Fugas - Viagens

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Braga : Agora podemos passear com a cidade de André Soares nas mãos

Por Samuel Silva

No final do mês passado, foi lançado um livro sobre os 23 anos durante os quais o arquitecto André Soares, nome maior do barroco e do rococó no Minho, mudou a face de Braga. Ao alcance de todos, está agora um roteiro turístico centrado nas suas principais obras. O autor do livro, Eduardo Pires de Oliveira, ensaia com a Fugas essa proposta.

Demoramo-nos na praça do município, em frente à Biblioteca Pública. É preciso reparar em todos os pormenores da construção: nas duas cabeças de anjos, marcas do barroco joanino, e nos ornatos na base da fachada, um elemento claramente rococó. “É aqui que começa o rococó em Braga”, aponta Eduardo Pires de Oliveira, historiador de arte e o maior especialista na obra de André Soares. É nesta obra inaugural que propõe que comecemos este passeio em torno das principais obras do arquitecto na cidade, reunidas num livro recentemente editado.

O edifício onde hoje está instalada a Biblioteca Pública de Braga foi projectado por André Soares, entre 1744 e 1751, para albergar o novo Paço Episcopal, mandado construir por D. José de Bragança. Irmão do rei D. João V, o religioso tinha sido recentemente nomeado arcebispo e chegou do centro da Europa, onde florescia o barroco, com vontade de impor em Braga a sua marca. O palácio foi a obra determinante para a mudança que se viria a verificar nos anos seguintes.

O edifício foi construído de costas para o palácio medieval que até então acolhia os Arcebispos — e que hoje é a Reitoria da Universidade do Minho —, abrindo uma nova praça à cidade, sobre a qual se encontra numa posição dominante. André Soares reforça essa questão simbólica elevando a fachada em cinco degraus, de modo a dar mais poder ao palacete sobre a praça.

Esta foi a primeira obra do arquitecto. “Uma obra imensa, já que é um dos maiores palácios do Norte de Portugal”, valoriza Eduardo Pires de Oliveira. Poucos anos depois, Soares voltaria àquela praça para desenhar a Casa da Câmara (1753-56), que está no lado oposto. Voltamo-nos para a construção que ainda é sede do município, percebendo que a sua posição acentua a relação de poder pretendida pelo arcebispo: a câmara está num patamar inferior ao do palácio episcopal, mostrando o domínio do poder religioso sobre o político.

A ideia de que o rococó foi uma afirmação de poder de D. José de Bragança, para a qual o talento de André Soares foi determinante, é defendida por Eduardo Pires de Oliveira em Braga de André Soares, um livro dedicado à obra do arquitecto do barroco no Minho e aos 23 anos em que mudou a face de Braga. A obra foi editada pela CentroAtlântico.pt, no final do mês passado, com textos deste historiador de arte, que em 2012 defendeu a sua tese de doutoramento em História da Arte precisamente sobre a obra de Soares.

Cenógrafo artificioso

Apesar das bases académicas do trabalho, “isto é um produto turístico”, argumenta Pires de Oliveira. O livro foi apresentado como um guia turístico, com edição bilingue (em português e inglês), defendendo a valorização do legado de Soares e associando-o à economia e ao turismo. Braga tem apenas um grande momento de procura pelos visitantes, que é a Semana Santa. O São João, uma das maiores festas populares da região, não atrai dormidas, uma vez que o seu público é constituído maioritariamente por gente da região. Por isso, a ideia de Pires de Oliveira é contribuir para que haja motivos para que os visitantes passem mais tempo em Braga, que durmam em Braga. “Precisamos de mais dormidas, para que os turistas tenham assim mais hipóteses de comprar na cidade e deixar aqui dinheiro”, defende.

Braga de André Soares foi o motivo para este passeio da Fugas por Braga. O livro tem fotos de Libório Manuel Silva, que podem também ser vistas numa exposição que estará patente até ao final de Agosto no Tesouro-Museu da Sé de Braga. E foi precisamente a catedral bracarense o ponto de passagem seguinte deste percurso.

A entrada na Sé é feita pela porta lateral, junto à Rua do Souto, de encontro ao claustro de Santo Amaro. Foi para este local que foram projectados os dois retábulos de André Soares aqui existentes, ainda que, no século XX, as duas obras tenham sido levadas para a capela de Nossa Senhora da Piedade, a poucos metros do local original. Lá dentro, encontram-se os retábulos de Nossa Senhora da Boa Memória (1767), o mais rico, e Santo António, mais modesto, do ano seguinte, projectados já numa fase final da carreira do arquitecto bracarense.

Além de projectar edifícios, André Soares desenhou retábulos para igrejas e mosteiros e várias gravuras, das quais a mais famosa é um mapa da cidade de Braga, que também consta do livro editado recentemente. Para conhecer o seu retábulo mais precioso é preciso rumar ao mosteiro beneditino de São Martinho de Tibães, cerca de 10 quilómetros a Oeste da cidade, a primeira sugestão fora da zona urbana que Eduardo Pires de Oliveira faz durante o passeio. Tibães é um bom exemplo da singularidade de Soares no contexto do rococó europeu. O interior da igreja do mosteiro é rococó na forma, mas barroco nas cores usadas nos retábulos — o ouro — e na organização do espaço, aponta o historiador.

De regresso à Sé de Braga, a saída é feita pela porta principal, continuando depois em direcção ao largo de São Paulo, pela rua que aparece à esquerda. Ao cimo dessa artéria, é imponente a vista da antiga torre medieval, transformada no século XVIII numa capela. O pórtico é também da autoria de André Soares (1756) e merece uma paragem atenta, antes de o percurso prosseguir através do Largo de Santiago, onde está o museu Pio XII, prosseguindo depois pela rua dos Falcões abaixo, em direcção à pequena capela de São Bentinho. A estreita construção religiosa está encostada ao complexo do antigo hospital São Marcos e também tem arquitectura de Soares, ainda que o “coberto” — acrescentado já no século XX — perturbe a leitura do trabalho.

No final dessa rua está o Largo Carlos Amarante, dominado pela igreja de São Marcos, onde André Soares também trabalhou. A configuração actual do templo é, porém, posterior, sendo obra de Carlos Amarante. No seu interior, sobram uma escada e um belíssimo um lavabo na sacristia, assinados por Soares.

A igreja de São Marcos serve como ponto de referência, antes da incursão até à fachada de uma das obras mais emblemáticas de André Soares em Braga. Descendo a Rua de São Lázaro, chega-se ao Palácio do Raio (1752), construído pouco tempo depois do Palácio do Arcebispo, onde começou esta viagem. Para Eduardo Pires de Oliveira, esta é “a obra-prima do rococó” em termos civis, destacando o ritmo das janelas nos dois pisos e a complexidade do pórtico principal da antiga casa particular, que hoje é propriedade da Santa Casa da Misericórdia. Os azulejos são posteriores, mas não tiram espectacularidade à forma complexa como todo o conjunto é desenhado.

Se o palácio do Raio é marcante na arquitectura civil, para se conhecer a sua obra-prima religiosa é preciso também sair da cidade, em direcção à capela de Santa Madalena, na Falperra (1753), no local onde fazem fronteira os concelhos de Braga e Guimarães. Mas antes dessa eventual incursão a caminhada prossegue pela Avenida da Liberdade acima, até à Avenida Central.

Voltamos a parar longos minutos, desta feita em frente à Igreja dos Congregados, elemento marcante nesta zona da cidade. Ao lado está a Casa Rolão (1758-63), também obra de André Soares, mas é na igreja que nos detemos por sugestão de Eduardo Pires de Oliveira, mais propriamente no canto da sua fachada (1755), no gaveto entre o Antigo Campo de Santana, actual Avenida Central, e a Cangosta da Palha.

O desenho é complexo e único. Pires de Oliveira contou 25 linhas neste pormenor da fachada, que ondulam no canto do edifício. “É magnífico, não vemos isto em mais lado nenhum”, diz-nos, enquanto nos propõe um exercício: aproximarmo-nos e afastarmo-nos do canto da igreja, com o vértice sempre no centro do campo de visão. “Vai ficar atordoado”. Confirmamos que sim.

Depois disso, entramos na igreja — onde o arco e a pedra de fecho do coro alto, bem como o retábulo da Senhora das Dores (1761), também são assinados por Soares — e subimos ao primeiro piso, onde está o espaço sobre o qual Pires de Oliveira esteve a falar durante todo o passeio: a Capela dos Monges. A porta parece a de um comum apartamento e o tamanho não é muito diferente do de uma sala de estar. São 15 metros quadrados, mas está lá o barroco todo.

Nesse espaço exíguo há uma nave muito ornamentada, um lanternim que parece o de uma grande catedral e um retábulo dourado que se agiganta sobre os visitantes. Tudo parece maior do que realmente é. “Uma grande falácia” como a obra de Soares, comenta Pires de Oliveira. Para o historiador de arte, mais do que um arquitecto, André Sorares era um cenógrafo artificioso. Daí que tenha uma admiração tão grande por esta que é a última obra de Soares em Braga (1768), apontando-a como o ponto culminante de todo o roteiro: “Este é o seu testamento.”

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