Fugas - Viagens

Volta ao turismo em bicicleta: o português que criou «o melhor passeio do planeta»

Por Miguel Andrade

Comer, beber e pedalar. É este o mote da agência InGamba Tours, criada pelo português João Correia, ex-ciclista profissional, que até já mereceu a distinção de ter o melhor passeio de bicicleta do mundo segundo a revista internacional "Bicycling". Entre voltas a Itália, Correia também traz turistas a pedalar por Portugal.

Todos os anos, por alturas da Primavera, o ex-ciclista profissional João Correia viaja até à Toscânia, em Itália, para ser o guia de um grupo de ciclistas amadores em voltas de bicicleta que têm subidas árduas e descidas técnicas.

Só que aqui, mesmo nunca esquecendo o desporto turístico, esquecem-se, e bem, as dietas. A agência InGamba, criada por João Correia, de 38 anos, dedica-se a levar os turistas a pedalar mas também a mostrar as paisagens e dar a provar outras das atracções mais características da região: a comida e o vinho. Entre cada volta a pedal, há refeições que podem demorar três horas e provas de vários vinhos pelas quintas da região toscana, célebre pelo seu chianti.

No ano em que Correia correu profissionalmente pela equipa de elite da Cérvelo, a maior parte dos campos de treino eram realizados nesta região. “A ideia do InGamba nasceu numa volta em bicicleta, em 2010, quando me apercebi que o que eu pretendia era ter uma ligação à zona onde estava a viver”, explica. Era “um local de que gostava muito”. “Ali, tudo era simples”, resume.

“Queria ter um sítio onde pudesse pedalar em estradas magníficas sem olhar para números de potência [um dos métodos de treino mais usados no ciclismo]. Gostava de comer nos meus restaurantes favoritos e nas casas dos meus melhores amigos sem olhar para a balança. E pretendia beber os vinhos que mais apreciava à garrafa e não apenas um copo”, conta Correia.

Cada destino da InGamba faz lembrar uma Volta à França — prova que arranca a 29 de Junho e pode ser seguida no PÚBLICO — dos pequeninos, mas, sublinhe-se, as bicicletas usadas são topo de gama e até se tem um massagista e um mecânico portugueses à disposição. Todos os dias, pela manhã, os comensais saem à rua para pedalar entre 60 a 120km pelos encantos da Toscânia.

Contudo, estas voltas de bicicleta são só para abrir o apetite. Durante esse tempo, oito dias, Correia mostra aos interessados os seus lugares favoritos. Depois das etapas de bicicleta, o português organiza almoços num restaurante local e jantares/visitas a sítios como a quinta de vinhos Castello di Ama, onde se pode provar um chianti clássico, vinho tinto da região da Toscânia. Por isso, as voltas de bicicleta são despreocupadas e a comida, bebida e a cultura são um caso sério. “É partilhar com as pessoas uma coisa que normalmente não conseguem encontrar: descobrir um sítio com uma pessoa que conhece bem os cantos”, refere.

A primeira viagem InGamba surgiu de um desafio do ex-ciclista profissional, que é um grande utilizador das redes sociais. O português lançou um repto aos seguidores no Twitter para o seguirem pela Itália, onde andariam de bicicleta da parte da manhã e à tarde teriam tempo para conhecer a zona. Na primeira vez, em 2011, quatro pessoas alinharam; na Primavera desse ano, o número duplicou. A partir de 2012, a InGamba passou a ter várias viagens, onde até se inclui uma viagem pela região do chianti inteiramente dedicada às mulheres, a realizar em Maio.  

Em Outubro de cada ano, a InGamba volta a realizar-se em Itália com o objectivo dos aventureiros participarem na prova história L’Eroica. Esta prova pela região da Toscânia não tem este nome por mero acaso. Todos os participantes têm de correr com bicicletas antes de 1987 e são encorajados a vestirem roupas vintage. É um regresso ao passado do ciclismo, num percurso de 205 quilómetros (trata-se da prova mais longa), por subidas desafiantes e estradas de gravilha, num cenário de cortar a respiração.

Já realizado em 2012 e com data marcada para Setembro deste ano, Correia vem a Portugal e durante oito dias mostrará os cantos da cultura e da gastronomia portuguesas, numa viagem onde os ciclistas ficam, em cada noite, numa das Pousadas de Portugal, ficam a conhecer alguns dos restaurantes mais característicos do país (não turísticos) e vão provar e visitar os vinhos da região do Douro e do Porto. A viagem, entretanto, já tem mesmo lotação esgotada.

 

Trocar o ciclismo pela comida e vice-versa
Na vida de Correia, a ligação entre ciclismo e comida tem mais que se lhe diga. Correia foi ciclista profissional até aos 21 anos, tendo então trocado o desporto por um trabalho de secretária. Acabaria por engordar até ficar com o peso de dois ciclistas profissionais... Mas, com 34 anos, idade em que muitos ciclistas se retiram, voltou ao ciclismo profissional para a equipa da Cérvelo Test Team.   

O regresso de Correia não foi uma pequena conquista já que na maior parte da sua vida adulta o apetite por pasta foi ultrapassado pelo apetite da vitória. “A comida era como treinar”, recordou Correia dos dias em que os jantares demoravam algumas horas e tinham seis a oito pratos. “Entrava num restaurante, alongava um pouco e até usava umas calças mais confortáveis.”

Tendo começado no ciclismo em criança, em Portugal, Correia continuaria a subir nos “rankings” amadores depois da família se ter mudado para Sleepy Hollow, Nova Iorque, quando tinha 11 anos. Durante a adolescência, Correia conciliava a escola com o ciclismo em equipas em França e na Holanda. Depois de resultados promissores nos Campeonatos do Mundo de Juniores, assinou por uma equipa de ciclismo profissional em Portugal, em 1995, e entrou na Universidade de Fordham em Nova Iorque. A necessária dedicação à vida académica levou-o a deixar o ciclismo de lado. Depois de se ter licenciado, começou a trabalhar na “Esquire Magazine” e a lidar com clientes.

“A minha forma de negociar era através da criação de relações e consegui vários negócios à mesa”, diz-nos Correia. Mas à mesa com os clientes não se poupava nas refeições. “Começava com um queijo mozzarella, pedia um prato de esparguete a bolonhesa, depois um coelho, vinho e terminava com grappa [aguardente à italiana]. Isto era uma refeição light.”

A vida sedentária levou-o a atingir os 93kgs. Quando passou a trabalhar na revista “Bicycling”, em 2004, tinha de pedalar com os clientes ao fim-de-semana e era “humilhado”. As pessoas que o conheceram quando corria profissionalmente não queriam acreditar que era a mesma pessoa. “As pessoas perguntavam: João Pequeno, és mesmo tu?”, recorda, referindo-se à alcunha de criança. “Eu era enorme”. 

Em 2006, Correia estava a pedalar numa corrida recreativa, em Itália, com um cliente, que reparou na técnica forte do português e perguntou se ele já tinha corrido profissionalmente. Depois de Correia lhe ter contado as suas glórias passadas, o cliente motivou-o a tentar o ciclismo mais uma vez.

Foi este momento que o levou a procurar um treinador em Salt Lake City, Massimo Testa, para o ajudar a voltar à forma física a tempo dos Campeonatos Nacionais de Ciclismo de Portugal, em menos de um ano. Testa duvidou que os resultados chegassem tão rápido, uma vez que a percentagem de massa gorda de João Correia era de 23% (a maioria dos ciclistas ronda os 6%-8%). Com a ajuda de um nutricionista, que lhe indicou uma dieta baixa em gorduras e rica em proteínas e sessões de treino contínuas, Correia voltou, em 2007, aos Nacionais de Portugal: ficou em 12º lugar no contra-relógio individual – nada mau considerando que estava a competir com profissionais que não tinham tirado quase uma década para comer. No ano seguinte, o corredor assinou pela equipa americana Bissel Pro Cycling e no final de 2009 foi convidado pela Cérvelo, equipa patrocinada pela marca canadiana de bicicletas, que na altura era n.º1 nos rankings mundiais da União Ciclista Internacional (UCI).

Ao longo de 2010, Correia pedalou com a elite do pelotão internacional e era um dos domestiques, corredores que ajudam a equipa tanto a pedalar na frente ou a ir buscar águas para os colegas. No fim do mesmo ano, após “trabalhar arduamente para ter uma segunda oportunidade” no “sonho” de “ser ciclista profissional”, decidiu que era altura de parar a competição. Mas não de pedalar. Só que agora, alia, com a InGamba, as suas paixões: o prazer do turismo, de pedalar e de… comer e beber. Não em vão, a revista onde chegou a trabalhar, a “Bicycling”, não teve dúvidas em considerar a sua volta pela área de Chianti como “the best ride on Earth”.

 

http://www.ingamba.pro/ | https://www.facebook.com/inGambaTours

 

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