Fugas - restaurantes e bares

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De olhos (e narinas) bem abertos

Por Francisca Gorjão Henriques

Miguel Pires passou as dicas da edição anterior a pente fino, retirou, acrescentou, e no final fez crescer o seu guia Lisboa à Mesa. Pedimos ao crítico de gastronomia que nos fizesse uma ronda pelo seu bairro.

Ainda não fez meio ano desde que Miguel Pires se mudou para o Príncipe Real. Mas esta seria sempre uma zona de que seria impossível fugir, tal a quantidade de restaurantes e lojas que foram abrindo nos últimos anos. Por isso, desafiámos o autor de Lisboa à Mesa, Guia onde comer, onde comprar (Planeta), para uma visita guiada ao seu novo bairro.

Na sua outra vida, Miguel Pires foi publicitário. Agora, aos 47 anos, é crítico de gastronomia das revistas Up (TAP), e Wine – Essência do Vinho, colaborador do PÚBLICO, também co-autor do blogue Mesa Marcada, e um instagramer com mais de 8800 seguidores. Gosta de comer, gosta de cozinhar, gosta de comprar. Assim como outros são viciados em sapatos, ele é viciado em raridades gastronómicas. Mas também tem horror ao desperdício. Pode ficar uma semana a despejar o frigorífico.

Encontrámo-nos de manhã, junto ao mercado biológico que todos os sábados se instala na praça, já cheia de turistas e lisboetas a deambular ou a tomar o pequeno-almoço nas esplanadas. Chega com Luciana Rodrigues, a sua “cara metade”, como escreve no guia, cuja “perseverança acutilante” e curiosidade estrangeira (é brasileira) contribuiu para que se decidisse a actualizar o trabalho que tinha começado em 2011, quando lançou o primeiro Lisboa à Mesa. Por coincidência, também nessa altura tinha acabado de mudar de bairro, e instalara-se perto da Praça de Espanha.

“A ideia é descobrir pequenos lugares que mesmo que não sejam fantásticos são importantes para que as pessoas, quando mudam de casa, possam saber onde comprar o frango assado, ou a que mercearia ir — às vezes parecem todas iguais, mas será que não há uma menos igual do que as outras?”, explica. E, assim, Miguel Pires foi à procura “dos sítios que os locais frequentam e que não vêm nos roteiros”.

O mesmo princípio transitou para o novo livro, que em vez das 280 entradas do anterior conta agora com 350. Este é um trabalho de Penélope, de tirar e acrescentar dicas de lojas e tascas que abrem e fecham; não pode haver má consciência, porque nunca daria para incluir tudo. A avaliação vai de 3, “os mínimos olímpicos”, a 5, “ouro”.

Voltemos então ao Príncipe Real. “Como nos melhores mercados, há sempre algo diferente ou especial aqui ou ali, pelo que uma volta de reconhecimento antes de comprar é sempre a melhor estratégia”, escreveu. Mas não foi isso que fizemos. Fomos direitos à banca da Quinta do Poial, a única com direito a uma entrada independente no guia. “Todas as semanas encomendo um cabaz, que venho buscar sem saber o que é. Deixo à liberdade deles colocarem o que quiserem. E como o cabaz não é muito grande, complemento com outras coisas.”

Uma das opções está mesmo à nossa frente. “É agora a couve da moda, a Kale. É um superproduto.” O que faria para o almoço com o que temos à frente? “Agarrava naquelas courgetes pequeninas [que parecem empadas de galinha, diz o vendedor], nestas cenourinhas mini, nuns alhos e spring onions se houver.” Depois, era “saltear ligeiramente os legumes” e quase estufá-los, “com um bocadinho de água no fundo”. Também poderia acompanhar com a batata ratte que aqui está em pequenos sacos de papel castanho. “É uma batata fantástica. Gosto dela sobretudo para puré. É o Rolls-Royce das batatas. Quase não precisam de gordura, são elásticas, são as rainhas do glúten.” Para completar a ementa, “poderia ir à praça comprar o peixe”. “É o que faço muitas vezes: acabo de fazer as compras aqui e vou ao Saldanha, ao Mercado 31 de Janeiro, à Açucena [Veloso].”

Segue-se para a Quinta do Arneiro. Há vários tipos de alfaces: folha de carvalho, frisada verde, frisada roxa, lollo verde... Encontra o feijão fillet, pequenino, como acha que deve ser. “É das coisas de que mais gosto e muito fácil de fazer: dois minutos.” Dá com tudo, peixe, carne, ou sem mais nada.

Não gosta de “chegar e distribuir beijinhos a toda a gente”. “Não daria para ser um Paulo Portas dos mercados.” Em todo o caso, reconhece que é importante criar laços. A regra é igual em qualquer mercado: “Independentemente de teres os teus fornecedores, ou lugares onde gostas de ir, é sempre bom teres os olhos abertos e ires vendo aqui e ali.” E foi assim que se deparou com umas verdadeiras preciosidades vermelhas. “Que morango é este, é o fraise des bois?” É o mara des bois, explica o vendedor. Vão ficar ainda mais pequenos e quanto mais pequenos mais sabor terão. “Este morango é único. Nove euros o quilo, são os mais caros, mas cheira... É um doce quase a ir para a framboesa. Isto para o almoço ia saber tão bem. Vamos levar uns?”

As compras estão feitas. “Agora o Corallo?” Atravessamos a rua, nada mais. “É um sítio onde vou quando me apetece comer chocolate, e tem um gelado de que também gosto. É das melhores lojas de chocolate do mundo — não gosto muito desse termo, porque há muita coisa que eu não conheço, mas eles trabalham muito bem. E o café é óptimo. Só têm variações sobre dois produtos, mas são dois produtos top. Dei 4,5.” Luciana, que é mais assídua, explica que falta “melhorar um pouquinho” as embalagens, para fazer do chocolate um presente mais refinado.

Damos apenas uns passos, desta vez sem entrar: “Aqui na Embaixada, no restaurante do Miguel Castro Silva, o Less, há uma tarte de limão que é uma daquelas coisas que gosto quando preciso de um pico de açúcar.” Talvez mais tarde.

“Se isto fosse uma volta ao Príncipe Real em 12 horas, diria que agora poderíamos ir almoçar ao Bonsai, que é o nosso ‘japa’ de bairro, e um dos meus ‘japas’ preferidos. É económico como japonês, para almoço, tem um preço-qualidade óptimo. Foi o primeiro japonês a que fui na vida, há 25 anos.” Ao jantar, talvez acabasse na Cevicheria.

O que fazer quando entramos num restaurante e não sabemos nada sobre ele, perguntamos. “Se um restaurante tem 50 pratos, isso não é bom. Significa que há muita coisa congelada.” Há mais dicas: “Um lugar que mistura pizza, bacalhau à Brás, hambúrguer... se quer ir a todas não pode fazer nada bem.” Também é fundamental uma ligeira indiscrição: “Entro e olho para as mesas para ver o que está a sair. Consigo olhar para um prato e perceber mais ou menos o sabor. Faço tudo antes de me sentar. Mas se calha um jantar de grupo que alguém marcou, o que faço é outra coisa: ‘O que é que daqui pode dar menos erro?’ É preciso ser muito incompetente para fazer um arroz de pato que não seja comestível.” Outra possibilidade são os pratos com bacalhau desfiado, ou estufados, “que nos restaurantes mais simples fazem bem”. “A carne ou o bacalhau são menos arriscados. Se for frito, disfarça mais, e em Portugal até se frita razoavelmente bem.”

Um pouco mais adiante, ainda na Rua D. Pedro V, está a exuberante montra da Moy. “Há 30 anos, quando vinha com o meu pai visitar os meus tios (sou de Rio Maior), ver a montra da Moy [então em Alvalade] era quase como ver a montra da Rolls Royce, com as coisas da Fauchon, da Mariage Frère...” Mais económica seria uma das mercearias da Rua da Rosa. “Este tipo de mercearias fazem quase serviço público num bairro e estão a correr o risco de desaparecer, muito devido à lei das rendas. Começam a ser substituidas pelas chamadas lojas de indianos — não gosto muito deste termo, mas não encontro outro melhor — que passam a ser lojas de conveniência, iguais em qualquer parte do mundo. Nestas mercearias [antigas], mesmo que vão buscar ao MARL, sabem escolher.”

Há uma caixa com figos frescos mesmo à porta. “Quando vou à Casanova, a minha pizzaria favorita em Lisboa, no Verão não resisto à pizza com o presunto de Parma e este figo, que com comida salgada é melhor do que o pingo de mel, que já é doce de mais.”

Continuamos por dentro do Bairro Alto para ir ter à Praça das Flores. Mesmo de frente para o largo, está a Loja das Conservas. “É das melhores lojas que temos. Trabalha directamente com a Associação de Conserveiros, por isso tem as conservas todas. Muitas delas só iam para exportação...” Não sabíamos mas ficamos a saber: “As conservas melhoram com o tempo, só é preciso virá-las de seis em seis meses.” A não ser que sejam as Millésimés da La Gondola (empresa do Norte comprada por italianos), que já vêm envelhecidas.

Para algo fresco entramos na Peixaria Centenária, duas portas ao lado. “As peixarias de bairro passaram a ser praticamente só lojas de congelados. Esta tem uma série de peixes, e algumas coisas já preparadas em filetes. Dá para desenrascar se não podemos ir à praça.”

Para um café, passamos pelo Copenhagen Cofee Lab. São três dinamarquesas que fazem do café uma bebida de culto, “mais artesanal”. “É uma moda que começou nos EUA e em Inglaterra e que os países nórdicos apanharam... Se deve haver um restaurante indiano na Mouraria, porque não pode haver um café dinamarquês aqui? Também gosto disso.”

Continuamos a descer a Rua Nova da Piedade. Ainda não chegámos e já estamos com água na boca pela forma como Miguel Pires fala da geladaria que existe ao final da rua, já quase a chegar à Assembleia da República. “A Nannarrella ia ser um 5 mas comecei a pensar: os dois 5 que há são o Belcanto [de José Avillez, com duas estrelas Michelin] e o Kanazawa [japonês]. Nem estava preocupado por ser [uma loja] muito pequenina, aberta para a rua. O gelado deles é muito bom, mas 4,5 é muito bom também. Não sou como os professores que dizem que nunca dão 20. Dar dou, mas quando se estabelece o máximo, a bitola é aquela.”

Quando entra, apresenta logo uma reclamação bem humorada: “Há uma coisa que acho inaceitável: houve uma altura que fizeram um gelado de cenoura e nunca mais voltaram a fazer”. Provamos o de figo.

“Lisboa teve uma revolução enorme no que diz respeito a gelados. Até o Santini vir para Lisboa, ouvia-se falar na Cassatta ao pé da Av. da República, e na Conchanata em Alvalade — que, para dizer a verdade, nem é um bom gelado, mas vai dizer a alguém que nasceu quase amamentado a Conchanata que aquilo não é um bom gelado! De repente, o Santini chega e são filas. Depois, foi a Artisani e a Fragoleto. A última vaga foi dos italianos (“romanos”, corrije a Luciana, “são gelados romanos”). Para além da Nannarella e do Davvero (na Praça de São Paulo), apareceu a FIB, no Areeiro. “Trazem o gelado para outro nível.”

A ronda terminou e damos meia volta, em sentido contrário. Mais uma mercearia. “Nunca entrei aí, mas se passar e vir umas cerejas que ache que estão no ponto, entro e compro. É muito importante isso: as pessoas olharem e cheirarem.”

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