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Os desbravadores de montanhas

Por Rute Barbedo

Os runners andam aí, pela estrada, areais e encostas serrenhas. Os que se fartam do asfalto descobrem, um dia, que os trilhos de terra dos pastores e caminheiros servem para correr.

Já foram dezenas; hoje são milhares. O trail running ganha novos adeptos e provas (dos 10 aos 100 km) todas as semanas, e anda a desbravar a terra para pintar as pernas de lama e sangue arrancado pelas silvas.

– Haviam de comer broa de milho, chouriço e presunto. Para aguentar isto!

– E umas boas copadas por cima!, diz o outro.

Perguntamos como conhecem a serra.

– Como a palma das mãos. Íamos muitas vezes à Senhora do Minho, por ali acima. Mas não era a correr, não…!

Riso generalizado.

– Mas isto é bom, insiste ela. A aldeia fica mais conhecida e as pessoas consomem.

– E andaram a limpar o monte. Daqui a bocado nem as cabras passavam ali… Se não fossem as corridas, ninguém limpava nada.

– Pois… É o turismo, remata o mais velho.

Nem todos os domingos acordam tão cedo quanto este em São Lourenço da Montaria, aldeia carregada de granito e de Alto Minho. Pouco passa das 9h e o Café Montariense já ergueu os estores e lançou três mesas ao pátio. Na primeira, cinco serranos de idades entre os 50 e os 75 anos debatem coisas da vida — como a cerveja ser um repulsor de abelhas ou a vegetação ter sido devastada nos incêndios de Verão.

No minimercado, o primeiro do largo a abrir portas, ainda a máquina de café não aqueceu e já um homem de calções de licra e sapatilhas fluorescentes compra um cacete galego e uma garrafa de vinho verde. “É o dia do ano em que há mais movimento, até mais do que nas festas de Agosto”, diz Daniel Brito, o proprietário, natural da freguesia com cerca de 600 moradores (registados) que hoje recebe 2000 visitantes sedentos de corrida.

O que se faz na Montaria? “Leva-se uma vida pacífica, com um bocadito de agricultura, um bocadito de turismo… Há os moinhos, os percursos pedestres… E agora com as corridas as pessoas conhecem mais isto e até vêm aqui a meio do ano fazer caminhadas.” O comerciante interrompe a conversa para cumprir o seu papel: “Vai um cheirinho, senhor Vítor?” Volta para dar graças a Deus que “o céu limpou de repente”, quando todas as nuvens prenunciavam o contrário. “Esta semana até houve inundações no Alentejo, veja lá! O que seria destas pessoas todas se andassem por aí a correr com chuva?”

Junto ao cruzeiro, homens de um lado, mulheres do outro. Olham curiosos as mochilas ergonómicas e os adesivos psicadélicos colados às pernas; as selfies tiradas com câmaras de dez centímetros e cabos de metro e meio; o vaivém de carrinhas que transportam os runners da montanha, apetrechados, compenetrados, cheios de adrenalina.

Ao todo, em dois dias de eventos — 27 e 28 de Setembro — há 1987 pessoas a participar nas seis provas do Grande Trail da Serra d’Arga: o ultra-trail (53 km), o trail longo (33 km), o curto (20 km), a caminhada (13 km), o trail jovem (entre os 500 e os 2000 metros) e a corrida vertical (4,5 km e 800 metros de desnível positivo). Há quatro anos, na primeira edição, os participantes não chegavam aos 700, e “há sete ou oito anos organizavam-se provas no quintal do amigo”, ilustra Carlos Sá, o primeiro ultramaratonista profissional no país e organizador da prova da Serra d’Arga.

Em primeiro lugar, o que é o trail? Correr no meio do monte, como fazia Carlos Sá em miúdo no concelho de Barcelos, é uma das definições possíveis. A outra, mais completa e adoptada pela Associação de Trail Running de Portugal (ATRP), diz o seguinte: trata-se de uma corrida pedestre em natureza, com um máximo de 10% de percurso pavimentado. Pode atravessar vários ambientes — serra, montanha, vales e planícies, rios e florestas — e terrenos — estradão, caminho florestal, trilho, areia ou rocha — e é realizado em auto-suficiência completa ou parcial.

Os percursos são devidamente balizados e sinalizados, respeitando-se “a ética desportiva, a lealdade, a solidariedade e o meio ambiente”, lê-se no website da associação. Em Portugal, a designação de trail existe há cerca de dez anos, embora já se praticassem desde 1995 (oficialmente) as corridas de montanha, com o primeiro circuito nacional a atravessar serras como as da Estrela e da Lousã.

“Mas só nos últimos cinco anos temos assistido a um crescimento mais intenso do trail. Surgem novas provas todas as semanas”, comenta José Carlos Santos, presidente da ATRP e atleta, que contabiliza uma média de 200 corridas da modalidade realizadas por ano. O “crescimento explosivo” faz com que “talvez sejam hoje em maior número do que as [provas] de estrada”. Paralelamente, o volume de associados da ATRP quintuplicou desde Dezembro de 2012. “Hoje temos mais de 1600 associados e cerca de 140 clubes”, retrata o presidente da associação.

Ainda assim, não é possível aceder aos números reais, que extrapolam as superfícies associativas e serão muito superiores aos registos disponíveis. Num estudo recentemente divulgado pelo IPAM (Instituto Português de Administração de Marketing), foram estimados 1,45 milhões de praticantes de corrida (nas suas diferentes modalidades e ambientes) em Portugal, ainda que a maioria (67% dos 583 runners inquiridos) prefira os circuitos urbanos.

Eu, a natureza e o desafio
O que aconteceu, então, para que num curto espaço de tempo o trail ganhasse tanto terreno no panorama do desporto amador? “Isto traz-nos de novo à aldeia dos nossos avós e à nossa natureza, para além de tornar as pessoas mais activas e saudáveis. Aqui, elas atingem os seus objectivos desportivos e pessoais”, explica Carlos Sá, que passou de fumador de dois maços de cigarros por dia a vencedor de provas como a Badwater – 217 km no deserto da Califórnia. Numa abordagem mais panorâmica, José Carlos Santos sistematiza: “A explicação que encontro tem a ver com o crescimento da corrida de uma forma geral.

No trail, particularmente, há o contacto com a natureza, a possibilidade de visitar locais belíssimos e de ultrapassar obstáculos, não há monotonia. E tem de haver, sem dúvida, muita determinação e resiliência.”

Globalmente, não “é um fenómeno fácil de explicar”, admite Jorge Vieira, presidente da Federação Portuguesa de Atletismo, à qual a ATRP se associou em Maio deste ano dando um passo em frente no reconhecimento, visibilidade e regulamentação da modalidade.

Mas um dos principais rastilhos do entusiasmo relativo ao trail acende-se no campo da motivação, como concede o também psicólogo: “O que procuramos ao longo de toda a vida são desafios e, neste caso concreto, para além de uma moda — essa vontade de entrar em concordância com a multidão —, há sobretudo uma necessidade de desafio muito forte, em que as pessoas vão assumindo objectivos cada vez mais ousados.”

Dos que se deslocaram do estrangeiro para participar no Grande Trail da Serra d’Arga, muitos são emigrantes que voltam à terra, saudosos dos montes de outros tempos. Depois, “é muito pelo convívio, para estar com os amigos e repor as calorias todas no almoço depois da prova”, explica o runner Luís, enquanto acerta o lenço na cabeça, a minutos da partida do trail curto.

Talvez das uvas em volta goteje o sumo para o tal almoço. Mas antes que o porco cheire a pronto no espeto, o aroma a bálsamo para massajar os músculos domina a praça. Entre a multidão, próximo do coreto, o número 2093, João Xinhua, balança braços e pernas, compõe as meias, sorri nervoso. O 1403 exibe a coxa tranquila no banco de granito.

O senhor Carlos, presidente da junta, corre de um lado para o outro, de telemóvel ao ouvido. Vai à aldeia de Dem numa carrinha de caixa aberta; volta numa de caixa fechada, com três voluntários (o evento conta com 250, 80% são habitantes da Serra d’Arga). “Ó Susana, faz cuidado! Isto o que interessa é acabar a prova. Não vale a pena matares-te!” Toca o sino da igreja de Montaria. Partida.

Sangue, suor e lama
Como andores em dia de procissão, duas minicâmaras de vídeo erguem-se entre 600 corredores. “Não se distraiam a tirar fotos”, avisava Carlos Sá antes da partida, mas o culto da imagem — estática e em movimento — é mais forte. Gonçalo, de 13 anos, e Hélder, de 16, são os nossos guias por terras de Arga. Discutem entre eles o que há-de impressionar mais no percurso. Um diz que são as quedas de água do Pincho; o outro insiste no plano das águas bentas — o alto da Nossa Senhora do Minho, o miradouro da capela de São Mamede ou o lugar de São Francisco.

Subimos por entre bois robustos, pastores que usam do aceno para dar-nos alento, maciços de granito e bouquets de tojo entre as cabras. Travam-se os olhos frente ao pêlo dos garranos, a raça protegida de cavalos com Minho e Trás-os-Montes no ADN, com que se cruzam os atletas durante a prova. Do alto da serra, a 800 metros, ouve-se o rancho de Vilar de Murteda a cantar no sopé e há quem se sente nas rochas a ver que tal se portam os runners. “Olha, vem aí o Luís!” “Aquele não é o Luís, pá. O Luís é mais gordo!”, comenta a torcida.

Os Luíses, Pedros e Josés serpenteiam o trilho marcado por bandeiras cor-de-laranja. São miniaturas movediças na imensidão das rochas. Alguns param a meio da subida para respirar, suster os músculos e ampliar o fôlego. “Ai, Jesus, olha este… Tem os joelhos que mais parece Cristo a passar…”, nota uma mulher de Dem, freguesia vizinha, enquanto espera que o filho e a nora subam a encosta. “Eles andam sempre nisto das corridas”, conta.

O tojo deixa marcas até nas peles mais resistentes e muitas pernas acabam num misto de sangue, suor e lama. “Parece que andaram a peregrinar”, retoca Gonçalo, nosso guia. Perto de Tranzâncora, as dificuldades são outras: raízes de pinheiros e árvores de menor porte rebentam do chão, tornando o trilho escorregadio. Lá em baixo fica o ribeiro e uma queda nunca seria meiga, por isso, corre-se com prudência, concentração e pés firmes no solo.

O percurso “não pode ser demasiado duro, mas deve ter alguma dureza, obstáculos naturais, pedras, lugares onde temos de saltar pelas árvores, cursos de água e os melhores cenários de beleza, respeitando sempre o meio natural”, explica o organizador da prova. Dos desníveis com pontos de fuga que aterram no mar de Âncora até calçadas romanas, os atletas perfuram aldeias preservadas, cruzam o parque eólico, percorrem os quatro elementos — o fogo vai dentro do corpo.

Como explica José Carlos Santos, “não se trata apenas da distância e do tempo, mas de ultrapassar obstáculos num ambiente de isolamento”. Esse respirar fora da bolha do dia-a-dia, o exercício da força (física e psicológica), a superação e o contacto com as raízes que rebentam a terra são “uma terapia mais completa do que qualquer outra”, considera o presidente da ATRP, praticante de corridas de montanha há 20 anos. 

Cinco horas e 53 quilómetros depois, chegam à meta os primeiros atletas do ultra-trail. André Rodrigues, o vencedor, atira-se morto para o chão. Fazem-lhe perguntas, mas o que quer é esticar-se feliz no asfalto de Dem, onde o aparato das chegadas é composto por um animador ao microfone e colunas que vibram nas vozes de Kurt Cobain e Anthony Kiedis. O público empoleira-se sobre as grades, aplaude até as mãos arderem, conversa sobre o estado das coisas.

Do granito para o xisto
Da mesma forma que emigrantes vieram de Lyon para as margens do rio Âncora, muitos outros atletas amadores têm recorrido ao trail para viajar aquém e além-fronteiras. O turismo desportivo nos meios rurais tem corrido a boa velocidade, até porque quem participa num evento de trail running acaba por tocar em vários núcleos de negócio.

Como analisa o presidente da ATRP, “no sector interno, as provas geram um grande impacto nas comunidades locais, ao envolver as autarquias, a hotelaria, a restauração e o comércio; a nível externo, cada vez mais as provas portuguesas — como a da Serra d’Arga ou o Madeira Island Ultra Trail, que recebeu este ano 25 nacionalidades — recebem estrangeiros”.

Viajamos então para Sul, a caminho da serra da Lousã, com um Outubro a trazer chuva às aldeias do xisto e às AXtrail Series, um conjunto de provas carregadas de quilómetros. A maior é o Ultra Trail Aldeias do Xisto (UTAX): 109km, quatro concelhos, nove aldeias do xisto, quatro praias fluviais e o silêncio das horas serranas, tendo em conta que a corrida começa à meia-noite e pode prolongar-se por 24 horas. (O último a chegar à meta, Vitorino Coragem, 60 anos, viu o sol raiar e pôr-se, aguentando o passo de corrida e de caminhada durante 24 horas, 47 minutos e 28 segundos.)

O xisto é mais duro. Os habitantes não espreitam junto às metas e as janelas mantêm-se cerradas. Uns lembram que é noite — “estão a dormir” ; outros exclamam que as aldeias estão desabitadas; outros, ainda, contam que há quem retire as fitas sinalizadoras dos trilhos — “acham que é uma invasão do espaço deles”. “São ariscos”, comentam alguns voluntários da prova, enquanto bebem minis e provam o chouriço assado, referindo-se sobretudo aos habitantes do Catarredor, “a aldeia dos hippies”, como lhe chamam, e a única a rejeitar a integração na rede turística das Aldeias do Xisto.  

Uma linha de luzes coordenadas, como lanternas em cabeças de mineiro, sobe entre o breu e a bruma desde o Ameal até ao parque eólico. Para lá de um galho ou outro que quebra à força do vento, restam apenas o som narcótico de gigantes pás metálicas sobre as nossas cabeças e a respiração húmida de um ou outro coração ofegante.

O primeiro ponto de abastecimento dos atletas fica no Talasnal, um lugar equilibrado em encostas, a norte da ribeira de São João, onde já ninguém mora em permanência. Os últimos habitantes, a Ti Lena e o Ti Manel, partiram em 1981, mas a sua imagem permanece gravada na memória de xisto da aldeia.

Ainda que não haja moradores, não faltam lugares para provar chanfana e talaniscos — como o restaurante Ti’ Lena; para alargar o conhecimento — como a Lojinha da Ti Filipa ou o Retalhinho; e para dormir — como as casas da Urze e do Forno. Mas é na casa-abrigo que os corredores compõem o estômago. “Muitas vezes não temos fome, até porque em altitude sente-se muito enjoo, mas temos de comer. É muito importante para aguentar a prova”, ensina Ester Alves, 33 anos (vencedora, entre as mulheres, do UTAX).

A banca enche-se de bananas, tostas com Nutella, pão com chouriço, laranjas, batatas fritas, amendoins, marmelada, coca-cola, bebida isotónica e água. À 1h43, os atletas dão os bons dias a quem passa, com as pernas já negras de terra e os pés escorregadios nas escadas de xisto. Mas a respiração ainda dá notas de passeio tranquilo. 

Os muitos risos e mãos afáveis nas costas não são estranhos à atmosfera do trail. A grande maioria dos praticantes defende que a verdadeira razão da modalidade é o convívio e não o relógio. No entanto, no plano da organização de provas, a atitude “a minha prova é mais difícil e exigente do que a tua”, que tem servido para captar adeptos, como observa o presidente da ATRP, levanta alguma preocupação.

Daí a “necessidade urgente de regulamentar e supervisionar os eventos abertos à população” descrita por Jorge Vieira, da FPA, para quem “o desporto, só por si, não é saudável nem educativo; depende sobretudo da forma como é praticado”. O responsável frisa que “não são os eventos desportivos que dão saúde, mas sim o trabalho de preparação”. E daí pousa a ideia: a montanha não será para desbravar, mas para ir desbravando.

 

Entrevista
Gary David, sociólogo e runner: “Há uma oportunidade de ecoturismo no trail running

Gary David corre maratonas desde 1994, participou algumas vezes no Ironman (triatlo de longas distâncias que envolve 3,8km de natação, 180km de ciclismo e 42,195 km de corrida), fez muitos ultra-trails e pratica ciclismo. É director do Departamento de Sociologia da Universidade de Bentley, no Massachusetts, Estados Unidos, e co-autor do artigo The Spirit of the Trail: Culture, Popularity and Prize Money in Ultramarathoning, no jornal Fast Capitalism. Acredita que no trail há “uma experiência de reconexão com a natureza”.

O trail surge como um desporto individual que é praticado em grupo. Porquê esta tendência?
O treino em grupo sempre fez parte da corrida amadora. Podemos olhar para alguém como Arthur Lydiard [runner e treinador neozelandês que ficou conhecido pela popularização da corrida de longa distância], que tinha grupos de pessoas a correr com ele por questões de treino e fitness; e, a outro nível, podemos dizer que a caça primitiva, que envolvia a corrida, também era uma actividade grupal. Embora seja um desporto individual em termos de realização, muitas pessoas estão mais interessadas na experiência de grupo. Isto levanta a questão de se tratar, de facto, de um desporto.

Quais poderão ser as principais motivações na procura do desporto de natureza nas sociedades contemporâneas?
Uma será a segurança. Como ciclista, conheço muitas pessoas preocupadas em andar de bicicleta na estrada, por isso, o ciclismo de montanha ou o cross tornaram-se opções melhores e mais seguras. Além disso, no trail há variações. Dependendo da época, vemos coisas diferentes na natureza, o que torna mais fácil correr o mesmo percurso várias vezes.

Ao mesmo tempo, o trail running pode ser mais fácil para o corpo, mostrando-se uma opção favorável para os runners com tendências para lesões. Outra questão é que tendemos a preocupar-nos menos com a velocidade. É mais difícil olhar para o relógio quando estamos a tentar não tropeçar nos obstáculos! Finalmente, existirá uma experiência de reconexão à natureza, distante da vivência moderna que nos separa dela.

De que forma o trail passa de uma dimensão pouco significativa para um fenómeno massificado?
Há uma oportunidade de ecoturismo no trail running. E é muito fácil organizar uma excursão que envolva uma corrida num percurso definido, tal como acontece com as caminhadas. Então estamos a falar de possíveis benefícios económicos que trazem vantagens em termos de saúde para a sociedade. Além disso, é algo que conecta as pessoas às noções de sustentabilidade e de gestão de recursos.

As ultra-distâncias estão a ganhar cada vez mais terreno na modalidade. Há limites?
As ultra-distâncias têm os limites do tempo de treino e do interesse no evento. O Ironman é um bom exemplo. Este tipo de prova cresceu tremendamente e é um evento que requer muito tempo e recursos, ao contrário do que acontece numa ultra, onde umas sapatilhas e talvez uma mochila chegam. Em termos de distância, não há limites ou, pelo menos, ainda não o alcançámos. Há corridas por todos os Estados Unidos, por exemplo. Recentemente, houve uma prova de seis dias numa pista coberta do Alasca [Six Days in the Dome] ou corridas à volta do lago Tahoe [situado na Serra Nevada, com um perímetro de 114 km]… Há inúmeras corridas que ultrapassam as nossas concepções sobre até onde conseguimos ir.

 

Perfis

Bárbara Rocha, 31 anos, investigadora em Ciências da Saúde
Paulo Conceição, 46 anos, administrador de empresa

Não são completos habitués das corridas de montanha, mas são amigos e têm-se encontrado a correr pelo país. Bárbara treina duas a três vezes por semana para poder participar nas provas regularmente. Sempre praticou desporto, gosta de natureza, e o que a conduziu ao trail foi a “vontade de acelerar o hicking”. Vive em Aveiro, pelo que, entre viagens, inscrição, alimentação e alojamento, terá gasto à volta de 100 euros para participar no Grande Trail da Serra d’Arga.

Para Paulo, “a corrida sempre foi um treino para os outros desportos, mas agora passou a ser ‘o’ desporto”, conta o empresário que enverga no corpo 1500 euros de equipamento (só 600 estão no relógio com bússola). Ainda assim, “sai muito mais barato do que outros desportos”, comenta. Paulo treina 12 horas por semana e participa em mais de dez provas de trail por ano, principalmente porque, neste ambiente, “a competição é mais salutar”.  

 

Bruno Sousa, 31 anos, guarda prisional
Encontramo-lo sentado no alto da serra com as pernas feitas em arranhões, agasalhando o corpo com a força dos próprios braços. Bruno Sousa, cuja última proeza havia sido o segundo lugar na prova 24 Horas a Correr, em Vale de Cambra, perdeu-se do percurso e acabou por desistir da ultra. O Grande Trail da Serra d’Arga marca um ano sobre a sua entrada neste mundo. Antes, corria em estrada e chegou a fazer triatlo, mas havia “muita rivalidade”, diz. “Aqui pede-se desculpa e não se deita lixo no chão, respeita-se a natureza”, descreve o atleta. Ainda assim, admite que é preciso “gostar de sofrer”, sobretudo ao nível psicológico. Para aguentar a ultradistância e os 5000 metros de desnível positivo acumulado (a soma de todos os desníveis do percurso), treina 150 km por semana. Já perdeu a conta às provas que fez e que lhe deixam marcas no corpo. Ainda assim, “as dores não importam”.

 

Ester Alves, 33 anos, campeã nacional de skyrunning, doutoranda em Patologia Genética Molecular
Foi campeã nacional de ciclismo, deu cartas no remo e ingressou na aventura do trail em 2012. Hoje, é das melhores trail runners portuguesas, com provas dadas no estrangeiro — foi a oitava mulher a cruzar a meta no Ultra Trail du Mont-Blanc, um dos mais desafiantes percursos do mundo, com 168km. “Às vezes chega a ser um duelo [com a natureza], porque quando estamos em provas de trail temos de superar as mudanças de clima, as alterações de altitude… Podemos começar uma prova com chuva e frio e umas horas depois a situação está completamente alterada. Mas temos de estar preparados para tudo. No trail, diz-se que muitas vezes morremos e depois renascemos, e há mesmo muitos momentos assim”, diz Ester, com uma cábula do percurso do Ultra Trail Aldeias do Xisto (que venceu) marcada a caneta no braço.

Pratica trail pela “satisfação de superar cada desafio”. “São momentos que irei recordar aos 80 anos”, confessa. Na sua outra vida, é investigadora na Faculdade de Medicina do Porto, onde o tempo de biblioteca lhe permite parar o corpo e exercitar o cérebro, para alcançar o equilíbrio.

 

José Marçal, 53 anos, agente da PSP
“No ano passado fiz a prova [73 km] em 13 horas”, congratula-se o polícia, cuja principal expectativa num trail é “chegar ao fim”. Começou a correr há cinco anos, na Corridas das Fogueiras (15 km), em Peniche, onde “ia morrendo”. Mas decidiu insistir, primeiro pela camaradagem, depois, por vício. “Não faço isto todos os fins-de-semana, mas corro assiduamente. Levanto-me de madrugada, ando não sei quantos quilómetros para ir a uma prova, mas depois é um prazer enorme, uma grande liberdade.”.

Antes, era fumador, depois, viu o trail crescer e foi “crescendo com ele”. “Já fiz oito maratonas mas larguei a estrada, porque dá cabo das costas. Nos trilhos, há picos e momentos mais calmos. Subir, por exemplo, é a caminhar. Não quero terminar a cair.” Nos pés tem umas sapatilhas de 80 euros, para usar durante a noite; de manhã, troca-as por umas de 160. “Vamos comprando, mas há preços para todos”, aponta.

 

Vitorino Coragem, 60 anos, funcionário público
Mudou-se da estrada para a montanha porque encontrou o seu “habitat”. Começou pelas caminhadas, mas um dia, quando o ritmo deixou de o preencher, decidiu acelerar. “Eu fui desportista até aos 25 anos, mas depois tive um interregno de 20 anos na minha vida. Estava a ficar gordo, com vida de sofá… Com a idade é que vamos aprendendo a ver o que faz bem à saúde”, explica.

E a Vitorino faz bem, particularmente, o exercício físico, conhecer pessoas, aprender com a natureza e a paz de espírito que encontra neste tipo de provas. Em 2013, ficou em terceiro lugar no circuito nacional de trail, na categoria de maiores de 50 anos. Foi o último a cruzar a meta no UTAX, quase 25 horas depois da partida. Mas terminou.

 

Logística de montanhas

No Grande Trail da Serra d’Arga

50 elementos do staff

250 voluntários

1987 inscritos

495 homens e 46 mulheres inscritos no ultra-trail

368 homens e 188 mulheres no trail curto

150 mulheres e 51 homens na caminhada

400 litros de água

1000 litros de bebida isotónica

1000 litros de coca-cola

400 kg de bananas

400 kg de laranjas

2000 barras energéticas

500 pães com chouriço

2000 pães

30 profissionais de apoio (GNR, bombeiros, socorristas, médicos, fisioterapeutas e massagistas)

7 autocarros

1500 bandeiras sinalizadoras

3 autarquias envolvidas (Viana do Castelo, Caminha e Ponte de Lima)

 

Nas AXtrail Series

300 profissionais e voluntários na organização

40 bombeiros

5 municípios (Castanheira de Pêra, Lousã, Miranda do Corvo, Góis e Penela)

1216 inscritos

256 atletas participaram no ultra-trail; 160 finalizaram o percurso

73 crianças inscritas no AXtrail Kids

5 equipas inscritas no AXtrail da Inclusão (primeira corrida de joelletes – cadeira mono-roda que, com a ajuda de acompanhantes, permite a prática de pedestrianismo e o acesso a áreas com pisos irregulares a pessoas com mobilidade reduzida – realizada em Portugal)

1440 litros de água

768 litros de coca-cola

55 kg de marmelada

20 kg de tostas

320 sacos de batata-frita

10 kg de amendoins salgados

2000 sandes de chouriço e mistas

2000 bananas

1500 laranjas

 

Guia prático

Equipamento e inscrições
Em Portugal, o valor de inscrição para uma prova de trail running pode variar entre os 10 e os 70 euros, o que faz com que em muitos fóruns públicos e redes sociais o debate sobre a mercantilização do trail seja frequente. A isso, Carlos Sá, organizador de provas em Portugal, responde: “O atleta leva para casa um kit que vale mais de 100 euros e paga 20 pela inscrição, portanto, é um péssimo negócio para a organização! Além disso, tudo isto envolve uma logística brutal [ler “Logística de montanhas”], desde questões de segurança até cuidados médicos.”

Em relação ao equipamento necessário, a oferta não pára de aumentar. Um estudo recentemente publicado pelo IPAM revela que um atleta (seja de estrada ou de trail) gasta, em média, 195 euros por ano em vestuário e calçado desportivo. Mas o valor varia consideravelmente consoante o perfil do atleta, a regularidade com que se pratica corrida, o tipo de terreno e as condições atmosféricas.

Quando correr

16 de Novembro – Arrábida Ultra Trail – Palmela – 14,5; 23 e 80 km

23 de Novembro - Ultra Trail Amigos da Montanha - Barcelos - 25 e 60 km

29 de Novembro - Montemuro Trail - Castro Daire - 20 e 40 km

30 de Novembro - Maratona Trail do Sarilho - Cantanhede - 15 e 35 km

7 de Dezembro - Trail de São Silvestre - Viana do Castelo - 15, 25 e 45 km

13 de Dezembro – Inatel Albufeira Night Trail – Albufeira – 20 e 47 km

21 de Dezembro - Christmas Trail Amarante - Amarante - 12 e 27 km

21 de Dezembro - Xmas Trail - Serras de Negrelos e de Canelas, Vila Nova de Gaia - 9 e 17 km

3 de Janeiro - Trilhos Noturnos dos Templários - Santa Cita - 10 e 15 km

10 de Janeiro - Território Circuito Centro - Etapa de Proença-a-Nova - 20 e 40 km

30, 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro - Trilhos dos Abutres - Miranda do Corvo - 12, 25 e 50 km

7 de Fevereiro - Território Circuito Centro - Etapa de Vila Velha de Ródão - 20 e 40 km 

8 de Fevereiro - Trail de Sta. Luzia - Viana do Castelo - 15 e 45 km

28 de Fevereiro e 1 de Março - Trail de Conímbriga Terras de Sicó - Condeixa-a-Nova - 17, 25, 65 e 111 km

7 de Março - Território Circuito Centro - Etapa de Vila de Rei - 20 e 60 km

15 e 16 de Março - Trilhos do Paleozóico - Serra de Santa Justa e de Pias, Valongo - 45, 21, 12 Kms

28 de Março - Inatel Piódão Ultra Trail - Piódão - 15, 21 e 50 km

11 de Abril - Território Circuito Centro - Etapa da Sertã - 20 e 40 km

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