Fugas - Viagens

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Munique, onde a cerveja é uma penitência feliz e se faz surf num rio de gelo

Por Álvaro Vieira

Só quando descemos às estações de metro e comboio subterrâneos nos apercebemos que a cidade tem 1,3 milhões de habitantes. A capital da Baviera soube reconstruir-se e modernizar-se sem perder identidade.

Há cidades onde é preciso fugir dos lugares-comuns, que são meio caminho para chegarmos a lado nenhum, em termos de correspondência com a sua realidade actual. E há outras cujas história, bandeiras, gastronomia e iconografia funcionam como atalhos honestos, que nos ajudam a descobri-las até para além de eles mesmos. Assim acontece com Munique, mesmo que a cidade também tenha as suas dissimulações. Por exemplo, a capital do estado federado da Baviera é o motor económico do país e a terceira cidade da Alemanha em termos de população, com 1,3 milhões de habitantes, e temos sempre a sensação, mesmo nas mais amplas avenidas, de estar numa urbe bastante mais pequena.

Mas veja-se o caso da cerveja, um dos seus ícones. Não é preciso visitar Munique durante a Festa da Cerveja, a Oktober Fest — que, na verdade, até ocupa mais semanas de Setembro do que de Outubro — para perceber que esta bebida de cevada, ou trigo, fermentada continua intimamente ligada à cidade. Um habitante típico de Munique dirá até que nem é na Oktober Fest, quando a cidade está cada vez mais tomada de turistas que acreditam que entrar no espírito da festa é beber histericamente até cair para o lado, que essa relação é mais perceptível. 

É que as coisas têm a sua história e a cada passo se encontra gente disponível para contar que Munique significa terra de monges, em alemão antigo, e que, assim como outros faziam licores, estes faziam cerveja. Sobretudo, Stark Bier, cerveja forte, com mais de 8% de álcool, e substancial. “Pão líquido”, para amenizar o rigor do jejum quaresmal. Conta a lenda que um Papa não achou aquilo bem e quis saber o que era isso que aqueles monges bebiam na Quaresma. Foram-lhe enviados barris, mas a viagem era longa e a cerveja estragou-se. Quando a provou, o Papa terá dito que se era aquilo que os beneditinos de Munique consumiam na Quaresma, bem podiam continuar a fazê-lo, se a sua capacidade de penitência chegava a esse ponto. E os monges aceitaram de bom grado carregar essa cruz.

A Baviera é católica e os habitantes de Munique continuam a penitenciar- se resignadamente. A heráldica oficial da cidade mostra um monge beneditino com uma Bíblia na mão, mas não faltam edifícios públicos, mesmo antigos, onde o monge aparece com uma caneca no lugar do livro. A cidade tem centenas de Biergärten, jardins de cerveja, onde, com um bocadinho de sol, as mesas sob os castanheiros se enchem de gente que pode levar a sua própria comida e comprar apenas a cerveja no respectivo quiosque. É normal pedir-se para partilhar a mesa com os desconhecidos, que os bávaros são relativamente informais, para os padrões alemães. Aliás, têm fama de ser mais alegres e espontâneos e de, além de um dialecto e de um sotaque acentuado, terem um linguajar mais colorido.

As grandes cervejarias, como a Hofbräuhaus (Platzl), fundada em 1589 para satisfação de Guilherme V, do Ducado da Baviera, que não gostava da cerveja que então se fazia em Munique, ou a Löwenbraukeller (Stigmaierplatz), fundada em 1883, também têm Biergärtens. A Hofbräuhaus, com os seus tectos pintados, é muito mais bonita por dentro. O edifício da Löwenbraukeller é o mais bonito por fora. No interior ou ao ar livre, provem-se alguns produtos tradicionais, como a Weiß Bier (cerveja branca), feita com trigo — que, passe o paradoxo, pode ser branca ou preta (Dunkel) — ou as salsichas brancas (Weißwurst) que se acompanham com mostarda doce (Bretzel) e Pretzel, duas argolas de pão estaladiço com pedras de sal à superfície.

Um bávaro não pede estas salsichas da parte da tarde, já que costumam ser feitas durante a noite para serem vendidas e consumidas até ao almoço. Quer na Hofbräuhaus quer na Löwenbraukeller há cacifos metálicos onde os clientes habituais guardam as suas canecas, mais ou menos vistosas, mas em todo o caso de estimação. Também há mesas reservadas para grupos habituais, ainda que a mesma mesa possa servir para tertúlias diferentes em dias não coincidentes. Sobretudo na Hofbräuhaus, o ambiente é muito alegre, com grupos de músicos contratados ou espontâneos a tocarem temas bávaros e muita gente com roupa tradicional, que não usam apenas em dias de festa ou para turista. As empregadas usam o dirndl, uma saia com corpete que se usa sobre uma camisa generosamente decotada.

Ninguém diria que Hitler poderia encontrar aqui, como noutras cervejarias e cafés, um público receptivo aos princípios que dariam origem ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Durante a II Guerra Mundial a cervejaria foi quase totalmente destruída pelos bombardeamentos dos Aliados, à semelhança da maior parte dos edifícios da cidade. 

Os habitantes de Munique sempre fizeram da reconstrução dos edifícios uma prioridade. E muitos dos que nos parecem genuinamente antigos foram objecto de reconstrução meticulosa. 

Nem todas. Na Casa Castanha, sede do Partido Nazi, está em construção o futuro Centro de Documentação sobre o Nacional-Socialismo, e muitos dos edifícios construídos ou ocupados por Hitler e a Gestapo, e jardins cimentados para receberem paradas militares, ainda nas proximidades da Königsplatz, passaram a acolher escolas de música, arte saudavelmente subversiva ou relva e flores. A cidade tem várias praças e monumentos dedicados às vítimas do nacional-socialismo.

A capital da Baviera, que foi Ducado, Principado eleitor do Sacro-Império Germânico e Monarquia, até à República de Weimar, governado de 1323 a 1918 pela família Wittelsbach, também se distingue por ser simultaneamente um importante pólo industrial e financeiro da Europa — é a sede de multinacionais como a BMW, a MAN, a Siemens ou a Allianz — e uma cidade muito activa culturalmente. Tem 45 teatros, entre eles o prestigiado Cuvilliés, vizinho da Residenz, a antiga morada dos Wittelsbach, e 57 museus, como a nova e a velha pinacotecas, o museu de escultura ou a Casa Brandhorst, com a sua colecção de arte moderna onde não falta gente à procura das piss paintings, as pinturas de urina, de Andy Wahrol. E tem ainda o Museu Alemão, o maior do mundo entre os dedicados à ciência e tecnologia. Dizem ser tão vasto que não chega um dia para ver tudo, dos artefactos das grutas de Altamira aos engenhos espaciais.

Visível de quase todo o centro estão as duas torres da Frauenkirsche (Igreja de Nossa Senhora), a catedral gótica de torres bizantinas construída entre 1478 e 1495, que teve como pároco Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI. As torres do templo ditaram a altura máxima do centro de Munique e isso também contribuiu para que a cidade não adquirisse o aspecto de metrópole que só confirmamos quando descemos aos subsolo e vemos a quantidade de gente que utiliza a excelente rede de metro e de comboio suburbano, que só vem à superfície quando sai do centro da cidade.

Muito perto, na Marienplatz, a praça central de Munique, convivem os edifícios das câmaras velha e nova, que tem estilo neogótico, é mais imponente e trabalhada e até parece mais antiga. Está ali outra das grandes atracções da cidade: o Glockenspiel , o relógio que, ao meio-dia, põe a dançar bonecos distribuídos por dois andares, incluindo dois cavaleiros medievais que se defrontam em torneio (o que tem as cores azul e branco da Baviera ganha sempre ao vermelho, como o Bayern de Munique, que alinha de vermelho, costuma fazer a quem se mete à sua frente na Bundesliga) e outros giram sobre si próprios. Recriam a Schäffl ertanz, uma dança que os representantes dos ofícios da cidade executam de sete em sete anos para celebrar o fim da peste que assolou a cidade nos séculos XIV e XV. Alguns dos ofícios representados no Glockenspiel vamos encontrá-los também na árvore de Maio montada noutro ponto de visita incontornável: o Viktualienmarket, onde se compram doces, bebidas alcoólicas, queijos, enchidos, presuntos, frutas — tudo com um aspecto maravilhoso, capaz de nos inebriar e de fazer emagrecer a carteira.

Mais vale concentrarmo-nos árvore de Maio, um poste ou tronco de árvore decorado com imagens dos ofícios existentes na cidade ou aldeia em questão que é colocado, durante uma festa, a 1 de Maio. As suas origens ainda são motivo de controvérsia, mas acredita-se que será um ritual de fertilidade, em abono das colheitas. A Igreja acabou por se conformar com este costume que, na Baviera, obedece a um código próprio. Se a “árvore”, que costuma permanecer no mesmo local durante um ano, for roubada por uma aldeia ou comunidade vizinha, há que pagar, em cerveja, para a resgatar. É uma tradição, comum a outras regiões da Alemanha e da Europa.

Outra árvore com tradição é naturalmente o pinheiro de Natal, que nesta altura já está na Marienplatz, preenchida por uma das muitas feiras natalícias de Munique. Aqui pode-se comprar comida, souvenirs, artesanato e beber vinho quente, com canela e outras especiarias, para fazer face ao frio. 

A temperatura desta época do ano, frequentemente negativa, é coisa que parece não incomodar os jovens de Munique, que descobriram que é possível fazer surf na cidade, no centro da Europa. No extremo sul do Englischer Garten, o maior dos parques de Munique, perto da Casa da Arte (que Hitler abriu para ser apenas a Casa da Arte Alemã), há uma ponte sobre um canal do Eisbach (ribeiro de gelo), um afl uente do Isar, assente sobre um degrau que forma uma onda constante. Desde os anos 1970 que aparecem por ali jovens a surfar entre as margens de cimento, no estreito ribeiro. Há um sinal nas margens que diz que nadar é proibido e que o surf fica por conta e risco de quem o experimentar. 

E não falta quem esteja disposto a isso. E que se vista e dispa, com uma toalha à cintura, ali na rua, com temperaturas próximas dos zero graus. No Englischer Garten também há zonas para nudismo, mas o frio destes dias será desmoralizador. Se não se importar de se manter com muita roupa em cima do corpo quando estiver ao ar livre — as casas e edifícios estão sempre muito aquecidos —, esta até pode ser uma excelente altura para visitar Munique, apesar do tempo agreste. E pode tomar como bom aquele adágio bávaro que diz que, quando os anjos viajam, faz sempre bom tempo. 

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