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No rasto dos portugueses de Malaca às Molucas

Por Guilherme d'Oliveira Martins

"A história sobrevive", escreve Guilherme d'Oliveira Martins. O presidente do Centro Nacional de Cultura (e do Tribunal de Contas) relata-nos a sua viagem pela Malásia, Timor-Leste e Indonésia sob o mote dos 500 anos do estabelecimento dos portugueses em Malaca. 

Quando Helena Vaz da Silva lançou, em 1985, o ciclo Os Portugueses ao Encontro da sua História, do Centro Nacional de Cultura, talvez não supusesse que, estes anos passados, ainda continuássemos a procurar encontros inesperados nos lugares mais recônditos da Terra. Mais do que olhar para a História, trata-se de realizar embaixadas de escritores, artistas, cidadãos, que têm sobretudo o interesse de favorecer o melhor conhecimento mútuo.

Chegados a Kuala Lumpur vindos de Amesterdão, iniciamos esta peregrinação recordando que aqui esteve Fernão Mendes Pinto num momento importante da sua deambulação. Malaca acolheu-nos principescamente. A visita ao bairro português é um motivo especial de interesse. Da antiga Fortaleza de Afonso de Albuquerque, "A Famosa", apenas resta a porta da muralha, já que os ingleses não evitaram a destruição do antigo edifício militar que em muito se assemelhava à nossa Torre de Belém, como aliás está representado nos documentos da época.

Para nós, o mais emocionante foi a subida à Igreja do Monte sob a evocação da Anunciação, mas também de São Paulo, onde São Francisco Xavier pregou e onde foi sepultado D. Miguel de Castro, filho de D. João de Castro. As visitas sucederam-se mas o mais importante foi ouvir o papiar do século XVI, a língua franca dos mercadores que os missionários desenvolveram. Sentimos que a comunidade que deixámos no longínquo século XVII precisa mais do nosso conhecimento e do nosso apoio. É isso que todos nos pedem e não podemos deixar de corresponder.

Da Malásia seguimos para Bali, onde vivemos uma imersão total na cultura hindu, aqui caldeada pelo animismo das populações mais antigas da ilha. Nos templos que visitamos encontrámos os três mundos da cultura hindu - o domínio dos espíritos que importa aquietar, o domínio das pessoas humanas e o terceiro domínio, dos deuses e dos antepassados.

No caminho longo que seguimos até às montanhas vimos terraços verdejantes dos arrozais mas também as plantações de banana, cacau, papaia e manga e muitas estátuas do hinduísmo; presenciámos ainda as festividades dos muçulmanos a viverem o fim do Ramadão com muita cor e alegria. E culminámos com a ascensão ao vulcão Batur, numa paisagem deslumbrante, em que até o sol timidamente apareceu.

O lago ocupa parte da cratera e o lugar corresponde a um encontro natural entre o sagrado e o humano - e quando chegamos ao templo da Primavera Sagrada, onde a purificação pela água está bem presente, sentimos com naturalidade o diálogo entre o homem e as forças da natureza.

Seguindo os pontos onde os portugueses tiveram a sua presença efectiva, partimos para as Flores, onde chegamos a tempo de um almoço tardio, mas retemperador, de modo a visitarmos a família real de Sika - os Ximenes da Silva - na casa de Maumere, com quem pudemos usufruir de uma visita ao pequeno - mas significativo - tesouro, constituído pela coroa, pequenas pulseiras e armas votivas.

A coroa real é um capacete do século XVII, do ano de 1607, talhado em Malaca em ouro, com a imponência própria e o fulgor do metal em que foi feito. Verificámos ser necessário criar condições de maior segurança para este património que recorda o acordo realizado pelos portugueses com os chefes da Ilha do "Cabo das Flores" há trezentos anos. E deparámos, com emoção, com a assinatura de Helena Vaz da Silva no livro de honra, sentindo que a memória é inapagável.

A ilha das Flores, baptizada pelos portugueses, nunca foi conquistada. Foram tradicionalmente os seus reis que exerceram com autonomia o poder nesta terra em que a serpente impera. No entanto, até 1851, a população teve o apoio dos portugueses ao abrigo de um entendimento ancestral - reforçado pelas características próprias, culturais e religiosas deste povo. A caminho de Sika, onde vamos ao encontro do antigo reino, do seu palácio e da sua situação geográfica, encontramos uma ilha amiga e fraterna. O senhor Pereira mostra-nos ainda o que faltava ver do fantástico tesouro de Sika - o Menino Jesus Salvador do Mundo, vestido a preceito como se estivesse em Portugal. E se se diz que a ilha Flores nunca foi objecto de conquista, tal serve para deixar claro que a hospitalidade que recebemos vem dessa longa história - de humanismo, de abertura e de complexidade. Somos recebidos de braços abertos por um povo que não esconde a sua simpatia. Sentimo-lo especialmente na montanha, na aldeia de Watublapi, onde fomos fumar o tabaco da paz, ver as danças tradicionais e como se confeccionam os panos. Foi este mais um momento de emoção partilhado por todos. À parte a distância, as Flores correspondem a uma situação única e o seu povo hoje tem-nos no coração, e nós a ele. Aqui, em Larantuka, a Páscoa é inolvidável e emocionante. As orações são em português, portuguesa é a língua sagrada e a procissão no mar é a exacta projecção das mais antigas tradições de Portugal.

Longa jornada por estrada, de Díli até Baucau. É ainda aventurosa esta viagem, com um caminho muito irregular a obrigar a esforços, solavancos e atenções muito especiais. As nuvens acastelavam-se no horizonte, mas a chuva não veio, antes cedendo lugar ao sol e ao calor. Primeiro tivemos a paisagem xistosa, depois a calcária, primeiro o verde e depois o amarelo, até à cidade de Manatuto, a pequena propriedade e o regadio e a seguir a estepe seca. Sempre com o mar por companhia, com um azul fantástico, apanhámos alguns sustos por causa do abrupto das ravinas. Todos ficam deslumbrados, é Timor Leste no seu melhor, terra acolhedora e agreste, intensa e doce - e até os mangais constituem lição, uma vez que medram dentro da água salgada, bastando-lhes apenas algumas horas de água doce. Chegamos a Baucau quase com uma hora de atraso e D. Basílio do Nascimento espera-nos com a sua simpatia e com a hospitalidade que tão bem conhecemos. Um grupo de jovens meninas aguarda-nos na catedral e os seus cânticos na celebração são o modo de nos dizerem que somos bem-vindos. Ouvimos o seu português, às vezes inseguro, entre pequenos sorrisos, mas o olhar é transparente e de uma simpatia tocante.

Camões por companhia

Partimos de manhã bem cedo para Amboino e já nas Molucas começamos a ver com os nossos próprios olhos mais um dos cenários da presença portuguesa no Oriente do Oriente. Apesar de pequenos atrasos inevitáveis, sobretudo tratando-se de um voo especialmente contratado, chegamos a esta baía ao fim da manhã e embrenhamo-nos de imediato numa cidade equatorial situada numa pequena ilha intensamente povoada de floresta. A presença de um tão alargado grupo de portugueses causa surpresa. As autoridades locais não se poupam a esforços para nos serem simpáticas. Somos levados ao hotel e depois ao restaurante do almoço, antecedidos por um automóvel da polícia municipal. O professor Luiz Filipe Thomaz, nosso incansável cicerone, peregrino do tempo, recorda em pormenor as vicissitudes da presença portuguesa, que aqui ocorreu de 1512 a 1605. Fala-nos do naufrágio de Francisco Serrão nas ilhas das tartarugas, do comércio do cravo e da noz-moscada e da chegada de São Francisco Xavier.

Nesta vinda às Molucas, não podemos deixar de lembrar que Fernão de Magalhães, apesar de português, ofereceu os seus préstimos ao Rei de Espanha, para tentar demonstrar que estas ilhas estariam fora do hemisfério português. Fê-lo em vão, uma vez que, ao chegar, depressa se apercebeu de que não tinha razão. O resto da história é conhecido, mas lembrámo-la com monsenhor Andreas Sol, um holandês católico entusiasta da presença portuguesa nas Molucas e em especial em Amboino. A biblioteca que reuniu é uma preciosidade: livros, mapas, crónicas, revistas - mas mais importante foi o modo como nos recebeu nos seus 95 anos. Este foi, sem dúvida, o momento alto da nossa passagem por Amboino. Entre livros e memórias foi a recordação dos portugueses que aqui esteve.

Temos Camões por companhia. Chegados a Ternate, lemos o que o épico nos diz no Canto X de Os Lusíadas:

"Olha cá pelos mares do Oriente
As infinitas ilhas espalhadas:
Vê Tidore e Ternate, co fervente
Cume que lança as flamas ondeadas.
... As árvores verás do cravo ardente
Co sangue português inda compradas".

Com os vulcões adormecidos em volta, regressamos às Molucas do Norte vindos de Makassar, nas Celebes, onde a memória portuguesa também está bem presente. Somos recebidos com honras especiais. Visitamos o sultão de Ternate, Mudaffar Syah, que recorda a antiga presença portuguesa e faz questão de dizer que agora nos reencontramos em nome da cultura da paz. O sultão é uma pessoa culta que faz questão de salientar a importância que a vinda dos portugueses tem para o sultanato, dizendo que cada um de nós passará, por certo, a ser um embaixador de Ternate, onde quer que se encontre. Fala-nos do fenómeno religioso e da importância do conhecimento nas diferenças culturais ou do diálogo entre as confissões. Estamos na zona de produção do cravinho, sob a chuva miudinha, mas também da noz-moscada e, num percurso na ilha, paramos na estrada para ver as plantas e compreender o respectivo circuito da produção.

A primeira armada portuguesa destinada a Maluco envolveu o mercador tâmul Nina Chatu e o nacoda mouro Ismael com Rui Araújo, feitor de Malaca. Mas a expedição de António Abreu de 1511 foi a primeira a sério, carregada de mercadorias com valia nas ilhas do cravo. A história das ilhas e dos portugueses é cheia de peripécias e vicissitudes.

Em Tidore, aonde fomos em lanchas rápidas, tivemos a mesma recepção calorosa, com danças e cantares e uma hospitalidade fantástica. Também o sultão fez questão de dizer como somos bem-vindos e como a nossa presença é amiga. O panorama equatorial é paradisíaco e as águas do mar tépidas. Quando, no dia seguinte, já em Jacarta, no Café Batavia (com as paredes repletas de fotografias míticas), nos encontrámos com os elementos da comunidade Tugu (vinda de Malaca, Ceilão e Cochim), percebemos que a memória do papiar cristão, do português como língua franca não é uma ilusão distante. O olhar luminoso de uma jovem tugu, a aprender português, diz-nos que a história sobrevive.

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Guilherme d’Oliveira Martins, presidente do Tribunal de Contas, é também presidente do Centro Nacional de Cultura. Entre 27 de Agosto e 10 de Setembro, participou na viagem que a instituição organizou, em parceria com o Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, pela Malásia, Timor Leste e Indonésia, a propósito dos 500 anos do estabelecimento dos portugueses em Malaca.

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