O telefonema que fazemos para Luís Rato, presidente da Associação de Street Food Portugal, apanha-o em Lisboa, mais exactamente em frente aos armazéns do El Corte Inglés, junto ao Bairro Azul. “Quer falar sobre o movimento de street food? Porque é que não vem ter comigo? Estou ao pé de uma carrinha de hot dogs.” Passados vinte minutos estamos com Luís Rato junto à moto adaptada à venda de cachorros quentes da Chamo’s, um projecto do luso-venezuelano Lucas Lopes.
Foi um acaso apanhar Luís Rato em Lisboa. O empresário está baseado no Cartaxo, onde tem o seu principal negócio, uma fábrica de veículos para transporte de cavalos. E é precisamente por causa da sua experiência com veículos que está hoje no centro da onda de comida de rua a que se assiste em Portugal.
Tudo começou há cinco anos, conta. “Estávamos no final de 2009 e Portugal atravessava uma fase complicada. Muita gente da classe média e média-alta estava a ficar desempregada mas ao mesmo tempo havia um grande movimento à volta da nossa gastronomia.” Foi nessa altura que o chef Chakall lhe apareceu com uma proposta: queria transformar uma Piaggio num veículo onde pudesse viajar pelo país e cozinhar. “Percebemos imediatamente que havia ali um bom potencial para fazer negócio”, recorda Luís Rato.
Passados cinco anos, o empresário do Cartaxo diz que tem na rua cerca de 200 veículos transformados pela sua fábrica — e, na maior parte dos casos (90%), com negócios aos quais está também associado. Quando alguém quer lançar-se num projecto de street food geralmente contacta-o para perceber o que é necessário. E, para além do veículo transformado, Luís Rato ajuda com o desenvolvimento da ideia e depois acompanha a sua concretização — precisamente como está a fazer com Lucas Lopes no momento em que o encontramos.
“O que fizemos foi pegar numa Piaggio, uma mota pela qual ninguém dava nada, e torná-la mais gourmet, mais apelativa. Para nós o conceito de street food não tem só a ver com a parte gastronómica, é um conceito de arte. O veículo tem um conceito vintage, não pode agredir nem provocar ruído visual”, explica. Há, para Luís Rato, uma grande diferença entre esta moda que está a afirmar-se em vários países e as tradicionais roulottes de bifanas ou farturas (ver texto nestas páginas). Estas, diz, são “venda ambulante de comida”, enquanto as primeiras “transmitem uma ideia de gourmet, premium, boa comida, alguma irreverência, lifestyle”.
De uma coisa está absolutamente convencido: o movimento chegou para ficar. “Não é uma moda, é uma tendência.” Não só cada vez há mais gente que quer lançar-se num projecto deste tipo como forma de criar o seu próprio emprego, como as grandes marcas também já perceberam o potencial de estar na rua, mais próximo das pessoas. “A Ikea já tem seis ou sete food trucks a vender almôndegas. Há anos que conhecemos a Olá na rua e foi assim que nos pôs a comer gelados no Inverno. Dos 200 veículos que temos na rua, 40 são da Olá. Hoje todas as marcas querem estar na rua.”
Este cenário deixa-o muito optimista. “Vamos crescer nos próximos quatro ou cinco anos na ordem dos 20, 25% ao ano tanto no mercado nacional como no internacional.” Para já, garante, em dois anos conseguiram uma facturação entre os 2,5 e os 3 milhões de euros. Procura no telemóvel e encontra outras notícias que reforçam a ideia. “Em Bruxelas o negócio da street food já vale 30 milhões de euros, nos Estados Unidos há projecções que falam em 2,7 mil milhões de euros para 2017, no Brasil cidades como São Paulo e o Rio já têm legislação específica para food trucks, Paris abriu recentemente 90 lugares, em Espanha está também a haver um movimento enorme. Estamos perante um novo negócio”, conclui com entusiasmo.
Em Abril, já com mais de 70 food trucks construídos, Luís Rato soube que José Borralho, da associação Aptece, ia organizar um Congresso Mundial de Turismo de Culinária, no Estoril. “Pedi-lhe para fazer um evento para os meus clientes, porque na altura já tinha clientes suficientes para um festival de street food.” Foi assim que uma série de projectos de comida de rua invadiram os jardins do Casino naquele que foi o primeiro de uma série de festivais que durante todo o Verão se multiplicaram pelo país, mantendo os novos food trucks sempre ocupados.
Quem tem uma carrinha deste tipo tem duas hipóteses: arranjar um lugar fixo na rua (em Lisboa as autorizações são dadas pelas juntas de freguesia, que têm aberturas diferentes em relação ao assunto) ou fazer o percurso dos vários eventos, desde os festivais de música do Verão até aos festivais especializados em street food. A Associação de Street Food Portugal, criada há apenas quatro meses e que tem Luís Rato como presidente e José Borralho como vice-presidente, está por trás da organização de vários destes festivais. E agora, com o Inverno, como vai ser?
Luís Rato garante que não vai ser mais difícil porque “este não é um negócio sazonal”. Mesmo durante o Inverno as pessoas vão querer comer na rua, afirma, lembrando que as castanhas assadas são comida de rua — e de Inverno. Quanto aos eventos, “o mercado não está saturado, pelo contrário, há cada vez mais necessidade de haver este tipo de iniciativas”. A diferença é que com mau tempo elas poderão realizar-se mais em espaços fechados.
E que conselhos dá a quem quer lançar-se num negócio destes? “Para o projecto dar certo é preciso, em primeiro lugar, eu acreditar nele.” O produto é muito importante, claro — e Luís Rato considera que os monoprodutos, como os hambúrgueres ou os cachorros, são a aposta certa, em vez de conceitos mais complicados com uma oferta muito variada porque aí “passamos a ter um supermercado na rua” — mas “o carisma da pessoa também é fundamental”. Depois, é preciso fazer o investimento — entre os 10 mil e os 40 mil euros, diz — e partir para a rua.
Fomos conhecer cinco destes projectos e perceber como é que as coisas se passam quando se chega finalmente à rua e se abre a capota para começar a vender comida.
Pão à antiga
Cláudia Dias
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É uma carrinha pequena (ou era da primeira vez que a vimos, porque entretanto cresceu um pouco) e mal se percebe como é que ali cabe um forno a lenha. Mas o facto é que é dele que saem os pães com chouriço, com queijo de cabra, tomate e orégãos ou com farinheira. E ainda há espaço para um jarro de vinho.
O projecto partiu de Cláudia Dias, psicóloga que decidiu deixar o emprego depois do nascimento da filha. “Conhecia uma pessoa que tinha a ideia de fazer pão num forno de lenha tradicional”, conta. Mas depois acabou por avançar sozinha, apesar de “sobre pão saber apenas que levava água, farinha e sal”. Começou a fazer pesquisas na Internet e foi aprendendo. “Quando começámos, apanhávamos também pessoas de idade que achavam piada e que nos davam dicas. Houve uma aprendizagem de rua.”
A maior preocupação foi com a qualidade dos produtos. “Trabalhamos com enchidos de Rio dos Moinhos, com chouriço e farinheira fumados a lenha, queríamos produtos muito tradicionais.” Quem normalmente está com a carrinha é um jovem que Cláudia conhece há muito tempo, o David, e foi assim, com nenhuma experiência mas uma grande vontade de aprender, que em Fevereiro passado se instalaram pela primeira vez no espaço da LX Factory, em Alcântara, Lisboa.
A seguir lançaram-se na rota dos festivais e feiras e durante o Verão não pararam. “As feiras são muito importantes porque o mais difícil é ter um espaço fixo”, explica Cláudia. “Com excepção de uma ou outra junta, ainda não há muita receptividade”. Confessa que está um pouco preocupada com o Inverno. “Até Outubro tenho feiras marcadas, depois não sei.” Mas, ao mesmo tempo, está a pensar em fazer crescer o negócio. “Neste momento as pessoas estão a achar muita piada andar na rua. Com o passar do tempo perderá a piada? Não sei.”
100% Saboroso
Marcelo Martins
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Um dia, quando ia dar uma aula de ioga, Marcelo Martins passou pelo Saldanha, em Lisboa, e viu a moto dos iogurtes Yonest. “Achei engraçado e pedi o contacto de quem tinha feito a moto. No dia seguinte já estava no Cartaxo a falar com ele.” “Ele” é Luís Rato, cuja fábrica no Cartaxo tem transformado grande parte das motos em veículos adaptados ao negócio de comida de rua.
Marcelo tinha uma ideia muito concreta do que queria: uma carrinha de comida vegetariana. A moto da 100% Saboroso estreou-se no Festival de Músicas do Mundo, em Sines, no Verão de 2014. Inicialmente, Marcelo e a mulher, que é veterinária, dedicavam os fins-de-semana ao projecto, mas este cresceu rapidamente e agora têm que organizar a agenda de eventos com um mês e meio de antecedência. “Os eventos são fundamentais para dar a conhecer a marca e o trabalho.”
Assim, no meio dos hambúrgueres, bifanas e cachorros quentes que dominam os festivais, aparece Marcelo a propor hambúrgueres, sim, mas de grão e caril ou de feijão e aveia, ou ainda de lentilhas com mistura de especiarias. Ou então umas bifanas de seitan ou ainda cachorros com salsichas de soja. “Não pomos o foco na palavra vegetariana porque percebemos que as pessoas resistem mais à palavra do que à comida.” Quando provam “ficam surpreendidas”, garante. Por isso, a comunicação é mais centrada na ideia de uma comida “saudável e criativa”.
“Estamos a abrir caminho”, diz Marcelo. “Fomos os primeiros a trabalhar na rua com comida saudável e vegetariana. Cabe-nos a nós passar a mensagem.” Mas não vão ficar apenas pela rua. Já têm uma cozinha, em Almada, que serve de base de apoio para preparar a comida e a ideia é apresentar algumas das criações de Marcelo, nomeadamente os hambúrgueres, a restaurantes que queriam ter uma opção vegetariana no menu. “E, se correr bem, tentar entrar em contacto com uma empresa de distribuição para as lojas de alimentação saudável.” Tudo isto sem sair da rua, claro.
Comida de Rua
Isabel Tavares
www.comidaderua.pt/
Quando os primeiros negócios de comida de rua começavam, ainda timidamente, a dar os primeiros passos em Lisboa, Isabel Tavares teve a ideia de lançar um projecto de street food no Norte. Foi no Porto que nasceu, em 2012, o Comida de Rua, com veículos transformados e adaptados pelo Street Food Mobile, do arquitecto italiano Andrea Carletti, e uma série de “sandes com talento português, criadas pelo chef Elísio Bernardes e pela cozinheira Mi”: frango grelhado com cogumelos, queijo da Ilha e rúcula em pão de sementes de sésamo; vitela assada com queijo de cabra e compota de cebola; ou a vegetariana, entre outras propostas que entretanto foram surgindo (em Lisboa há uma oferta de três variedades, no Porto de oito, porque existe uma cozinha de apoio no Mercado de Matosinhos).
Hoje, Isabel — que criou este novo negócio quando, aos 40 anos, ficou desempregada — é já uma veterana no universo da street food em Portugal. E a experiência tem-lhe ensinado muito. Tornou-se mais conhecida depois da passagem pelo programa televisivo Shark Tank para captar investimento que lhe permitisse aumentar o negócio — actualmente tem já três motos em Lisboa e duas no Porto. “Neste momento estamos num ponto de muito trabalho e de desbravar o mercado em Lisboa”, explica, numa conversa telefónica. “Apesar de termos nascido no Porto, percebemos que Lisboa tem um potencial enorme.”
São dois mercados “incomparáveis”. O Porto “é muito mais pequeno e familiar, a dinâmica das pessoas é muito mais em casa”, enquanto Lisboa “tem outra dimensão e um ritmo de vida diferente”. Além disso, “a Câmara do Porto é muito pouco aberta a este tipo de conceito” e até agora o Comida de Rua não obteve uma licença para estar efectivamente na rua (em Lisboa vai em breve ter dois pontos de venda fixos, um junto à saída do metro de Sete Rios e o outro em Entrecampos).
“Fazemos três anos e estamos sempre a aprender e a afinar as velas porque o vento está sempre a virar”, diz. “Neste momento estamos a assistir a um fenómeno em que cada vez que levantamos uma pedra surge uma moto.” Acredita que vai haver uma selecção — os próprios festivais de street food “são um conceito que se esgota” — e que vão ficar os melhores. “A street food vai passar a ser o que é noutros países: algo que faz parte da vida das pessoas mas não nesta quantidade.”
Focaccia in Giro
Enrico Postiglioni e Angélica Padua
www.focacciaingiro.com
O Focaccia in Giro é um exemplo de um projecto de comida que começou na rua, teve sucesso, e entretanto, embora mantendo-se na rua, encontrou também um espaço próprio dentro de portas. Tudo começou com o triciclo Clementina, uma Ape Piaggio adaptada com materiais ecológicos e que ganhou até um “cabelo” em forma de horta de ervas aromáticas.
A ideia surgiu da parceria entre a brasileira Angélica Padua e o italiano Enrico Postiglione, ambos a viver em Portugal há 12, 13 anos. Nenhum dos dois tinha experiência de restauração mas Enrico sabia fazer focaccias, conhecia a “receita da avó Giovanna” e estava interessado em trabalhar com produtos portugueses e pequenos produtores.
Os portugueses aderiram rapidamente à focaccia. “Não é difícil”, diz Angelina, porque afinal “é pão, é uma coisa familiar”, com recheios de tomate, mozzarella e pesto (a Napoletana) ou presunto, queijo Philadelphia e rúcula (a Prosciutto), beringela, húmus e espinafres (a Vegan) ou ainda pêra rocha e Nutella para os que preferem uma focaccia doce.
Mas, apesar de charmosa, a Clementina — que se estreou na rua no dia de Santo António de 2014 e que depois teve durante algum tempo base na Praça da Alegria, em Lisboa — é pequena. “A logística de um triciclo acaba por depender de um armazém de apoio, um espaço físico fechado.” Encontraram o espaço certo no Campo de Santa Clara, em Lisboa, onde às terças e sábados acontece a Feira da Ladra. “Não tínhamos consciência de que o lugar ia ser mais um negócio”, confessa Angélica. “A loja acabou por superar as nossas expectativas.”
Mais trabalho, portanto, porque houve uma parte da focaccia que deixou de andar in giro e sedentarizou-se, mas a Clementina continua por aí — nos últimos meses instalou-se, de terça a domingo, num ponto fixo, nos jardins da Torre de Belém, onde criou um espaço para piqueniques, com toalhas no chão, para que as pessoas possam comer perto dela.
Com o tempo foram percebendo quem é o público da Focaccia e onde faz mais sentido estar — nem todas as carrinhas funcionam bem em todos os festivais, explica Angélica. É preciso conhecer o mercado. “Estar na rua deu-nos muita experiência.” E, feliz com os resultados, repete uma frase que ouvimos várias vezes ao longo desta reportagem: “Este é um fenómeno que veio para ficar. Não é uma moda, é uma tendência.”
Chamo’s Hot Dog
Lucas Lopes
www.facebook.com/chamoshotdog
Lucas Lopes é meio venezuelano meio madeirense. “Há um ano e meio decidi vir para Portugal”, conta, ajeitando o boné de vendedor de cachorros quentes. A sua moto está estacionada em frente do El Corte Inglés, em Lisboa, junto a uma laranja onde um produtor algarvio deste fruto vende sumos. “Na Venezuela a situação é muito insegura, há muita instabilidade política, eu tenho um filho pequeno, por isso decidimos que era melhor vir.”
Tanto ele como a mulher têm formações que nada têm a ver com street food. “Mas sempre tivemos muito claro que aqui o futuro passava muito pelo turismo, pelos serviços, pela restauração. E foi assim que chegámos à ideia da comida de rua.” Demoraram seis meses a obter a licença, mas, assegura, a junta de freguesia das Avenidas Novas “está a apoiar muito” este tipo de iniciativas. O maior problema que tem é com o fornecimento de energia. Sem isso, a viatura não consegue ser autónoma e é preciso ter um carro para transportar o gerador que garante a energia todo o dia.
Quanto à comida, estudaram “cinco ou seis hipóteses em termos de logística, preços, etc.”. Sabiam que tinha que ser comida “rápida e acessível”. Por isso, apresentam um cachorro quente, mas que é diferente de outros, explica Lucas. “O nosso pão está sempre quente, o que faz com que não haja diferença de temperatura com o resto.” E a salsicha vem acompanhada por cebola, cenoura, couve, batatas, queijo e bacon estaladiço, além dos molhos — “caseiros e sem custo adicional” — de alho, bacon e queijo Cheddar.
No dia em que falamos com ele, Lucas e o projecto Chamo’s (expressão que na Venezuela significa “rapaz”) estão na rua há apenas um mês em meio, muito pouco tempo para perceber como é que este negócio pode funcionar. Para já, o movimento não é muito, apesar de esta ser uma zona de Lisboa com bastantes escritórios e por onde passa muita gente diariamente. Lucas acredita que com o início das aulas o número de clientes vai aumentar, dado que está num ponto de passagem de muitos dos alunos que vêm da Escola Secundária Marquesa de Alorna.
“Está a correr bem, dá para cobrir as despesas”, diz. “Mas nos festivais e eventos de fim-de-semana é totalmente diferente, chegamos a ganhar 350 ou 500 euros num dia.” Está optimista. “Isto não é um fenómeno só de Portugal, é uma tendência global, por isso vai ter sucesso.”
A tradição de comida de rua, do Malcozinhado às sandes de couratos
Recuemos até ao século XVI. Junto ao Mercado da Ribeira, em Lisboa, existia um espaço famoso: chamava-se o Malcozinhado e era “um conjunto de tendas frágeis e insalubres”, descreve Pedro Cruz Gomes, autor de um livro a publicar em breve intitulado Lisboa, Gastronomia de uma Cidade. Era aí que os trabalhadores dos estaleiros navais e os embarcadiços iam comer peixe frito acompanhado por um copo de vinho.
“Nós, lisboetas, temos uma tradição muito grande de comer na rua”, afirma Pedro Cruz Gomes. “Temos muitos petiscos portáteis, os rissóis, os croquetes, as chamuças, os pastéis de bacalhau. Tudo isso pode ser considerado a nossa tradição daquilo a que hoje se chama street food.”
Na pesquisa que fez para a tese do mestrado em Ciências Gastronómicas, e que deu origem ao livro, encontrou vários relatos de cenas da vida lisboeta envolvendo esse tipo de comida já cozinhada ou a venda, na rua, de produtos para cozinhar. “Tínhamos desde as peixeiras à mulher da fava-rica, que andava com a panela a distribuí-la a quem a queria comprar. Esta comida já cozinhada destinava-se sobretudo aos saloios, que vinham à cidade entregar legumes e que precisavam de comer alguma coisa a meio da manhã, aos operários que durante o dia não podiam ir a casa ou viviam sozinhos e não tinham quem lhes preparasse o farnel. Mas também se vendia para casa, as pessoas vinham cá abaixo buscar ou faziam descer o pucarinho pela janela.”
O Malcozinhado ficou famoso e, apesar da falta de higiene, durou uns 300 anos, até ao século XVIII. Mas não era único. Espalhados pela cidade existiam outras tendas de comida nas quais, segundo um dos textos citados no livro, “se grelham sardinhas, badejo e outros peixes baratos”. Os clientes traziam com eles o pão e compravam meia dúzia de sardinhas assadas. Um outro texto, referente também ao século XVI, fala de “50 mulheres, entre brancas e pretas […] que, amanhecendo, saem na Ribeira com panelas cheias de arroz, couscous e chícharos”, para além das negras que vendiam umas muito apreciadas ameixas passadas cozidas.
Não existiam sandes — até porque as carcaças ou papo-seco ainda não tinham sido inventados e a carne, sobretudo a de vaca, era coisa rara — mas havia, para além do peixe frito ou assado, pastéis, que, segundo Pedro Cruz Gomes, seriam grandes, mais parecidos com empadas — e, curiosamente, estavam proibidos os de carne de bode, cabra, ovelha e porca. Na rua vendiam-se ainda doces, trabalho que, dizem os documentos da época, ajudava a sustentar muitas mulheres pobres, e que, durante um período, chegou mesmo a estar interdito aos homens. E havia ostras que na época, de tão abundantes no Tejo, eram petisco popular.
É precisamente porque a comida de rua tem uma tradição muito antiga em Portugal que André Magalhães, da Taberna da Rua das Flores, em Lisboa, acha “desonesto” que se tente fazer uma distinção entre a street food que hoje se está a tornar uma moda e as roulottes ou outras formas de venda de comida que sempre existiram nas feiras, romarias ou, por exemplo, junto aos estádios de futebol em dia de jogo. “As pessoas sempre confeccionaram comida de rua. E não é venda ambulante”, sublinha. “Não se pode passar por cima disso.”
Quando contactamos André Magalhães para lhe perguntar que projectos de street food acha mais interessantes, ele responde imediatamente que o sítio que prefere em Lisboa para esse tipo de comida é a Feira do Relógio, que acontece todos os domingos de manhã na zona de Chelas e Marvila. Entre as tendas (bancadas de madeira com uma cobertura de pano e o apoio de um camião) que vendem roupa, sapatos, perfumes, objectos de cozinha e mil outras coisas, há um espaço enorme dedicado à comida.
Vende-se fruta, legumes, queijos, pão, enchidos, há bancas mais exóticas com produtos usados na culinária africana, por exemplo, e outras mais tradicionais. E, ao lado, há grandes roulottes onde em alguns casos até três ou quatro pessoas cozinham bifanas, hambúrgueres, as célebres sandes de couratos (pele do porco) ou os brasileiros pastéis de vento.
A nova onda de street food, diz André Magalhães, “quer mostrar que está a inovar, mas está apenas a copiar uma tendência internacional que começou nos Estados Unidos”. Além disso, prossegue, a comida de rua não tem que ser motorizada. “É uma tradição milenar no Oriente. E não é necessariamente uma coisa motorizada, geralmente é uma pessoa sozinha, sentada num sítio fixo, a cozinhar.”
Já em Portugal, continua André Magalhães, “há uma tradição muito grande de comida de feira, nas romarias sempre tivemos os fogareiros ou, mais tarde, um bico de gás para pôr a panela com a feijoada ou o rancho, uma grelha para fazer febras na brasa ou, como se faz no Algarve, ovas de polvo”. Recorda, entre outros exemplos, “o famoso polvo à feira, temperado com pimentão-doce e cortado às rodelas com uma tesoura, tradicional nas festas galegas”.
Pode haver projectos interessantes no novo movimento de street food, admite o dono da Taberna, mas não concorda que se estabeleça uma fronteira entre as tradicionais roulottes de bifanas, couratos ou farturas e as novas de hambúrgueres e hot dogs. Critica, aliás, “a preguiça enorme e a criatividade zero” de alguns dos novos projectos, que “se limitam a copiar conceitos que viram noutros países” quando em Portugal “existe um receituário mais interessante de comida de rua” que não está a ser explorado.
Esta explosão de interesse a que assistimos hoje tem muito a ver com a influência da comida de rua mexicana nos EUA, sobretudo através da Califórnia, que acabou por entusiasmar alguns chefs que, não tendo dinheiro para abrir um restaurante, apostaram numa cozinha motorizada, explica. Depois, o fenómeno foi-se espalhando e hoje é um negócio em crescimento.
Mas André Magalhães diz que ninguém “inventou a pólvora” e que é preciso olhar para “aquilo a que chamam vendedores ambulantes” e reconhecê-los também como “autores de comida de rua” como tantos outros antes deles — incluindo os homens e mulheres que durante três séculos assaram sardinhas nas cabanas de madeira cobertas de colmo do popular Malcozinhado.