Samarcanda e o coração da Rota da Seda
Os três dias de Turquemenistão foram, no entanto, pouco mais de um aquecimento para as verdadeiras estrelas do programa. Estrelas de pleno direito, diga-se de passagem, mas (ainda) com estatuto de culto. De Samarcanda toda a gente ouviu falar - no entanto, muitos nem sequer sabem onde fica e mesmo agora, passadas duas décadas sobre a independência, a cidade mais famosa do Uzbequistão está longe de ser um destino do turismo de massas. Menos ainda são as excursões a Bukhara e Khiva, os outros dois vértices do triângulo da Seda, apesar de recolherem a preferência de muitos viajantes independentes.
Nas três cidades cumprimos programas centrados na receita dos cinco emes (mausoléus, madrassas, mercados, mesquitas e minaretes), escoltados por um desses guias que têm horror ao silêncio. Todas as visitas previam, no entanto, bastante tempo livre para vaguear à vontade por sítios esplêndidos, frequentemente desertos. Raramente se cruzaram outros estrangeiros, certamente menos que uzbeques de férias, boa parte em excursões religiosas só de homens ou só de mulheres.
O tema dessas romarias foi uma das surpresas de Samarcanda. O apogeu da cidade está associado a Amir Timur, mais conhecido por Tamerlão, conquistador brutal e sanguinário, uma das figuras mais sórdidas da história da humanidade. Mas o cruel imperador, que conquistou meio mundo no século XIV, era também um homem com gosto pelas artes e pela arquitectura e a ele se devem alguns dos principais monumentos de Samarcanda. Ora, o que hoje se verifica, vinte anos transcorridos sobre a declaração da independência, é todo um movimento de reabilitação de Tamerlão como herói nacional. Assim se explicam as estátuas gigantes que o invocam um pouco por todo o lado no Uzbequistão, mas também os grupos de peregrinos que vão de propósito rezar ao seu mausoléu, em Samarcanda, aproveitando para fazer pelo caminho a rota das "capelinhas" erigidas pela dinastia Timurida.
Em termos arquitectónicos, o núcleo antigo de Samarcanda é inexcedível. O seu Registan, ampla praça dominada por três majestosas madrassas (escolas corânicas), é o principal conjunto monumental da Ásia Central. Mas é também um sítio mágico, sobretudo ao fim do dia, quando se acendem as faianças multicolores que cobrem as suas fachadas de alto a baixo. O Registan concorre em termos de popularidade, mas também de requinte artístico, com a a extraordinária Shah-I-Zinda, a avenida dos mausoléus, onde se encontram algumas das mais exuberantes composições de cerâmica do mundo árabe. Igualmente admiráveis são a mesquita Bibi-Khanym, o observatório de Ulugbek (neto astrónomo de Timur), ou ainda os achados arqueológicos de Afrosiab, a antiga Samarcanda.
Estas e mais atracções da cidade encontram-se disseminadas por uma série de ilhas monumentais, sitiadas por avenidas soviéticas, pólos industriais e campi universitários. Já o centro histórico de Bukhara é mais compacto e mais tradicional, rodeado por uma rede de bazares especializados, que em boa parte ainda conservam o comércio tradicional, da ourivesaria ao fabrico de móveis. O ícone da cidade é o minarete Kalon, mandado construir por Arslan Khan, em 1127, com 47 metros de altura e 14 bandas ornamentais. Uma peça de arquitectura tão imponente que foi das poucas que Genghis Khan poupou à sua devastadora passagem, em 1220. Igualmente soberba é a vizinha madrassa Mir-i-Arab, o extraordinário naipe de mausoléus que fazem de Bukhara o lugar mais santo do Uzbequistão, a cidadela ou ainda o extravagante palácio do seu último emir da cidade.