Se fosse um cenário do velho Oeste, o panorama equivalente seria este: uma rua deserta, com o pó a revolutear e, para ser mais cinematográfico, um arbusto a rolar, empurrado pelo vento. Mas o velho Oeste já só existe mesmo nos filmes e nós estamos longe desse território; embora estejamos no Oeste francês.
É sábado de manhã, em plena época de esqui, no coração dos Pirenéus franceses. Estamos diante da estação de teleférico que liga a vila de Saint-Lary à sua estação de esqui: o teleférico está parado e não se vê ninguém, na rua passam uns poucos de carros. Chove e a neve na beira das ruas, que já foi abundante e fofa, desfaz-se sem pudor perante os nossos olhos. Hoje, ninguém sobe: todas as pistas estão fechadas. No dia anterior, mais subiram, entre mais chuva do que neve, mas para pouco esqui. Nós estivemos três manhãs em Saint-Lary e todas começavam com um ritual. Ao pequeno-almoço, sempre no Coucaril, salão de chá e confeitaria, perguntavam-nos: “Então, vão esquiar?”
Começámos esperançosos, e ao último dia já nos ríamos com a má sorte declarada. Na mesa do pequeno-almoço reuniam-se os nossos guias — primeiro chegava Christian, o director do turismo local, depois Manu, o guia esquiador-snowboarder no Inverno — e entre conversas com a estação o diagnóstico foi sempre o mesmo: não, hoje não está bom para esquiar.
Quando já achávamos que numa França caótica por causa da neve íamos regressar a Portugal sem calçar os esquis, vem o último dia para salvar a honra da estância de Saint-Lary-Soulan, que se auto-denomina como a “estrela dos Pirenéus”: visto da vila, não tínhamos muita esperança, apesar da neve caída durante a noite; mas de “lá de cima” deram-nos o ok. E, chegados à estação percebemos que, sim, teríamos esqui. Umas duas horas, antes do regresso a Toulouse para apanhar o avião de regresso.
Entre a nossa chegada e a nossa partida, nada relacionado directamente com a neve correu como programado. Por isso, aproveitámos para descobrir o outro lado das estâncias de esqui: o que se faz quando não se pode esquiar? Essa foi a pergunta inevitável ao segundo-pequeno almoço. A resposta saiu pronta de Manu: “Manger, boire et spa.” Tudo o que já havíamos feito e haveríamos de fazer mais. Ainda pudemos acrescentar “e dançar salsa”, mas isso é pura coincidência: nestes dias em que permanecemos em Saint Lary decorreu a quarta edição do Salsa en la Montaña, um festival de quatro dias que vem provar que a salsa se baila onde se quer.
Assim, antes de chegarmos ao esqui — a nossa experiência é pouca, sempre nos Pirenéus, mas, feita esta declaração, regressamos com a certeza de que esta foi a melhor neve em que ensaiamos esquiar — vamos descobrir o que mais se pode fazer nestas vilas isoladas em horizontes cerrados de montanhas brancas quando a neve falha e o “desespero” chega aos organizadores da visita de tal forma que uma das propostas para compensar essa não comparência é ir a Espanha. Acabamos por não chegar lá — ironicamente, por causa da neve…
De Toulouse ao “deserto”
Vamos localizar-nos. Estamos no Oeste francês, na região de Midi-Pyrénées, a maior de França: Toulouse é a cidade principal e é a porta de entrada para este território. É aí que aterramos, numa manhã fria de meados de Janeiro. Não vemos nada da “cidade rosa”, mas vislumbramos parte da cidade tecnológica: a Airbus tem aqui a sua maior fábrica e ainda no avião, ao percorrer as pistas do aeroporto, passamos por vários hangares que o exibem. Toulouse é também, queixam-se os habitantes da região, a força centrífuga que suga tudo o que está à sua volta — por isso, a região de Midi-Pyrénées é muitas vezes apodada depreciativamente de “Toulouse e o deserto Midi-Pirenaico” (como o país já foi apelidado de “Paris e o deserto francês”).
Estamos na confluência de várias regiões históricas, mas a região de Midi-Pyrénées enquanto entidade administrativa não o é: é uma invenção do século XX que reúne porções de províncias históricas como a Gasconha e o Languedoc, e outras zonas mais pequenas como o condado de Fox. Este é o “deserto” para onde vamos, em direcção à antiga província de Quatre-Vallées, onde está o nosso Vallée d’Aure; o “deserto”, onde, lemos, se encontra o maior número de povoações muradas de França.
Não vimos muitas na auto-estrada que rasga o tal deserto até chegarmos a Saint Lary. A paisagem é ondulante, verde desmaiado e salpicada de vilarejos dos quais distinguimos a maior parte das vezes apenas o aglomerado de telhados e a torre da igreja. Mais perto, essa paisagem por vezes tem guardiões imensos, árvores que despidas são um emaranhado etéreo: ao longe acobreadas, quando passamos por elas, cinzas. A certa altura, o horizonte passa a ser cumes nevados, que se chegam a confundir com nuvens no céu azul; quando saímos da auto-estrada, esses cumes começam a apertar-se em nosso redor.
E a neve vem até nós: primeiro, farrapos nos campos, que vemos verdes e brancos ao ritmo do balancear das curvas da estrada; à medida que nos embrenhamos no vale, o verde desaparece e o cenário passa a vestir unicamente de branco. Cada vez mais branco até passarmos por “muros” de neve com muitos centímetros de altura nas bermas da estrada, quase engolindo sinais de trânsito.
A chegada a Saint Lary (menos de duas horas depois de sairmos de Toulouse) é, portanto, “abençoada” pela neve e por sol que escapa para além das montanhas que estão ao nosso redor, algumas quase se despenhando sobre a pequena vila de mil habitantes que nestas alturas de esqui se podem multiplicar até aos 30 mil. Passamos por muitos esquiadores, botas nos pés e esquis aos ombros, porque o teleférico e a telecabina para a estância, que não se vê daqui, partem mesmo do centro da vila, em pontos opostos — o que permite que quem está alojado cá em baixo possa caminhar apenas alguns minutos até estar em modo “expresso” até às pistas. Nós sabemos que hoje não temos esqui nos planos, porém o vaivém de esquiadores e snowboarders deixa-nos tranquilos: há neve.
Depois da nossa primeira experiência gastronómica em terras de Vale d’Aure — truta do Lac D’Oo — no restaurante La Pergole, menos de uma hora a pé permite-nos completar a volta à vila. O seu núcleo histórico é pequeno, constituído por ruelas, sobretudo, onde por milagre os carros sobrevivem à patinagem no gelo.
A arquitectura tem o charme rústico destas paragens, de inspiração aragonesa, que não é elegante como nos Alpes (embora nos tenhamos cruzado com Elle, uma cadela minúscula que, com o seu casaco negro e rosa e óculos a condizer, merecia outras passerelles) mas tem uma aura de autenticidade ancestral.
Os edifícios de pedra e madeira com telhados de xisto impossivelmente inclinados albergam uma sucessão de pequenos negócios, gastronómicos à cabeça — espreitamos pâtisseries, boulangeries, frommageries a vender directamente para rua, boutiques de produtos regionais e gourmet — , de equipamento desportivo a seguir; vemos também mobiliário típico, souvenirs, roupa, cafés bares e restaurantes. O movimento é grande (não esquecer o tamanho da vila), há grupos de crianças de escola a passear e só nós parecemos preocupados em escapar às armadilhas da neve-gelo dos passeios — preferimos ir pelas ruas.
Fora da zona mais central, perto da casa de um dos mais famosos habitantes de Saint-Lary, o urso Bingo, digníssimo representante da raça pirenaica, que não chegamos a conhecer, de vez em quando temos de saltar para as bermas porque os limpa-neves estão atarefadíssimos — rasgam o ar com os seus alertas. Se optarmos por seguir o percurso do rio Neste, que delimita Saint Lary, numa promenade estreita à laia de varanda imensa que acompanha toda a povoação, salvamo-nos dos limpa-neves, mas podemos cair nas armadilhas que a camada de neve esconde: ao sair da “varanda” podemos calcular mal a sua altura e acabarmos enterrados nela.
Não são só os limpa-neves que estragam o idílio nevado. Dos céus chega um ruído constante de helicópteros: andam sobre os picos a prevenir avalanchas que têm provocado o fecho das estradas para a estação, de algumas pistas e até das ligações para Espanha, aqui mesmo ao lado. E como previnem as avalanchas? Provocando-as. Assim, os helicópteros andam a sobrevoar os pontos sensíveis e a lançar explosivos, seguidos de perto por outro helicóptero da televisão pública francesa, que vai transmitir as imagens para todo o país.
O porco e a igreja que chora
Neve farta, portanto, quando nos dirigimos para La Vignécoise – Maison Coustalat, conservaria artesanal. Já não é Saint Lary, embora estejamos mesmo ao lado, é Vignet, em estrada que atravessa campos nevados e onde vai sempre passando gente com esquis e pranchas, já que a telecabina é já ali, do lado de Saint Lary, claro.
A especialidade aqui é o porco preto de Bigorre, um “primo” do porco ibérico que dá origem a iguarias igualmente apreciadas e um produto com denominação de origem protegida que nos últimos anos “renasceu” no panorama gastronómico francês. Na parte da frente é loja, nas partes traseiras unidade de produção artesanal. “Temos pequenas quantidades, entre 30 a 50 porcos para garantir a qualidade”, explica Jean Michel Coustalat, “quando não há porcos de qualidade, há um consórcio [Consortium du Noir de Bigorre] que assegura que todos os produtores têm um mínimo de animais para produzir.” A família Coustalat produz charcutaria e conservas artesanais há mais de 20 anos e os animais são criados pelos próprios. Da sua pequena produção saem ainda, por exemplo, produtos de canard gras, embora os patos não sejam de sua criação.
O cheiro é intenso quando entramos na loja: há presuntos pendurados das traves de madeira, há queijos em exposição (entre eles, o Napoléon, feito com água termal). Daqui a pouco, vão surgir-nos em pequenas bandejas de provas — entretanto, espreitamos as prateleiras para descobrir produtos tão regionais quanto a soupe à l’ortie de montanha (sopa de urtigas), rilletes e gaspacho de trutas, a conhecida cassoulet, o mel ou o jus des pommes, compotas artesanais. Quanto aos produtos da casa, declinam-se sobretudo entre o porco preto de Bigorre, com terrines várias (com castanhas e ameixas, por exemplo), rilletes e boudin, garbure e daube; e o canard gras em patés, foie gras, confits.
Sim, quando saímos temos tudo menos fome e ainda bem que ainda há algumas horas até ao jantar. Como a estrada da montanha foi, entretanto, aberta subimos para a estação de esqui ao final do dia. Não chegamos a atingi-la, mas não importa: afinal, passamos Soulan, a aldeia que também dá nome à estância, e que parece a verdadeira aldeia-presépio, aldeia-Natal. Havemos de voltar, para tirar fotografias com luz, mas é hoje que vemos la eglise que pleure, a igreja que chora, lágrimas na fachada que são (ainda) luzes natalícias (aldeia-Natal) — e que parecem nada menos que naturais neste cenário de casas que praticamente trepam a montanha para formar um aglomerado-cascata (aldeia-presépio), que a neve veste de maneira exemplar para encaixar perfeitamente no modelo mais ou menos universal de idílio branco.
Daqui, avista-se a estação de esqui, com os edifícios de madeira que parecem pendurados na montanha em frente; avistam-se mais montanhas e campos brancos pintados de casas e esqueletos de árvores, que cobrem encostas como soldados em fileira de um exército derrotado; avista-se Saint-Lary na planície. O tempo parece suspenso visto destas alturas congeladas na solidão de um final de tarde. Deixa de o parecer quando vemos a neve das avalanchas que ainda se acumula na beira da estrada tortuosa em curvas e contra-curvas (a mais famosa é homenagem a Raymond Polidour, um ciclista que é uma espécie de herói nacional francês, apesar de ser conhecido como o “eterno segundo”, coevo de Eddy Merckx, que neste ponto da subida atacou para ganhar uma etapa do Tour de France): é neve feita pedra escurecida como num aluvião; é neve real a fazer estragos.
Antes de jantar, a primeira incursão pelo aprés-ski de Saint Lary (menos o esqui, claro) e pelo vinho quente, uma coisa claramente de turistas, como nos apercebemos. Talvez por preguiça, o nosso local para descanso ficou sempre o mesmo, bem ao lado do “beco da sede” (não lhe vimos o proveito).
O jantar no La Granje é um mergulho nas raízes culinárias dos Pirenéus, da Gasconha. A antiga casa agrícola foi transformada num restaurante elegante e acolhedor, em torno de uma lareira enorme; a comida tem reminiscências caseiras, diz quem sabe, com os pratos incontornáveis destas paragens, como sopa de feijão de Tarbes com bacon grelhado, tarte de pato com couve ou fígado salteado. Depois do peixe ao almoço, o veado ao jantar — pode parecer incongruente, mas apetites não se discutem. Entre sopas e saladas de entrada, percebemos que o La Granje não é para meninos: não só os pratos são ultra-consistentes como as doses são XL como nunca antes visto em França (sem perder a elegância da apresentação).
Sem esqui, com spa e alguma cidra
Nada fazia prever o cenário de sexta-feira de manhã. Chuviscos gelados saúdam-nos; e nós equipados para o esqui. A neve continua a amontoar-se em jardins, telhados, carros, mas nas estradas e passeios deixou de ser a visão fofa e branca e passou a ser uma mistura de bloco de gelo negro com lama “granizada”. Sim, não é fácil viver com neve quando esta deixa de ser “perfeita”. Ao pequeno-almoço, dizem-nos que as condições atmosféricas “à l’haut” não estão melhores, fala-se em nevoeiro. “Mas as pistas estão abertas?”, insistimos. “Algumas, mas não sabemos por quanto tempo.”
Não obstante, já com o forfait no bolso certo para evitar complicações, seguimos Manu, com o seu casaco cor-de-laranja e gorro por cima do cabelo revolto, até ao teleférico. Vamos tentar. Connosco vão muitos jovens, preparados para um dia nas pistas. Nós chegamos pela primeira vez à estância, 1700 metros de altitude no Pla D’Adet, e somos recebidos por uma mistura pouco agradável: a chuva vem com nevoeiro e vento cortante, as ruas da zona comercial e residencial estão intransitáveis e há lama e gelo.
Estamos na zona de iniciantes por excelência, onde as escolas de esqui se concentram e a pista quase sem desnível está cheia de crianças em grupos a dar os primeiros passos em cima de esquis — foi uma área recentemente renovada, que reforça a aposta da estância em acolher famílias com crianças; possui, aliás, o rótulo “Família Mais Montanha”.
Aqui, deste pequeno planalto, abre-se um vale onde pistas verdes já se cruzam com azuis, há esquiadores a subir nos “agarra-rabos” e nas telecadeiras enquanto outros ziguezagueiam pelas pistas que a certa altura são engolidas pelo nevoeiro. Na outra ponta, a telecabina sobe e desce para a vila e é apenas esta porção de pistas que está aberta — o que significa que cerca de mais de 80 por cento do domínio esquiável está fechado, à espera de melhores dias.
O nosso plano era esquiar um pouco e conhecer a estância, levados pelos meios mecânicos; inclusive almoçar num dos restaurantes de altitude (há três). O nosso plano aborta. Não teremos oportunidade de ver mais do que já estamos a ver, o Pla D’Adet (Saint-Lary 1700), uma das três secções da estância — as outras são o Espiaube (Saint-Lary 1900) e Saint-Lary 2400 — que, juntas, oferecem cem quilómetros de pistas em 700 hectares, mesmo às portas do Parque Nacional dos Pirenéus e da reserva natural do Néouvielle.
É o proverbial morrer na praia, pensamos, quando voltamos costas às alturas sem conhecer quase nada da estância (ver caixa). Baixamos em telecabina, um silêncio quase espectral perante o cenário branco pintalgado de árvores “queimadas” pelo Inverno que sobrevoamos. Mais um passeio pelas ruas de Saint Lary, chocolate e vinho quente e incredulidade perante o que está a acontecer.
“O ano passado”, conta Christian Portello, o director de turismo de Saint-Lary, “foi o melhor de sempre”. “Tivemos 500 mil esquiadores” (aqui leia-se: entradas, forfaits diários). “E este ano já subimos mais 40 por cento”, aponta, mesmo se ainda não chegamos a Fevereiro, mês de férias escolares em França, que o ano passado trouxe 15 mil entradas por dia.
Por aqui, espera-se um Fevereiro tão bom ou melhor. Contudo, estes dias de Janeiro vieram estragar alguns planos — os nossos, claro, e os dos organizadores da “Salsa en la Montaña”, o evento que está a deixar todos entusiasmados, ainda que o tempo tenha trazido contrariedades. Começou como “Salsa en la Playa”, em La Rochelle, em 2003, até que alguns membros da organização (a associação Tormenta Latina) que fazem esqui decidiram misturar as duas coisas, “porque são tão diferentes”, contam-nos. Em 2010 fizeram a primeira Salsa en la Montaña en Saint-Lary e desde então o sucesso é em crescendo. Para este fim-de-semana (que começou na quinta-feira) estava programada até dança com esquis, lá em cima, e aulas ao ar livre para iniciantes, cá em baixo — estava porque já sabemos que não vai acontecer, será tudo em local coberto. Mas certa é a folie folle — espera-se.
O almoço no Isard Café Central faz-se em ambiente contemporâneo, entre comida regional e internacional. Entre peixe do dia, carpaccio, pauvé saumon, magret du canard entier tranche, medaillons de veau, tarte de boeuf, escolhemos uma pasta, mais leve.
E depois do almoço, mais experiência gastronómica: desta feita vamos provar um ícone doce desta parte dos Pirenéus. Le Gâteau à la Broche, qualquer coisa como “bolo no espeto”, é indispensável em qualquer lar que se preze e alguns ainda o fazem em casa — embora já quase nunca da maneira tradicional, no fogo, mas em fornos eléctricos. Ancizan é agora o nosso destino e a Histoire de Gâteaux a nossa paragem. É aqui que, mais uma vez, vamos aos bastidores da loja para entrar em ambiente extra-quente e observar como se formam aqueles bolos, que os caprichos do calor fazem ter aspecto de pinheiros de Natal, nunca iguais, de cores que vão do amarelo ao castanho conforme a cozedura. Os ingredientes são simples: ovos, manteiga, açúcar, farinha, baunilha natural e rum formam a massa que vai sendo vertida sobre uma espécie de espeto revestido de “almofadas” de papel vegetal que gira em frente ao fogo alimentado por lenha.
Depois do fogo, o regresso a Saint-Lary é uma incursão aquática. A vila é conhecida pelas suas termas e no Sensoria Thermalisme & Spa temos um cheirinho delas. A nossa entrada é para o Sensoria Rio, uma piscina que é como uma gruta com janelas para as montanhas, onde se procura simular as “sensações do canyoning”. Imaginamos como será relaxante estar ali depois de um dia intenso de esqui — nós, sem termos tido esqui, passamos por géiseres e jactos de massagens, cascatas com mais ou menos pressão, jacuzzis virados à paisagem; entramos na sauna e mergulhamos em água gelada e não saímos sem um pouco de banho turco.
Pois, não andamos longe da comida e da bebida — já nos tinham prevenido, claro — e esta noite temos restaurante temático, a Cidrerie d’Ancizan, que faz as vezes de museu da cidra. Curioso que a cidra seja bebida típica nestas paragens onde não vimos nenhuma macieira – Christian confirma: as maçãs vêm do País Basco, francês e espanhol. Os enormes barris estão encostados a uma das paredes do enorme espaço rústico, com mezzanines onde se distinguem figuras do museu — cada um serve-se à sua vontade, com a técnica possível: a ideia é abrir o barril, deixar a cidra cair no copo que vem debaixo até cima (é preciso briser, diz uma placa).
Entramos ao som de música por pura sorte. Hoje há um encontro da sociedade gestora das águas da comuna e o coro do Vallée d’Aure veio animá-lo com canções tradicionais vertidas em várias línguas: o dialecto do vale (a que Christian chama simplesmente “patois”, que mistura várias influências da região), o basco, o francês. Enquanto o convívio não passa dos aperitivos, temos tempo de degustar o menu “Formule cidrerie”, que é o mesmo que dizer, seis tapas generosas (entre bocadillo de bigorrin, rillete de salmão e boudin de porco negro), um côte de boeuf acompanhado por batatas fritas (bem escuras como parece ser tradição por aqui), um pouco de queijo pirenaico e tarte de maçã — tudo acompanhado de vinho do sudoeste da França, “o vinho mais regional que temos”, brinca Christian. A completar, não podemos recusar um Armagnac (estamos nas redondezas), oferta de um dos convivas.
Depois da música tradicional dos Pirenéus, passamos para a música tradicional das Caraíbas: a “Salsa en la Montaña” vai na segunda noite, em espaço improvisado, e é por lá que fechamos a segunda noite. Nas pistas, evoluem casais mais ou menos proficientes em salsa e quizomba, a novidade desta edição; nós deixamo-nos ficar a observar os passos.
Do chocolate à raclette
É sábado e já sabem a história. A chuva levou a neve das estradas e passeios, já não se escutam os limpa-neves, mas as ruas continuam com alguma agitação. É dia de mercado e enquanto a chuva não nos correu dali viajamos um pouco pela região em bancas de carne e peixe, de queijo, de frutas, cidra, conservas e até de sabonetes, Les Sabons de Alain — Alain Almagro, que os desenha enquanto um amigo os produz aqui perto.
Deixamos a chuva e vamos procurar a única chocolataria artesanal em Saint-Lary, Les Flocons Pyrénées. Loja pequenina, tem nos flocons a sua especialidade maior — praliné de chocolate negro envolto em merengue —, mas foi à “Perle d’Aure” que nos rendemos — ganache de chocolate de leite com polpa de mirtilo, envolta em açúcar glace. Queríamos ver o mestre chocolateiro em acção, porém esta é “apenas uma boutique”, explica Dominique, a casa-mãe fica em La Barthe de Neste, a alguns quilómetros daqui. Não saímos sem descobrir que os proprietários são portugueses: Bernardino (Dino), o mestre chocolateiro, e Maria Ferreira, irmãos. “Vieram de Nancy, mas os pais vivem em Portugal e eles todos os anos vão lá.”
Tentamos ir a Espanha, mas a neve não deixa — as avalanchas cortam a estrada que vai dar ao túnel fronteiriço que liga Aragnouet-Bielsa, a 20 minutos de Saint-Lary; e Lourdes, também na região, não recolhe unanimidade. Mais um almoço pantagruélico, desta vez seguido de descanso. Ao final do dia, bebe-se um copo de vinho e espreita-se o jogo de râguebi que passa no pub antes da última ceia em Saint-Lary, que por acaso acontece em Vignet.
O Le Vignecois é um restaurante em plena aldeia, construído de raiz em estilo montanhês contemporâneo. As paredes são como se de betão se tratasse, mas não falta a lareira imensa, infelizmente apagada; nas paredes vemos equipamento de neve antigo — esquis de madeira dos anos 1930, raquetas também de madeira. O mobiliário tem uma patine antiga, algumas mesas têm bancos de madeira corridos (com costas); nesta noite de sábado enche-se de grupos jovens ruidosos. A nossa mesa enche-se de raclette, que, já nos habituamos, vem em dose XL — apropriado para ir saboreando devagar, ao ritmo do queijo a derreter.
A salsa fecha a noite, desta vez no ringue de patinagem, e com roupa a rigor: o tema é “Pink” e o traje deve (devia) acompanhar. Como ficamos pelas margens, não destoamos da alegria rosa, que evolui como um baile de final de curso.
Habemus esqui
No domingo já estamos preparados para o pior, mas, ainda assim, vestimos a roupa de esqui. E, finalmente, a boa notícia: vamos subir e vamos esquiar. Voltamos ao Pla d’Adet com o sol a brincar às escondidas no céu. O nevoeiro por vezes ameaça cobrir as pistas, mas não passou de ameaça. Equipados a rigor — desta vez, caminhar com as botas rígidas de esqui nem pareceu tão complicado —,lá esperamos o instrutor, da Escola de Esqui Francesa, que vai ajudar os principiantes e os quase principiantes.
Não vamos descrever o pânico que sentimos quando ele nos diz que temos de subir no “agarra-rabos” (foi uma estreia). “É muito fácil”, explica, “só é necessário ir em pé, sem sentar, e com os esquis paralelos. Quando chegarem lá cima, à marca laranja, saem rapidamente para o lado.” Demora meia subida até os esquis estabilizarem, finalmente paralelos, e saímos a tempo porque um colega grita-nos no momento certo.
As pistas estão cheias, esquiadores passam por todo o lado. Nós andamos muito tempo pelo lado dos principiantes — mas esquiamos até lá! — para controlar as mudanças de direcção. Nunca nos correu melhor e estamos surpreendidos; Alain, o instrutor que fala português com sotaque brasileiro e é assíduo no Ceará, diz que é pela neve, que está muito boa. Tanto que largamos por uma pista azul para chegar mais depressa ao local de entrega de equipamento: não só chegamos sãos e salvos como, no percurso mais íngreme, começamos a dar curvas instintivamente. É a primeira vez que tal acontece e quando chegamos ao fundo não queremos acreditar. Contudo, já não temos tempo de voltar atrás para comprovar que não foi um acaso; há que descer e regressar a Toulouse. A neve demorou a chegar a Saint-Lary, não a aproveitamos muito, mas foi a nossa melhor neve de sempre.
A estância Saint-Lary-Soulan: o que não vimos
Há uma particularidade da estância de Saint-Lary-Soulan que merece ser destacada: é quase toda ela atravessada por uma rede de pistas fáceis (incluindo em altitude). Esta não é uma questão de somenos e, confessamos, esperávamos ter podido usufruir dela, já que permite a (quase) iniciantes desfrutarem de toda estância juntamente com os mais avançados e descobrirem as paisagens que se escondem em cada encosta: não raras vezes, estas estão povoadas de árvores em cenário quase alpino e abrem-se em lagos, como o Lac de L’Oule, a 1820 metros, que visto no mapa parece enterrado entre as montanhas, ou o Lac Cap de Long, este altaneiro, a 2450 metros de altitude, o segundo pico esquiável mais alto — pode subir-se até aos 2515 metros. Não obstante esta particularidade, cada um dos três sectores tem uma vocação mais natural: Saint-Lary 1700 é ideal para passeios em família, Saint-Lary 1900 oferece grandes pistas desportivas e Saint-Lary 2400 é uma janela panorâmica sobre os Pirenéus, com um recanto bem radical.
Não íamos experimentar, mas declaramos o nosso fascínio pelos parques de snowboard. Gostaríamos, portanto, de ter visto algumas manobras no parque, que se situa em Saint-Lary 2400, e que foi o primeiro na Europa a beneficiar do sistema DC Live Park. É uma ferramenta lúdica que permite a qualquer snowboarder filmar as suas aventuras e, por exemplo, partilhá-las na Internet em tempo quase real: um autocolante de identificação é colado ao capacete e o sistema reconhece-o à passagem, registando os seus movimentos; cinco minutos depois estão disponíveis as imagens num smartphone, onde poderão ser editadas e colocadas online.
Menos tecnológica (pelo contrário, é quase um regresso aos básicos), mas muito apreciada, é outra das vertentes de Saint Lary 2400 — a das caminhadas em raquetas, sobretudo em torno do Lac de L’Oule. Uma telecadeira leva os caminhantes até lá e depois estes aventuram-se pelo tapete branco por locais onde os esquis normalmente não chegam. A estância de Saint-Lary é de tal forma procurada apenas para esta actividade que existe um forfait caminhadas para os não esquiadores. Claro que tínhamos uma caminhada marcada, para o dia em que a estância nem chegou a abrir uma pista sequer.
Não estavam no programa mas estão entre as ofertas de Saint-Lary uma série de actividades de neve mais ou menos radicais, oferecidas pelas inúmeras empresas de animação turística que aqui actuam: parapente, escaladas em gelo, passeios em motas de neve e em trenós puxados por cães, alpinismo invernal, trotinetas de neve e até arborismo. Embora tenha características mais alpinas, há também terreno para esqui de fundo.
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Guia prático
Como ir
De Portugal, a melhor maneira de chegar a Saint-Lary é voando até Toulouse. A TAP voa para Toulouse diariamente. De Lisboa as tarifas começam em 153€; do Porto em 177€ (com tempo de ligação muito prolongado — os voos com saída no Porto fazem escala em Lisboa) ou 256€ (com menor tempo de ligação). A easyJet voa dois dias por semana entre o Porto e Toulouse, com preços a partir de 81€, ida e volta (taxas de administração incluída).
De Toulouse a Saint-Lary o meio mais económico de fazer a viagem é de comboio até Lannemezan e daí seguir de camioneta até à estância. Outra opção é alugar um carro — o percurso demora cerca de 1h30.
Onde dormir
A Fugas ficou alojada no Les Rives de L’Aure (Pierre et Vacances), um aparthotel (ou residência de turismo, como aqui lhes chamam), onde um estúdio para quatro pessoas (como o nosso: um quarto e dois sofás na sala-kitchnette) pode ir dos 360€ aos 940€ por semana — há opções com dois e três quartos. Está a 50 metros do centro da vila e a 100 do teleférico. A telecabina e o jardim termal estão ao lado.
O Mercure Sensoria é o único quatro estrelas da povoação. Situa-se no jardim termal, a 50 metros da telecabina. Os preços variam entre os 75€ e os 250€ por noite, quarto duplo, e incluem acesso livre ao ginásio, sauna, jacuzzi e banho turco.
O Hôtel La Pergola fica situado bem no coração da vila e oferece-se como hotel de charme. Os preços vão dos 70€ aos 114€ por noite.
Onde comer
Os restaurantes que visitámos servem, quase todos, comida tradicional — o que significa substancial, sobretudo se estamos a falar de carne ou de fondues e raclettes —, com ingredientes locais, apresentação irrepreensível e doses “exageradas”. Não faltam, porém, pizzarias ou creperies, por exemplo.
La Granje
13 route d’Autun, Saint-Lary-Soulan
L’ICC (Izard Café Central)
59 rue Vincent Mir, Saint-Lary-Soulan
La Cidrerie d’Ancizan
(temático: tapas e parrilhadas)
Ancizan
L’ Authentique Vignecois
2, rue Principale. Vignec
A Fugas viajou a convite da Estância de Saint-Lary-Soulan e da Atout France