Fugas - Viagens

  • A livraria de Lou é uma das poucas lojas de livros chineses em Lisboa
    A livraria de Lou é uma das poucas lojas de livros chineses em Lisboa Rui Gaudêncio
  • loja de Yiliang é a primeira paragem da visita
    loja de Yiliang é a primeira paragem da visita Rui Gaudêncio
  • No rés-do-chão do número 51A da Rua dos Anjos funciona o templo da Associação Daoista (ou Taoista) de Portugal
    No rés-do-chão do número 51A da Rua dos Anjos funciona o templo da Associação Daoista (ou Taoista) de Portugal Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio

Passear pela China sem sair da Mouraria

Por André Jegundo

Esboçámos umas palavras em mandarim e tentámos fazer contas num ábaco. Fomos às compras no supermercado e descobrimos uma das poucas livrarias chinesas em Lisboa. Acabámos a tarde num restaurante que não aparece nos guias. Tudo sem sair da lisboeta Mouraria.

Na Mouraria já não há apenas rouxinóis nos beirais, a Severa de voz saudosa e as guitarras a soluçar. Há recantos onde se ouve falar mandarim, o aroma no ar é a chá de crisântemo e as capas dos jornais estão escritas em grandes caracteres chineses. Esta Lisboa, recôndita e desconfiada, que passa despercebida mesmo para quem lá anda todos os dias, pode agora ser desvendada.

Para pôr em contacto dois mundos que vivem lado a lado mas que raramente se cruzam, a Associação Renovar a Mouraria está a organizar visitas guiadas à China lisboeta. Joana Dias é a guia e intérprete da visita. Começou a calcorrear estas ruas pouco tempo depois de ter regressado de Pequim, onde estudou língua e cultura chinesa. Mergulhou na comunidade chinesa da Mouraria, ganhou a confiança das pessoas. E estas abriram-lhe as portas.

Conheceu Yiliang e a mulher, que têm uma loja no centro comercial da Mouraria. Conversou com o professor Wu e a professora Luo, que gerem uma discreta livraria chinesa. E descobriu o salão de beleza onde Liang cuida do cabelo preto e denso das mulheres chinesas do bairro. A partir daí, conta Joana Dias, passou a ter uma visão diferente sobre estas ruas: ficou a conhecer "um outro mundo". "Ele está diante de nós, mas é-nos completamente desconhecido e barrado", diz. Levantemos, então, o véu que cobre a China Lisboeta.


1.ª etapa: Os últimos gritos da moda chinesa

Há uma antiquíssima superstição chinesa ligada ao número 4. Resulta de uma semelhança fonética entre as palavras "quatro" e "morte". A superstição é levada a sério por alguns: há quem evite ter números de telemóvel com quatros, mas também há prédios onde o quarto andar não é nomeado: passa-se do terceiro para o quinto. Não é de estranhar, por isso, que no centro comercial Mouraria, no Largo Martim Moniz, a grande maioria das lojas chinesas se concentre nos três primeiros andares e, sobretudo, no 3.º andar, mesmo às portas do malfadado 4.º. É aqui, no terceiro andar, que está a loja de Yiliang, a primeira paragem na visita.

O interior da loja, das paredes até o tecto, está repleta de brincos, colares, anéis e ganchos. É daqui que saem muitos produtos de bijutaria que são vendidos nas lojas chinesas, e que chegam a Portugal em navios que têm que dar a volta ao mundo.

Yiliang tem 28 anos e chegou a Portugal há cerca de três, acompanhado da mulher. Gosta do tempo ameno e das praias mas, se quisermos ver montanhas, recomenda-nos que visitemos a China. "Lá há montanhas altas e bonitas como não há cá", garante. Gosta de trabalhar com portugueses, mas nota algumas diferenças na cultura de trabalho: "O português chega à hora de sair e sai mesmo que o trabalho esteja feito ou não. Os chineses só saem quando o trabalho está feito!".

A maior parte dos chineses que reside e trabalha na zona da Mouraria são provenientes da região de Zhejiang - Wenzhou, a Sul de Xangai, mas muitos chegaram a Portugal provenientes de outros países europeus. "A maioria chegou há quatro, cinco anos anos e vão ficar cá por um período transitório. Querem fazer algum dinheiro e, depois, pretendem regressar ao país para fazer uma casa e viver tranquilamente os últimos anos de vida", conta Joana Dias. Yiliang diz que, para já, está "para ficar". 


2.ª etapa: Os chás, as mezinhas e os temperos


Percorremos a pé a Rua da Mouraria até chegarmos à entrada do supermercado Hua Tali, já virado para o largo Martim Moniz. Dois ofegantes vendedores chineses acabam de chegar. Trazem pesados baldes com berbigão que veio de Almada. Tentam convencer-nos a levar uns quilos, mas os petiscos chineses estão lá dentro, no supermercado. 

Numa vitrina, logo à entrada, há pato assado com molho picante, miúdos de aves, pão cozido a vapor. Iguarias prontas para levar e comer e que são muito procuradas pelos chineses. Nas prateleiras há bebidas tradicionais chinesas, como a aguardente de arroz. Algumas garrafas estão embaladas em papel prateado e dourado e, dizem-nos, no interior escondem um segredo: um lagarto. 

De seguida, vamos para a zona da fruta, que é muito apreciada pelos chineses para limpar os sabores da boca entre os diferentes pratos da refeição. "Habitualmente, os chineses comem mais do que um prato à refeição, uns mais ácidos e temperados, outros mais doces. E a fruta é servida pelo meio", diz Joana Dias. A melancia é um dos frutos favoritos dos chineses.

Mais à frente, há uma importante área no supermercado exclusivamente dedicada às mezinhas e aos chás, que são utilizados para prevenir doenças e constipações, e que são uma parte importante da medicina tradicional chinesa. Depois, seguem-se os temperos, muitos temperos. 

Na parte dos refrigerantes está o mais popular chá de ervas da China, o Chá Wang, que é vendido em latas. Mas o supermercado Hua Tali não é apenas o local onde comunidade chinesa vem comprar os produtos frescos e a mercearia. Aqui vendem-se jornais e revistas chinesas, mas também se oferece ou procura trabalho: à entrada do estabelecimento, há dezenas de papéis recortados e escritos em mandarim com ofertas de trabalho dirigidas à comunidade chinesa. 


3.ª etapa: A livraria da professora Luo


Escondida dentro do Centro Comercial Martim Moniz, encontramos a livraria do professor Wu e da professora Luo, uma das poucas lojas de livros chineses em Lisboa. Tem clássicos chineses, livros para se aprender mandarim, manga, banda desenhada e artesanato em tons de vermelho: uma cor que os chineses acreditam que afasta as más energias e potencia a fortuna e a boa sorte.

A senhora Luo, de 67 anos, está sentada numa pequena secretária com um leitor de DVD à frente. Conta que veio para Portugal em meados de 2009. Diz que o ambiente "físico e humano do país" é muito bom. Prova disso é que, desde que chegou, ainda não teve "uma constipação". Pouco a pouco, começou a construir uma rotina: todos os dias à noite vai até à zona da Alameda, onde pratica tai chi, a arte chinesa dedicada à meditação em espaços verdes. Nos tempos livres, gosta de passear e ver as lojas - mas, para a antiga professora primária, que sabe falar russo, já é tarde de mais para aprender o português. "A língua é um grande obstáculo para que portugueses e chineses possam conhecer-se melhor. Se eu soubesse falar português poderia fazer tantas coisas! Assim tenho que ficar aqui sentada o dia todo", conta. 

Em cima da mesa, ao lado do leitor de DVD onde vê as novelas chinesas, têm um ábaco, um antigo instrumento de cálculo com que ainda faz algumas contas e onde treina os números em português. "É muito comum na China", diz Joana Dias. 


4.ª etapa: No templo taoista


À primeira vista não parece, mas é no rés-do-chão do número 51A da Rua dos Anjos que funciona o templo da Associação Daoista (ou Taoista) de Portugal: são portugueses mas, do ponto de vista espiritual e filosófico, seguem os ensinamentos e as práticas do taoismo, uma das mais tradicionais religiões chinesas, criada há mais de dois mil anos. "É um facto que hoje a maior parte dos chineses são budistas mas o taoismo é uma das primeiras grandes religiões populares da China", diz Joana Dias.

O símbolo Yin Yang, o círculo metade branco e metade preto, que é o mais conhecido diagrama da religião, não podia faltar neste templo: representa a dualidade de forças com que o taoismo olha para o mundo - acção e inacção, luz e escuridão, quente e frio. Convidam-nos de seguida para uma sessão de meditação, que é uma das práticas mais comuns do taoismo. "Meditar é sonhar acordado, sonhar em consciência", diz uma das responsáveis da Associação Daoista.

A sessão começa com exercícios de respiração, que é para os taoistas uma das formas de trabalhar e regular o ch"i, a energia cósmica vital que permite a todos os seres sobreviverem e ligarem-se ao universo como um todo. Depois dos exercícios de respiração, segue-se um longo período de meditação em silêncio, com música taoista em fundo. Para os taoistas, os rituais de meditação podem ser feitos diariamente e, por isso, o templo da Associação Daoista de Portugal abre as portas todos os dias e também ao fim-de-semana.


5.ª etapa: Restaurantes que não aparecem nos guias


Na zona da Mouraria, há restaurantes chineses que passam despercebidos. Alguns funcionam em segundos e terceiros andares de edifícios e, à entrada, não têm qualquer indicação. Na Avenida Almirante Reis, conduzem-nos até ao terceiro andar de um prédio. Tocamos à campainha e entramos num apartamento. Logo à entrada há uma sala ampla com duas mesas postas, depois, noutras divisões, salas privadas que podem ser reservadas. É a estes restaurantes que muitos chineses vêm comer, sejam lojistas ou comerciantes.

Provamos um magnífico chá de crisântemo com mistura de chá verde, um sabor suave e floral. Depois são servidas umas bolinhas de massa estaladiça com um recheio de sabor agridoce, uma sopa de peixe com picante, tofu salteado com molho vermelho ou couve chinesa com cogumelos.

Escolher o que comer pode ser uma tarefa complicada, uma vez que os menus estão exclusivamente em chinês e quem serve não fala muito bem português. O melhor é pedir três ou quatros pratos para experimentar ou então fazer a visita guiada com guia e intérprete.

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