"Tranquila, menina, baiano molesta mas não sequestra". A frase é lançada em jeito de censura do rapaz que distribui fitinhas do Senhor do Bonfim e colares aos turistas que calcorreiam o Largo do Pelourinho - o lugar onde tudo começa e onde tudo acaba para quem está na cidade de Salvador da Bahia, no nordeste do Brasil.
É verdade que o sol ainda queima a pele. E que não há muitos recantos esconsos que alimentem o sentimento de insegurança. Mas os persistentes avisos do recepcionista do hotel induzem-nos uma percepção de insegurança. Que, de resto, fora confirmada pela manchete do jornal "A Tarde" que contava 436 homicídios na cidade, nos primeiros três meses de 2008.
Mas a verdade é que o Brasil é feito de muitas realidades que nem sempre se tocam. E que o desconforto se desvanece num ápice assim que nos predispomos a conversar com as pessoas que habitam este cenário de postal ilustrado.
Deixa-se o olhar vaguear em redor e o que se vê é o casario colonial debaixo do azul violento do céu. O acarajé frito nas calçadas de inspiração portuguesa. As rendas brancas das saias baianas, a Iemanjá dos livros do Jorge Amado. Impossível não sentir o inebriamento do cheiro a coco e a moqueca. Impossível não espiar as curvas cor de chocolate dos corpos despudorados pelos 35 graus centígrados. O riso e a doçura daquela língua sem asperezas que ecoa pelos becos do Pelourinho.
"Na Bahia, não precisa de dinheiro para ser feliz", atira o vendedor de fitinhas e colares. Chama-se Pedro Paulo, passou há pouco a curva dos 20, mas é conhecido como Pedro Paciência pelos cerca de 1.500 vendedores que, como ele, têm cartão passado pela prefeitura para aliciar turistas a trocar por reais os efeitos mágicos dos colares e das fitinhas. "Tem clientes que xingam a gente, jogam nossa cultura fora. A gente não reclama, mas dói aqui por dentro, sabe. Alguns escondem a máquina e a bolsa, quando vêem a gente. Sei que no Brasil muita gente rouba, mas não é todo o mundo igual: o baiano apanha uma face e dá a outra, não guarda raiva".
Precisamente porque se fartou da violência de São Paulo, onde chegou a trabalhar numa oficina de carros e onde tinha noites que dormia debaixo da cama para não apanhar as balas que invadiam o quarto, é que Pedro Paciência voltou à Salvador onde nasceu. "Se for para outra vida, quero voltar para ser baiano de novo", anuncia, entre risos soltos.
À nossa volta, o Largo do Pelourinho ferve. Há turistas de mapa em riste, há gente a regatear o preço das sandálias de couro, há o requebro das mulatas sorridentes, miúdos a distribuir panfletos alusivos às sessões de candomblé que evidenciam a convivência dos ritos africanos e dos orixás com as religiões católica e evangélica. Entre a miséria e a opulência, os baianos não perderam a capacidade de acreditar. Basta virar as costas para a Ladeira do Carmo, passar pelo Largo Quincas Berro D'Água (Jorge Amado, outra vez) e ir subindo até ao Terreiro de Jesus para esbarrar no pai-de-santo que lê o destino nos búzios. Enfrenta-se a incomodidade das calçadas, espreita-se por algumas das 365 igrejas de azulejo, ouro e barroco que enxameiam a cidade e desemboca-se na Praça da Sé, com gente a dormitar junto aos orelhões em forma de berimbau, com miúdos sôfregos em correrias indiferentes ao calor, com vendedores que aguardam com paciência de santo alguém que entre para comprar.
Da loja Mini Som, no número 16, desprende-se a voz de Carlinhos Brown, um dos muitos cantores baianos. Podia ser de Ivete Sangalo, que ali vive ainda. Ou de Gilberto Gil, Seu Jorge, Maria Bethania ou Gal Costa. Ou ainda de Daniela Mercury, que também ali tem casa. "Essa aí chegou mesmo a cantar uma música sobre o Ilê Ayé", conta Jorge Nascimento, o dono da loja. Negro.
Como é negra cerca de 80 por cento da população da Bahia. Nascimento rejubilou de alegria quando Mercury universalizou o movimento do Ilê Ayê, grupo cultural de luta pela valorização e inclusão da população afro-descendente, numa das suas músicas. "Nos teus olhos sou mau visto/Diz até tenho má índole/Mas no fundo tu me achas bonito/Lindo! /Ilê Aiyê...!/Negro sempre é vilão/Até meu bem, provar que não/É racismo meu? Não". Não? "Racismo sempre vai havendo no Brasil. Tem rádio que não passa música de negro", sentencia Nascimento.
Ao turista, este baiano aconselha uma passagem pelo Bairro da Liberdade, o maior bairro de população negra do país com cerca de 600 mil habitantes. "É um bloco afro onde existe um movimento muito grande em favor da liberdade negra", caracteriza, convicto de que a inclusão daquela zona nos roteiros turísticos pode ajudar a dissipar barreiras baseadas na cor da pele.
No bairro, como no resto da Bahia, "a música anda no sangue de toda a gente". E, assim sendo, "os baianos são alegres: riem mesmo das dificuldades".
Para ir ao Bairro da Liberdade seria preciso sair do centro histórico. Património Mundial desde 1985, o Pelourinho, ou o Pelô, como lhe chamam, é o maior aglomerado colonial de todo o Brasil e, apesar de ir funcionando como montra para turista ver, mantém o ritmo boémio que torna fraca a vontade de descer pelo Elevador Lacerda até à parte baixa da cidade. De cima, conseguese uma panorâmica da Bahia de Todos-Os Santos e não é fácil recuar até ao tempo em que os portugueses usavam mulas e escravos para transportar mercadorias entre a parte alta e a parte baixa da cidade.
Com o elevador, inaugurado em 1868, tornou-se mais fácil chegar, por exemplo, ao Mercado Modelo. Com formas neoclássicas, o edifício de dois pisos funciona hoje como o maior shopping de artesanato do Brasil. Os aficionados asseguram que foi neste mercado que Jorge Amado se inspirou para o romance "A morte e a morte de Quincas Berro D'Água", personagem baseada num dos clientes habituais do mercado muito dado aos prazeres etílicos e que terá berrado água quando, por engano, a bebeu de um trago julgando que era cachaça. Diz-se que intelectuais como Sartre e Simone de Beavouir e mesmo cineastas como Orson Wells não perdiam uma oportunidade de se passear pelo mercado quando visitavam a região. E, se perguntarmos aos vendedores, não falta quem jure a pés juntos que, à noite, se ouvem as correntes dos escravos que outrora eram encafuados na cave do mercado.
Menos turístico, mas igualmente colorido, é o Mercado de S. Joaquim. "É o pedaço do Brasil que mais se parece com África", pinta um guia local que desaconselha máquinas fotográficas ou qualquer outro sinal de riqueza a quem se aventure pela feira. No seu interior, entre o aglomerado de barracas, prepondera o ritmo do berimbau regado a cachaça e a caipirinha; negoceia-se o azeite dendê, o abacaxi e os electrodomésticos. "Até carro tem, se tiver dinheiro para comprar", galhofa o guia. Vale a pena entrar para mergulhar mais fundo na pulsação do quotidiano brasileiro. Mesmo que não se queira comprar. Afinal, como garante Pedro Paciência, "na Bahia, não precisa de dinheiro para ser feliz".
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EcoResort do Forte: O idílio aos pés da praia
A passagem do tempo provocou os seus estragos. A praia de Itapoã urbanizou-se. Começou a atrair multidões, surfistas incluídos. E aquilo que Vinicius canta assenta agora como uma luva na Praia do Forte, a cerca de 60 quilómetros para Norte. Um lugar onde muitos baianos têm as suas casas de férias e onde vão passar os fins-de-semana.
Para "sentir a preguiça no corpo e, numa esteira de vime, beber uma água de coco", como na canção, o EcoResort Praia do Forte é o santuário ideal. Tem iguanas a passear pelos relvados, macacos pendurados nos coqueiros e esteiras onde se pode deixar o olhar adormecer no "encontro do céu e mar", subitamente esquecido das reivindicações das horas, dos mails para responder e dos telefonemas que se devia ter feito. Não é hipérbole. O empreendimento turístico que o Grupo Espírito Santo comprou em 2006 não beliscou em nada a preservação ambiental daquela linha de praia com cerca de 12 quilómetros. Ao contrário, potenciou-a. Desde logo, os 293 quartos do hotel não se vêem da praia. Perfazem uma construção baixa e têm o tecto revestido com uma espécie de colmo, igual ao que se vê nos vários restaurantes espalhados pelo relvado e no Bar Mirante, perto de uma das várias piscinas que o hotel oferece aos seus hóspedes. A mais bonita separada do mar apenas por uma língua de relva e outra de areia.
Além dos quartos (todos com vista para o coqueiral o mar, todos com uma cama de rede na varanda), o hotel oferece um SPA com talassoterapia e promove passeios de lancha pela costa, além de saídas para mergulho e pesca oceânica.
Mas o que torna este hotel especial é também a localização. Muito perto, por exemplo, das tartarugas do Projecto Tamar, uma instituição que vem lutando pela preservação das tartarugas marinhas. Empurradas pelas correntes marítimas, estas têm por costume desovar na Praia do Forte e redondezas. Nesta área, junto ao farol, existem mais de 300 ninhos que, entre Setembro e Março, produzem cerca de 20 mil crias de quatro espécies, todas ameaçadas de extinção. Querendo, é possível, entre Dezembro e Fevereiro, acompanhar os biólogos do Tamar enquanto estes visitam os ninhos, soltam as tartarugas recém-nascidas e as encaminham para o mar.
Seguindo pelo areal, chega-se depressa à pequena vila piscatória local. Mais turística do que piscatória nos dias que correm, mas mesmo assim genuína no modo como transmite a respiração baiana, com a costumeira igreja, os costumeiros barcos de pesca e as costumeiras e convidativas esplanadas. E, muito importante, é limpa e segura. O nome Praia do Forte deve-se à existência no local de ruínas de uma moradia acastelada do século XVI, mandada erigir pelo português Garcia de Ávila, um dos maiores latifundiários da Bahia.
Nas redondezas existe, de resto, um castelo com o nome Garcia de Ávila, que dizem ser o único castelo do Brasil. Mas o que mais atrai no lugarejo é o seu sossego e as inúmeras praias existentes, tanto na Praia do Forte como nas imediações. Basta sair do resort e meter os pés na areia que é só mar e areal bordado de palmeiras e outras vegetação tropical de um lado e do outro.
Tivoli Eco Resort Praia do Forte. www.ecoresort.com.br. www.tivolihotels.com. Telefone +55 71 36 76 4000.
Informações
Quando ir
Não há grande variação de temperatura ao longo do ano.
Entre Junho e Agosto o índice de pluviosidade é mais elevado, mas, em regra, os aguaceiros tropicais são breves e não chegam a tingir o céu de nuvens.
Como ir
A TAP tem seis voos semanais para Salvador da Bahia a partir de Lisboa e um voo por semana a partir do Porto. Os preços, ida e volta em classe económica, andam pelos 750 euros. Para mais pormenores pode consultar o site www.flytap.com.
A não perder
Missa da tarde no Pelourinho Vale a pena esperar pelas seis da tarde para assistir à missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, bem no centro do Pelourinho. Nessa missa, os cantos católicos são acompanhados pela batida típica do candomblé.
Durante o ofertório, os fiéis entram pelo centro da igreja em fila, a dançar, e entregam cestos com pão que, depois de benzidos no altar, são distribuídos pelos presentes.
Se for à Igreja do Bonfim, não se esqueça que a fita deve ser amarrada no pulso com três nós, cada um correspondente a um desejo. Pelo menos um deverá realizar-se. Se quiser voltar, a tradição manda que não se esqueça de amarrar uma fitinha nas grades da igreja.
Cidade nova, praias e ilhas
Além dos inúmeros monumentos do Pelourinho, que vão das inúmeras igrejas a de S. Francisco é particularmente sumptuosa à Casa-Museu de Jorge Amado ou ao museu Afro-Brasileiro, vale a pena sair do centro histórico e explorar a cidade nova. O Dique de Tororó, com as suas esculturas representando os diferentes orixás a flutuar no meio da lagoa, vale bem a pena a paragem. Na orla marítima, encontram-se as incontornáveis praias da Barra, Itapoã e de Boipeba. Esta funciona ainda como santuário ecológico do arquipélago de Tinharé. Se tiver tempo, passe pela Ilha de Itaparica, a apenas 13 quilómetros de Salvador.
Onde Comer
Salvador
As ruas do Pelourinho estão pejadas de restaurantes onde se pode saborear a tradicional comida baiana muito para lá do acarajé (bolo de feijão fradinho e camarão seco moído, frito em óleo de dendê) vendido nas tendas de rua. O restaurante "O Sorriso da Dada" (www.dada.com.br), na Rua Frei Vicente, n.º 5, tem das melhores moquecas de peixe e camarão.
Fora do centro histórico, na orla marítima, mais exactamente na Avenida Octávio Mangabeira, no Jardim da Armação, o Yemanjá (www.restauranteyemanja.com.br) é tido como um dos melhores restaurantes de Salvador. É procurado pela casquinha de siri e, claro, pela moqueca.
Praia do Forte
No EcoResort do Forte. É um dos melhores lugares para comer na Praia do Forte, onde não faltam pequenos restaurantes de várias cozinhas.
Terreiro Bahia. É um dos mais recentes restaurantes da vila, que tem à sua frente Tereza Paim, uma das mais promissoras cozinheiras baianas.Pratica uma cozinha baiana de fusão.
Onde Ficar
Convento do Carmo *****
Rua do Carmo, 1 Pelourinho, Salvador. www.pousadas.pt
É a única Pousada de Portugal presente no Brasil, propriedade do Grupo Pestana. No edifício, construído em 1586 e onde em tempos funcionou um convento, conjugam-se 79 luxuosos quartos, servidos por uma piscina nos jardins interiores, um SPA e uma sacristia pintada em ponto de ouro. A revista norte-americana Travel+Leisure elegeu-o como uma das melhores novas unidades hoteleiras do mundo e a Revista Veja elegeu o seu restaurante como o melhor restaurante português de Salvador. Os preços de um quarto standard oscilam entre os 150 e os 200 euros.
Hotel Pelourinho
Rua Portas do Carmo, 20, Salvador. www.pelourinho.com
Edifício de arquitectura colonial, funcionou como um internato onde viveu Jorge Amado. Tem sala de pequenos-almoços com vista para a Bahia de Todos-Os-Santos, galeria comercial e alberga ainda uma agência de viagens. O preço de um quarto duplo varia entre os 40 e os 60 euros, consoante a época.
Formalidades
Basta um passaporte, até porque os cidadãos portugueses estão isentos de vistos até 90 dias. Por causa da inevitável precaução no que se refere a roubos e furtos, o mais seguro é andar apenas com cópias dos documentos de identificação.
Leve o protector solar e o repelente de mosquitos. O pagamento por Visa é sempre uma garantia.