi “devolver a dignidade que se tinha perdido”.

O projecto que Francesca Orlandi veio desenvolver para o grupo hoteleiro HBD, e que tem em alguns pontos a colaboração do chef português Leonardo Pereira, associa a preservação da floresta a uma produção integrada do cacau e de outras culturas agro-florestais. Passa por garantir formação, ensinando algumas técnicas que, apesar de ancestrais, estavam esquecidas. “As pessoas só colhiam e as produções não aumentavam porque nada era plantado.” Ou seja, e ao contrário do que se pode pensar, este “não é um povo de agricultores; a agricultura aqui é de subsistência”.

A formação em agro-ecologia foi feita na roça Sundy, “que foi uma das expressões máximas do seu contrário”. “Foi uma das maiores roças do Príncipe [tem actualmente 1080 hectares].”

A conversa com Francesca Orlandi decorre na roça Paciência, no Norte da ilha, onde se desenvolve o projecto piloto para a Sundy. À direita, as sanzalas já sem telhado, mas onde ainda se pode ver pelas marcas no chão o espaço exíguo que cabia a cada família; à esquerda os secadores; em frente, a casa principal; atrás os antigos escritórios e casa dos empregados. Entre tudo isto, um terreiro com árvores amplas, relva e terra batida.

Mais adiante, e fora deste quadrado, há o actual laboratório, criado para “agregar valor à produção de frescos e reduzir o desperdício”. Desenvolvem-se produtos característicos do Príncipe — como a secagem de frutas e compotas. “O caroço (que vem do carroceiro) não tinha valor comercial. Nós secamos e usamos no muesli.” Faz-se destilação de laranja amarga, ou de lang-lang para tónicos e sabonetes. Faz-se extracção de óleo de coco a frio e ensina-se alguns produtores a fazê-lo também.

“Já foram à horta?” Contornamos o edifício e encontramos o espaço onde crescem hortícolas e ervas aromáticas, seguindo os princípios da permacultura. “Este é um equivalente de um espinafre: chama-se folha de tartaruga e cresce naturalmente em qualquer tipo de contexto. Este é um amaranto, ou jimboa.”

A produção hortícola nasceu para tornar os resorts da HBD sustentáveis, reduzindo a dependência da importação. O projecto de Francesca Orlandi é amplo. “Aplicamos o conceito de bio-agro-diversidade: em vez de explorar apenas uma cultura, alterna-se áreas com outras culturas como caju, baunilha, lang-lang, pimenta. Deixa-se o sistema florestal agir. A sombra das árvores protege as plantas, que se tornam um bocadinho menos produtivas, mas necessitam de absorver menos nutrientes. E o ciclo contínuo das ramas que caem no chão, que geram substância orgânica, cria uma cadeia sustentável.”

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Miguel Madeira/TAP

Café com chocolate

Gegé Lima tem 27 anos e sabe o que tem para dar a São Tomé e Príncipe. A varanda onde agora conversamos era há décadas a do centro de tratamento do café da Roça Monte Café, no interior da ilha, e que chegou a ser o maior produtor do país, com os seus mais de oito mil hectares. Agora, a antiga fábrica de torrefacção é uma carcaça, a casa do governador foi demolida e restam ainda no chão os pedregulhos. Como fica a 670 metros de altitude, é favorável para a plantação de arábica (mas também há robusta), que gosta de zonas húmidas e altas. Apesar do abandono, cerca de 250 pequenos produtores trabalham para juntar a sua colheita numa cooperativa. “Aqui, todos trabalham no café”, diz Gegé.

Vive onde antes viviam os trabalhadores, na sanzala. Estudou a fauna e a flora de São Tomé e tirou um curso de turismo. Aprendeu como se cultiva e trata o café. Sabe o que é preciso para fazer visitas guiadas aos turistas que agora visitam o que resta da roça (como o museu onde se podem ver os utensílios utilizados e algumas amostas em garrafas de vidro, com rótulos onde se pode ler: “Arábica superior corrente Tipo 6, embarcado no vapor Pátria em 12/7/70 conforme nota de embarque n.º1396...”).

É Gegé quem explica que, para plantar um cafeeiro, primeiro é preciso fazer um viveiro — leva 45 dias a germinar, depois, seis meses até atingir 40 centímetros; só então pode ir para a terra. Depois, a planta pode durar 50 anos.

Aparece Eduardo Buku, de catana na mão, agricultor de café desde os 12 anos (tem 43). “A boa limpeza” do cafeeiro é a regra de ouro. Tem três mil pés, o que em alguns anos lhe garante 500 quilos, outros apenas 300. “Antes dava duas vezes por ano, agora só uma, não sei porquê.” A maior parte da produção é vendida à Malongo, e essa não vai para a torrefacção, vai directamente para França. A variedade arábica de São Tomé e Príncipe é considerada das melhores do mundo.

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Agricultor da roça Monte Café, uma das maiores do país Miguel Madeira/TAP

Mas a principal produção do país é o cacau, que constitui 62% das exportações, (o café não chega a 7%) e garante uma grande fatia dos postos de trabalho. Ainda assim, está longe de recuperar o título de principal produtor mundial que detinha em 1905.

Vamos então visitar a roça de Claudio Corallo (ver caixa) na ilha do Príncipe, onde as primeiras árvores de cacau, trazidas do Brasil, foram plantadas por volta de 1819. Era praticamente uma selva quando Corallo lá chegou para fazer “o melhor chocolate do mundo”, porque os tempos de produção intensa já eram coisa do passado. Foi preciso desbravar e limpar. Foi preciso replantar as árvores de sombra, para que as plantas recebessem ar e a quantidade certa de luz.

Se toda a ilha do Príncipe é um deslumbramento (o Sul foi classificado como reserva da Biosfera pela UNESCO), manda a prudência evitar descrever a vista desta roça para não cair em clichés. Vamos apenas dizer que estamos num plano elevado, à nossa esquerda, ao fundo, vemos morros, o mar azul e palmeiras; à direita, uma floresta mais densa. Há garças pretas a passearem-se pelo chão e muquês castanhos a sobrevoar a casa e as copas das árvores.

Acácio Tiny, de 32 aos, nasceu e cresceu no Terreiro Velho, a localidade em baixo onde vivem menos de 100 habitantes. Trabalha na roça desde 1999, quando Claudio Corallo começou a sua produção de cacau — a maior da ilha inteira, mas mesmo assim insuficiente para dar resposta às necessidades, pelo que é preciso comprar a outros produtores. “A planta tem que estar sempre a ser limpa por causa dos ‘ladrões’”, os rebentos que é preciso tirar. Para além disso, há “os ratos, os macacos e os morcegos, que gostam de cacau”.

O terreno é íngreme e, com a chuva que tem caído, bastante escorregadio. Não é fácil recolher os frutos das árvores — há uns quantos milhares de pés — mas Acácio vai agilmente apanhar um cacau fresco, que abre para dar a provar. Uma delícia.

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Acácio mostra um cacau acabado de colher da árvore Miguel Madeira/TAP

Não há agora muita gente a trabalhar porque a colheita, que pode ser feita no ano todo, é mais intensa entre Junho e Outubro, “se a chuva não estragar o fruto”, diz Acácio Tiny. “Agora [início de Abril] está bom porque há um pouco de chuva e um pouco de sol. Em Maio vai haver um pouco de colheita.”

É ele quem explica o processo: apanha-se o fruto, parte-se ao meio com um pau e coloca-se a polpa (também chamada de goma) e a semente em caixas de madeira para fermentar. Fica assim cerca de três semanas. Passa para os secadores, seis ou sete dias, sempre a mexer para ter a certeza de que seca uniformemente. Agora há apenas uma pequeníssima amostra de cacau (e de café) no secador. “O processo do café é igual”, diz Tony.

A queda dos preços no final da década de 1990 trouxe uma crise económica profunda. No início dos anos 2000 apareceram cooperativas como a CECAB, que, ao eliminar os intermediários, permitiram aos agricultores ficar com uma fatia maior das receitas, já que não se limitavam a vender a goma, mas começaram a poder fermentar e secar o cacau em equipamentos fornecidos pelas cooperativas. E isto com selo de biológico e comércio justo. O cacau passou a render-lhes cinco vezes mais. Ainda assim...

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A queda dos preços no final da década de 1990 trouxe uma crise económica profunda Miguel Madeira/TAP

O Banco Mundial refere que não há nenhuma actividade económica no país “que possa servir como um motor do crescimento”. “Historicamente, a agricultura tem sido um sector com elevado desempenho, com um aumento das exportações de cacau, café e óleo de palma nos últimos anos. No entanto, isso não compensou o crescimento das importações” — há uma balança comercial negativa de mais de 118 milhões de euros. O país continua a ser altamente dependente do exterior, e o turismo, que tem vindo a crescer, ainda não responde às necessidades. Chegou a falar-se em prospecção petrolífera, mas esta não avançou.

O que trava São Tomé e Príncipe?

João Carlos Silva tem uma explicação que certamente será considerada polémica por alguns: “As pessoas estão retraídas, muito acomodadas. Um amigo brasileiro dizia-me: a fazer alguma coisa aqui será por inércia dos são-tomenses, será [feito por] gente de fora. Sempre foi. Há quem diga que é o destino.”

Por outro lado, ultimamente tem dado por si a desenvolver outra reflexão: “Até que ponto não estamos a ser um bocado contra-natura? Este clima é muito quente, a terra é extremamente generosa, quase que não precisamos de semear nada, apetece-nos muito fazer amor todos os dias. Se a gente se ocupa muito com as outras coisas todas, que tempo é que sobra para as coisas mais deliciosas que o ser humano tem para fazer?”

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Miguel Madeira/TAP

José Henriques

Preta, branca e rosa

Encontramos José Henriques no meio do que parece ser um quintal, mas que é na verdade uma plantação de pimenta. Vive na Nova Estrela, a sul da cidade de Santo António, no Príncipe. Desde 2006 que produz pimenta e o negócio não tem parado de crescer. “Prevejo entregar este ano duas toneladas, e no próximo três ou quatro”, afirma, sorridente. No seu hectare de terra crescem dois mil pés, tudo biológico. “Um pé pode durar 60 anos.” Trouxe de outra zona da ilha alguns pés “do tempo dos colonos”. Reproduziu “com estacas e agora toda a produção vem daí”.

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Tal como ele, outras seis dezenas de produtores entregam a sua pimenta à cooperativa CEPIBA, que depois a envia para São Tomé e dali segue para França. Ele recebe “oito euros por quilo; a cooperativa vende aos franceses a 14, mas a CEPIBA dá material e apoio aos produtores. Se não fosse a cooperativa, não havia pimenta no Príncipe.”

Pimenta branca, rosa ou preta, tem só a ver com a fase em que o bago é apanhado. A rosa é quando está mesmo mesmo, madura. Já a preta é apanhada bem verde, explica José Henriques. “Ferve primeiro durante 15 minutos e depois leva ao secador”.

Pimpa

O ananás que fica no chão

Tal como muitos cabo-verdianos, Pimpa veio ainda adolescente para trabalhar nas roças como contratado. A primeira vaga chegou em 1903 e a segunda nos anos 1950. Para além dos cabo-verdianos, também angolanos e moçambicanos partiram para São Tomé e Príncipe a pensar que teriam um contrato de trabalho à chegada, mas esperava-os um pesado trabalho braçal em condições desumanas. Muitos, sobretudo os cabo-verdianos, nunca conseguiram regressar ao seu país. E hoje ainda é comum encontrá-los a trabalhar na agricultura.

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Miguel Madeira/TAP

Pimpa sabe de cor os dias de viagem que o Infante D. Henrique percorreu, mesmo antes de o apanhar em Santiago, até ao Príncipe, onde atracou. Diremos só que levou 11 dias a chegar. Depois da independência começou a fazer “capinação com a enxada”, para limpar terrenos e caminhos. Decidiu plantar ananás. “Dá qualquer coisinha. Vendo aos portugueses, aos membros do governo [de STP], mas aqui não tem saída, fica a apodrecer.” A maior parte da tonelada e meia de ananás que produz é desperdiçada, diz, pontuando qualquer frase nossa com um delicado “exactamente”. Enquanto percorremos o terreno, vemos as plantas repletas de fruto a poucos centímetros do chão.

Entramos na casa em madeira que está a construir, “porque a outra já está cansada”. Abre um ananás que corta cuidadosamente às fatias. Pousa-o em cima de uma cadeira, onde colocou um paninho. E confessa que, aos 65 anos, está como a casa, cansado e doente. “A próxima vez que vierem, já não estou. Estou a ficar transparente.”

Nhô Jô

A cultura não espera

Foi difícil fazê-lo dizer que tem 80 anos, mas muito fácil pô-lo a falar do seu grande orgulho: o café. Nhô Jô partiu de Santo Antão, em Cabo-Verde, em Maio de 1960. “Foi uma crise que me trouxe para cá, uma seca muito grande.”

Sempre foi agricultor. “Desde que comecei a entender o meu nome que peguei na enxada. Vinha a chuva, enxada para mim.” No Príncipe, começou a trabalhar na roça Sundy, nas produções de cacau e café; depois na Bela Vista. Era capataz. “Eu coordenava tudo. O feitor viu que eu era bom, compreendia as coisas.”

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Miguel Madeira/TAP

Depois da independência, em 1975, o governo de partido único do MLSTP nacionalizou as plantações. “Não se vivia bem. Só com a democracia [1990]. A vida melhorou quando tive a minha terra.” Atribuíram-lhe seis hectares e começou a trabalhar por sua conta. Começou por ter banana, milho, mandioca. “Mas a cultura não espera e eu comecei a ficar cansado. Plantei outras coisas para o futuro. Agora está tudo cultivado com café e palmar” — a palmeira do óleo de palma.

“Fui buscar as sementes de café a São Tomé: robusta, que aqui produz muito. Também há libérica – mas não tem tanta vantagem.”

A mulher, Marcelina, que agora varre pacientemente o chão, afastando as galinhas, é quem faz a torrefacção. “Ela tem um ponto certo.”

 

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Miguel Madeira/TAP

Guia prático

Como ir

A TAP tem três voos semanais com escala em Acra, no Gana. Para o mês de Julho, custam a partir de 717 euros, ida e volta. Em períodos de menor procura, o preço pode descer para os 464€. Voar de São Tomé para o Príncipe custa cerca de 170 euros.

Onde dormir

São Tomé

Omali Lodge Boutique Hotel
100€ por pessoa e por noite em quarto duplo com pequeno almoço e transfer incluídos.
Tel.: +239 222 2479
Email:reservations@omalilodge.com
www.omalilodge.com

Príncipe

Bom Bom
175€ por pessoa e por noite em quarto duplo com pequeno-almoço e jantar.
Tel.: + 239 225 11 14
Email: reservations@bombomprincipe.com
www.bombomprincipe.com

 

Comer e beber

São Tomé

Roça São João
No restaurante de João Carlos Silva, por baixo da pousada com o mesmo nome, os menus de degustação custam 15 euros sem bebidas.

Dona Teté
Peixe do dia grelhado, saladas de búzio ou de polvo. Com bebidas e sobremesa, o jantar fica pelos 10 euros. O restaurante fica perto da grande avenida Marginal 12 de Julho.

Omali Lodge
O restaurante do hotel tem uma carta renovada com o apoio do chef André Magalhães (da Taberna da Rua das Flores, em Lisboa) e executada pelo chef são-tomense Paulo Rocha Ramos.

 

Príncipe

Zinha
Rua Feliz, 95, Santo António. Comida caseira da Zinha que inclui molho de peixe, feijoada ou polvo.

Associação Cultural Rosa Pão
Gerida pela Dona Rosita (rosapaoprincipe@gmail.com). Também de comida caseira, que vai de rissóis a peixe grelhado com banana

Roça Sundy
O hotel só estará aberto a partir de 1 de Junho mas já é possível almoçar ou jantar mediante reserva. reservations@hotelrocasundy.com

 

O que levar

Um passaporte com seis meses de validade é obrigatório, assim como repelente e dinheiro. Não há multibanco (há uma caixa, mas só para contas locais) e levantar dinheiro ao balcão pode ser impossível. A profilaxia da malária é aconselhada, apesar de esta estar quase erradicada; na consulta do viajante também se aconselham as vacinas da febre amarela e tifóide e da hepatite A.

A Fugas viajou a convite da TAP e do grupo HBD

 

 

 

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