Fugas - Viagens

Nuno Ferreira Santos

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Cruzeiro pelo Mediterrâneo: As cidades do mar

Surpreendentes, é certo, como esta: Alexandria. Quando menos esperamos, ocupa-nos o horizonte de uma ponta à outra. De um lado palácios magníficos, do outro bairros miseráveis. Seriam duas cidades diferentes se a mesma luz as não estampasse num quadro uniformemente fantástico, delirante. A cidade foi construída em 331 a.C. por um arquitecto grego, Dinocrates, a mando de Alexandre O Grande, da Macedónia. Era o período helenístico e a cultura grega estava no seu auge. Com as suas conquistas militares, Alexandre espalhava-a pela Europa e Ásia. Alexandria, com a sua gigantesca biblioteca, tornou-se no principal centro cultural desse mundo helenístico. A sua população era composta por egípcios, gregos e judeus, e foi a capital do Egipto durante mil anos, até à conquista muçulmana. Hoje, é isso que marca o seu perfil.

Caminhamos nas vielas do mercado, onde se vende fruta, mariscos, peixes vivos. Carroças puxadas por cavalos entram a grande velocidade nos cruzamentos, há roupa a secar nas janelas, vendedores apregoam os produtos com megafones. Mulheres passam de rosto coberto. Nos cafés, grupos de homens saboreiam chá e fumam cachimbos de água. Ostentam a calma e o vagar de quem se senta nos lugares do privilégio, da liberdade. É isso que os cafés simbolizam e é por isso que neles nunca há mulheres.

Nada disto é extraordinário. É o que se vê em Amã, Istambul, Argel ou Casablanca. As regras muçulmanas ocultam a pele das mulheres, tal como o próprio islão cobre o rosto das civilizações que conquistou. É normal. Estamos habituados. Mas em Alexandria é diferente. Sente-se mais a estranheza. Talvez pela proximidade do edifício transparente e circular da grande biblioteca reconstruída. Talvez pela civilização dos faraós, dos sacerdotes do Sol, da grandeza passada da cidade de Cleópatra. Grandeza na realidade e na imaginação dos artistas que aqui viveram. Alexandria foi amada por escritores e poetas, como poucas cidades o foram. Não se entende porquê e isso pouco importa. Mas a verdade é que nos romances de Lawrence Durrell os protagonistas são mulheres. Justine, Clea, heroínas imaginárias do Quarteto de Alexandra, cuja acção decorre durante a Segunda Guerra Mundial, são figuras voluntariosas, livres, fascinantes. Que mulheres reais as terão inspirado? Provavelmente prostitutas.

O inglês Durrell foi hipnotizado por Alexandria, muito por culpa de um poeta grego da cidade, de quem se tornou amigo. Constantin Cavafy veio de uma família oriunda de Constantinopla. Na infância, viajou muito, mas fixou-se em Alexandria, que viu como a capital cultural do mundo helenístico, ou seja, o centro do mundo. Nunca mais abandonou a cidade. Para ele, ela era a vida. Em Justine (o primeiro volume do Quarteto) Durrell cita um poema de Cavafy, talvez um dos mais belos alguma vez escritos.

Como pode uma cidade que inspirou esta atitude vedar agora os seus cafés às mulheres? Como pode tê-las traído? Ou ter-se traído por uma religião? Sem dúvida, se deixou seduzir. Nenhuma civilização é vencida pela força. Da mesma forma que os mais mesquinhos e dominadores maridos fundamentalistas começaram um dia por seduzir as suas amadas com modos encantadores.

Com a ajuda da UNESCO, vários organismos internacionais e outros tantos governos de todo o mundo, Alexandria conseguiu reconstruir a sua célebre biblioteca, em Outubro de 2002. É um edifício esmagador e maravilhoso, aberto a todos, com oito milhões de livros que qualquer um pode retirar da estante e consultar, sem requisições ou autorizações. No exterior da Biblioteca Alexandrina, há prédios de habitação social, degradados, miseráveis, habitados por cidadãos egípcios pobres, na sua maioria analfabetos.

No interior, e em eloquente contraste com os cafés da cidade, a maioria dos leitores são mulheres.

Terra Santa

No dia seguinte, às oito da manhã, o Zenith chega ao porto israelita de Ashdod, entre Telavive e Gaza. Vários autocarros levam os grupos de turistas a visitar os lugares santos do cristianismo. O primeiro de todos é, obviamente, Belém, onde Cristo nasceu. Avançamos na direcção de Jerusalém, e o guia, um israelita de meia-idade, ajudado por uma tradutora do hebreu para castelhano, vai explicando o que se vê das janelas do autobus.

Na véspera, os funcionários do navio tinham explicado tudo: quantos euros vale o shekel, a moeda israelita, as regras da segurança em Israel, a necessidade de trazer sempre o passaporte e também o traje recomendado para o jantar da noite - Tropical ou Praia. Só não explicaram uma coisa: Belém fica na Cisjordânia, um dos territórios árabes ocupados. Segundo uma resolução da ONU de 1947, a Margem Ocidental do rio Jordão deveria fazer parte do Estado Palestiniano. Mas, durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel ocupou o território, juntamente com a Faixa de Gaza. Hoje, a Cisjordânia está sob a administração da Autoridade Palestiniana e foi cercada por um colossal muro de oito metros de altura construído por Israel.

Para entrar na Cisjordânia, o autocarro tem de parar no checkpoint fortemente armado, apresentar a documentação adequada. O guia israelita tem de sair, para dar lugar a uma palestiniana, que tomará conta de toda a visita aos lugares santos de Belém. À saída, o israelita volta a entrar no autocarro.

Os turistas submetem-se a tudo isto, mas nada lhes é explicado. O autocarro segue ao longo do muro, cheio de grafittis anti-israelitas e pinturas feitas por artistas de vários pontos do mundo. Nada é dito. Os guias descrevem os monumentos antigos que vamos vendo, que incluem vários muros, como o da Cidade Velha de Jerusalém, o de Herodes e o das Lamentações. Depois de terem beijado o chão onde Jesus nasceu, os turistas olham circunspectos para os muros históricos, como se estivessem a compreender cabalmente as razões da sua existência. E ignoram olimpicamente o muro que têm à frente do nariz. Como se a sua existência não tivesse qualquer relação com a História, não beneficiando portanto da sua dignidade. Como se entre Herodes, Jesus, Maomé, Arafat, Netanyahu ou Bento XVI não houvesse relações de parentesco, como se as pedras não se apoiassem umas nas outras e a História do Mediterrâneo tivesse parado antes da Segunda Guerra Mundial. Como se aquele fosse um muro inexistente, que poderíamos atravessar como fantasmas. E no entanto é o único muro que obriga o autocarro a parar. O único que é realmente um muro.

Em Jerusalém, os turistas são levados directamente para a Cidade Velha, o pequeno labirinto de ruelas onde as três religiões monoteístas têm os seus lugares santos, sugerindo que os grandes conflitos do mundo actual não são mais do que uma ampliação global de lutas entre gangues de bairro.

Passam procissões de católicos, com cânticos e sinos, ultra-ortodoxos judeus, de tranças sobre as orelhas, barbudos muçulmanos com olhos absortos. Não escondem, uns em relação aos outros, o ar hostil. Como se representassem um papel, de grande importância mundial. Se Jerusalém não fosse como é, talvez nos esquecêssemos do que nos define, do que nos distingue dos outros, da nossa identidade, dos nossos orgulhos e superioridades, dos nossos motivos de luta e de ódio. Jerusalém mantém a ordem internacional. Se desaparecesse, o mundo mergulharia no caos.

Chipre e Turquia

O vestuário sugerido para o jantar do dia em que visitamos Chipre é Branco e Preto. O Zenith chega a Limassol, na costa Sul da ilha. Há excursões à escolha, para Paphos ou Nicósia. A da capital é menos apelativa porque, dizem, a cidade é feia. Confirma-se. Uma cidade dividida não pode ser bela. Não o permite a si própria.

Ledra, como foi baptizada, foi uma cidade helenística e depois romana. Pertenceu a Veneza no século XV, caiu sob o poder dos Otomanos no XVI, depois de um cerco que matou 20 mil pessoas. Gregos, turcos, cristãos, muçulmanos, os contendores do costume. A ilha já era dividida antes de o ser. Como todas as ilhas, como todos os territórios no Mediterrâneo, e fora dele.

Nos anos de 1960 rebentou a violência entre as populações grega e turca, levando à divisão. Em 1974, na sequência de uma tentativa de anexação por parte da Grécia, a Turquia invadiu Chipre, criando um país independente a Norte, que só Ancara reconhece.

Nicósia tem, a meio de uma rua, uma fronteira. Em épocas mais pacíficas, como é a actual, pode atravessar-se, mediante a apresentação do passaporte. Do outro lado há uma cidade mais pobre, mais triste, ainda mais feia. Os cipriotas turcos olham os turistas que, a medo, os vêm visitar, como se fossem bichos numa jaula. E são. Como a República Turca de Chipre do Norte não tem embaixadas em nenhum país excepto a Turquia, os seus habitantes não podem viajar. Estão fechados em metade de uma ilha.

À saída de Chipre, o navio cruza o Mediterrâneo para Norte, em direcção ao seu tecto, a Turquia. Ilhas e costas recortadas desaparecem do horizonte, cai a noite e parece que saímos do planeta. É nestes momentos que se sente que o Mediterrâneo é um mundo, e que para lá dele não existe nada.

O amanhecer em Marmáris é feérico. Ilhas, montanhas verdes espalhadas no mar, água brilhante e límpida, profunda, reflectindo tonalidades rosa e lilás. Aqui, encontram-se e misturam-se os mares Mediterrâneo e Egeu, tal como se encontram e se misturam as culturas cristã e muçulmana, europeia e asiática.

Heródoto, que aqui passou nas suas viagens, escreveu que havia em Marmáris um castelo desde o ano 3000 a.C.. Mas também esta cidade foi conquistada por Alexandre o Grande, que destruiu o castelo. Mil anos mais tarde, foi a vez, também aqui, do império Otomano. Mas a resistência foi forte. Os Cavaleiros de São João, baseados na ilha grega de Rhodes, fizeram a vida negra aos turcos otomanos, durante vários anos.

Estes cavaleiros cristãos, que originalmente se chamaram Hospitalários, e depois da Ordem de Malta, foram uma ordem que nasceu em Jerusalém, pouco depois do ano mil, para ajudar os peregrinos e combatentes da Primeira Cruzada. Ainda existem hoje, como ordem soberana, baseados em Roma e com assento na ONU. Usam uma insígnia com um rosário de prata, a cruz de Malta e outros símbolos derivados da numerologia de Pitágoras e da proporção de ouro.

Na região de Marmáris, os turistas visitam aldeias por onde há dois mil anos vaguearam eremitas cristãos, passeiam sobre as águas baixas de uma baía entre montanhas. A vegetação é igual à da Grécia, não muito diferente da do Sul da Itália. Também aqui foi desde sempre a região do trigo, do azeite e do vinho, como em todo o mundo mediterrânico. E dos barcos e das trocas e das guerras. Das invasões dos homens dos desertos quentes da Arábia ou dos desertos frios da Ásia.

Ao fim do dia, é preciso voltar ao Zenith para o regresso à Grécia. Inicia-se a grande viagem para Ocidente, entre vagas e os primeiros ventos do Inverno. O Mediterrâneo, ao contrário do que se pensa, não é um mar calmo. Traje sugerido para o jantar: Informal.

Em Atenas, realiza-se finalmente a visita à Acrópole. O Partenon, templo da deusa Atena, está finalmente livre de andaimes e tapumes. As pinturas coloridas das paredes e colunas foram apagadas pelo tempo. A enorme figura da deusa, esculpida em marfim e ouro, desapareceu há muito. A maior parte das estátuas foram destruídas pelas inúmeras guerras, ou roubadas no século XIX pelos ingleses, que as exibem no Museu Britânico. Mas o essencial está à vista. A elegância, o equilíbrio, a beleza esmagadora do templo de Atena, construído no século V a.C., chamado o século de Péricles, o líder iluminado da cidade. As colunas que alargam da base para o topo, para parecerem mais altas. A proporção entre a largura do templo e o seu comprimento, que tem o dobro das colunas, mais uma. A proporção perfeita, origem de uma civilização. O Número de Ouro.

INFORMAÇÕES

O Cruzeiro Egipto e Terra Santa (preços desde 1235?) é organizado pela empresa Pullmantur, que foi fundada em 1971, possui uma frota de seis navios e quatro aviões Boeing 747, e tem sede em Espanha. Opera cruzeiros no Mediterrâneo, Báltico, Atlântico e Caraíbas.
O navio Zenith tem 207 metros de comprimento e 29 de largura, pesa 47255 toneladas e tem capacidade para 1828 passageiros. Emprega 620 tripulantes, navega sob a bandeira de Malta e atinge uma velocidade de 21,4 nós.

A Fugas viajou a convite da Pullmantur- Cruzeiro "Egipto e Terra Santa"

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