Ainda hoje não é fácil o acesso a Vila Chã. Os caminhos apertam-se contra as antigas casas de lavoura e é por entre muros de calhaus sobrepostos a delimitar os campos férteis que se alcança o velho povoado piscatório. O cenário ideal, pois, quando o tema é restauração: há que passar horta e lota até nos sentarmos à mesa.
Uma corriqueira banalidade, diríamos até, neste país de riqueza e tradição culinária, num perfeito contexto de “quilómetro zero” que seria seguramente anunciado com clarins e trompetas pelos teorizadores de tendências de outras paragens. É que cozinhar com produtos de temporada e provenientes do meio envolvente é hoje um must nos fóruns da modernidade gastronómica.
Quase sempre assim foi, no entanto, na generalidade do nosso território — só nas cozinhas de ricos havia coisas vindas de fora — e em Vila Chã ainda é essa a regra. Terra de lavoura e de andar ao mar, cujo povoado piscatório é anterior à nacionalidade, ainda hoje as gentes locais destacam as características e qualidades únicas dos seus produtos: as verduras e cereais, pela conjugação virtuosa de terra fértil e brisa marítima; os peixes e mariscos pelas particulares condições de mar e costa.
Qualquer local o explicará: há a “guilhada”, o “páteo”, o “bispo” e a “barranha”, um conjunto de rochas submersas onde ao mar se espreguiça e acalma a fúria, proporcionando o aparecimento do “botelho”, um fundo de algas onde polvo, robalo, navalheiras e tainhas encontram rico e abundante alimento. É só usar fogo a preceito e procurar não estragar!
É este o cenário que se contempla das mesas do Salitre, um restaurante de sempre que se modernizou e actualizou com a sucessão geracional. Já teve funções alargadas e outras designações, mas é agora que parece ter encontrado a verdadeira vocação restaurativa. Patrícia e Daniel, ela na sala e ele na cozinha, são o jovem casal que dá vida ao espaço. E parecem saber ao que andam.
Depois de ter sido café e mercearia, a casa mantém a traça exterior, agora ornamentada com interessantes quadros e esculturas em cerâmica, num estilo naïf a que dedicará o proprietário, pai de Patrícia. O interior foi remodelado e modernizado, tendo sido montado um acolhedor avançado no terraço traseiro voltado ao mar e capaz de acolher mais de meia centena de comensais. Há também a sala de entrada e uma espécie de reservado, com mesa redonda e garrafeira a envolver, onde se acolhem mais umas dezenas.
A oferta é concisa. Uma lista de pescados com as “sugestões do dia”, quatro cozinhados de tacho com peixes, os obrigatórios bifes, mais a alheira, uma intrusa francesinha, uma dúzia de entradas e cinco saladas.
Em fim-de-semana, para almoço tardio e já em segunda (ou terceira) rodada de mesas, escolheu-se de entrada “sardinha pequena frita” (3,50€), “amêijoas à Bulhão Pato” (15,50€) e “polvo Salitre (9,50€). Solicitou-se também a “sopa de peixe” (3,50€) do dia, que, dada a hora já avançada, foi desaconselhada. Um bom indicador, a denotar preocupação com o cliente e com a qualidade daquilo que é levado à mesa.
Sardinhas frescas, bem fritas envoltas em farinha e criteriosamente escorridas. Bem cozinhadas também as amêijoas, carnudas e babosas, com alho, coentro e bom azeite. Polvo macio e bem temperado, à galega, com azeite e pimentão. Do rol de entradas constavam ainda búzios, e ovas, com molho verde, cogumelos salteados, rissóis de carne, bolinhos de bacalhau ou alheira panada.
Da lista de sugestões com peixes do dia escolheu-se “rodovalho à Bulhão Pato” (30,50€). Quatro postas generosas de bom exemplar do pescado assada ao carvão, acolitadas pelos bivalves, que são preparados à parte. Como acompanhamento, batata e cenoura cozidas e grelos salteados.
As alternativas passavam por peixe-galo, garoupa, linguado, pargo, dourada e corvina, tudo na opção de “grelhado” ou “grelhado à Bulhão Pato”, sendo que a única diferença está no acrescento das amêijoas. Havia também robalo, que, além daquela dupla variante, se oferecia também em cataplana. Os preços oscilavam entre os 35€, para o peixe-galo, e os 24€, pela corvina.
Entre os cozinhados de tacho escolheu-se o “ensopado rico e peixes” (45€). Postas de vários peixes em apurada caldeirada (pimento, louro, cebola) servidos sobre tostas de pão de centeio, num competente cozinhado que mantém a textura, características e identidade de sabores de todos os componentes. Produto de qualidade inquestionável e com o cuidado em não ser maculado ou adulterado, resultando um conjunto de belo efeito e sabor. A dosa alimenta à vontade dois pares de comensais.
É também proposto um ensopado de robalo e raia (28€), misto de peixes grelhados à Bulhão Pato (55€) e ainda o arroz de sardinha (18€), uma receita típica dos pescadores locais que, no entanto, só está disponível entre Junho e Outubro. Ou seja, quando é suposto haver sardinha local.
Como se vê, basta ter o produto e saber valorizá-lo destacando aquilo que o distingue. E a vantagem deste restaurante é que os peixes e legumes estão mesmo ali à mão e a qualidade é evidente. O pior é mesmo o pão, banal e de variedade única.
Um tanto alheias ao receituário local são também as sobremesas, embora bem recomendáveis. Provaram-se tarteletes de chocolate com gelado de framboesa (4,50€) e folhados com morangos e doce de ovos (4€), numa lista que inclui bolo flor de amêndoa com copo de moscatel, doce de papaia (e de abóbora) com queijo, panna cotta com frutos vermelhos e mousse de chocolate.
Num contexto onde é evidente a procura e critério e palpável o esforço no serviço, há que destacar as virtudes da garrafeira. Não é das mais opulentas e variadas (nem isso serviria para grande coisa), mas é criteriosa, sensata e com um ar de novidade e suficiente variedade. Tudo a preços sensatos. Veja-se , como exemplo, o Cazas Novas (9,50€), um lote de Avesso e Loureiro cuja frescura e estrutura combinaram na perfeição com o ensopado.
Os vinhos são apresentados segundo as suas características (ligeiros e frescos; com estrutura; fermentados com estágio) e por ordem decrescente de preços. Muito bem! Destaque para os brancos, de todas as regiões, como é lógico em ambiente e peixes, mas há também dezenas de opções para tintos e até um capítulo com “vinhos do mundo”. Povoado ancestral de pescadores, Vila Chã ficou conhecida por também as mulheres terem andado ao mar e haver mesmo mestres de embarcação no feminino. No tempo em que a pesca do bacalhau “roubou” todos os homens à faina e as mulheres assumiram todas as tarefas.
Os tempos são outros, a faina já não é a mesma, o turismo e o veraneio despontam por entre os milheirais e as pequenas embarcações tradicionais, mas são espaços como este Salitre que nos impelem andar ao mar até este simpático povoado de pescadores. Com pés em terra mas todo o sabor a mar.
- Nome
- Salitre
- Local
- Vila do Conde, Vila Chã, Avenida dos Banhos, 10
- Telefone
- 229282918
- Horarios
- Todos os dias das 11:00 às 15:00 e das 19:00 às 23:00
- Preço
- 40€
- Cozinha
- Mediterrânica