Fugas - Viagens

  • Sousa Ribeiro
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Colômbia: Na rota do mundo mágico de García Márquez

"Começaram a tratar-me como um adulto e o sacristão mais velho ensinou-me a ajudar à missa. O meu único problema foi que não consegui entender em que momento devia tocar a campainha e tocava-a quando me lembrava, por pura e simples inspiração (...) A parte boa do ofício era quando o outro menino do coro, o sacristão e eu fi cávamos sós para pôr a sacristia em ordem e comíamos as hóstias que sobravam com um copo de vinho."

 -Ele até participava na procissão da Virgen del Cármen!

Alfredo Correa Garcia gosta de conversar e, a despeito dos seus 82 anos, mantém a lucidez e guarda memórias de tempos imemoriais. Gabito cumpriu mesmo os mistérios da primeira comunhão naquela igreja onde uma senhora sorri na nossa direcção depois de perceber que a bicicleta acabara de ser fotografada.

"Na véspera da primeira comunhão, o padre confessou-me sem preâmbulos, sentado como um Papa de verdade na poltrona tronal e eu ajoelhado em frente dele numa almofadinha de peluche. (...) Creio que respondi bem até que me perguntou se não tinha feito coisas imundas com animais. Tinha a noção confusa de que alguns dos mais velhos cometiam com as burras pecados que nunca tinha entendido, mas só naquela noite aprendi que também era possível com galinhas. Deste modo, o meu primeiro passo para a comunhão foi outro salto grande na perda da inocência e não senti nenhum estímulo para continuar como menino de coro."

O amor

Gabito não tinha vocação para a igreja mas desde muito novo revelou extraordinária apetência para o "amor sem amor" e para "o amor de urgência". Muito antes ainda de conhecer Mercedes, a mulher da sua vida e que ainda hoje o acompanha para todo o lado.

-Namorava de carago!

Alfredo Correa Garcia também evoca essa virtude, para outros apenas um defeito, quando, ainda e sempre à sombra da amendoeira, fala do amigo. Mais tarde, já homem, Gabriel García Márquez haveria de reviver as tardes em que o avô o levava a passear e outras, não tão raras, em que o via em casas estranhas, sendo recebido com honras de amante. Habituais eram também as incursões do pai no reino dos amores efémeros, uma tendência que haveria de marcar, de forma indelével, a juventude de Gabo. O episódio, vivido em Sucre, onde o escritor permaneceu uns tempos durante a sua errância vagabunda, vale a pena ser contado, como o próprio o contou.

"Lembro-me do seu nome e apelidos, mas prefiro chamar-lhe como então: Nigromanta. Ia fazer vinte anos pelo Natal e tinha um perfil abissínio e uma pele de cacau. Era de cama alegre e orgasmos pedregosos e atribulados, e um instinto para o amor que não parecia de ser humano mas de rio revolto. (...) Na primeira semana, tive de fugir do quarto às quatro da madrugada porque nos enganámos na data e o oficial podia chegar a qualquer momento. Saí pelo portão do cemitério através dos fogos-fátuos e dos latidos dos cães necrófilos. Na segunda ponte do canal, vi vir um vulto descomunal que só reconheci quando nos cruzámos. Era o sargento em pessoa, que me teria encontrado em sua casa se me tivesse demorado mais cinco minutos.
-Bons dias, branco disse-me em tom cordial.
Respondi-lhe sem convicção.
-Deus o guarde, sargento.
Parou então para me pedir lume. Dei-lho, muito perto dele, para proteger o fósforo do vento do amanhecer. Quando se afastou com o cigarro aceso, disse-me bem disposto: -Estás com um cheiro a puta que não se pode."

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