- O meu pátio, como quase todos os outros em Córdova, tinha um poço com o seu cubo e com o qual se tirava a água para deitar nas flores. Para regar as que estavam mais altas, trepando pelas paredes de um branco imaculado, era necessária uma cana, à qual se atava, num dos extremos, uma lata.
Francisco Fernández, um eterno apaixonado pela fotografia que, numa não menos perpétua redescoberta, não se cansa de errar pela cidade onde sempre viveu, gosta de desfiar as memórias de um tempo em que era um menino, desperto como nunca para os ruídos e os cheiros que inundavam o ar.
- Cada pátio tinha uma, duas ou três pias de pedra onde as mulheres lavavam a roupa.
A história dos pátios perde-se no labirinto da história mas há quem defenda que já no tempo dos romanos, quando Córdova era Corduba, funcionavam como salas de visitas dos casarões, quais antecâmaras de templos com os seus bebedouros projectando-se no centro, os impluvium, esses tanques rectangulares que usavam para recolher a água das chuvas que se encontrava no vestíbulo (domus em latim) das casas. Mas foram os árabes que fizeram dos pátios lugares associados à intimidade e protegidos dos olhares dos curiosos, incorporando-os nas vivendas e dando-lhes, desta forma, um carácter social.
Quando, em 1236, Fernando III de Castilha entrou em Córdova, já muitas páginas, relatando uma época de prosperidade e de riqueza, haviam sido escritas sobre a cidade que, três séculos antes, não encontrava paralelo no mundo civilizado como exemplo de modernidade. Todas as manhãs, mal a urbe despertava, mais de mil mesquitas e oito centenas de banhos públicos abriam as suas portas; quando o crepúsculo baixava sobre a urbe, as suas ruas principais eram iluminadas por tochas e archotes, um sistema que haveria de chegar a Londres ou a Paris apenas 700 anos mais tarde. Allahu Akbar, Allahu Akbar – o chamamento dos muezzins ecoa pelos céus e os fiéis acorrem às abluções.
Desse período de glória, de uma luz tão intensa, resta o monumento mais emblemático da cidade, a mesquita (erguida a partir do ano 785 sobre a Basílica visigoda de San Vicente), alargada e dotada (até ao século X) de uma sumptuosidade (por Abderramán III e al-Hakam II) ao ponto de se tornar no lugar de culto mais deslumbrante do mundo árabe. Errar por este espaço, de preferência embebido em silêncio, depois de franquear a Puerta de las Palmas, provoca no mais indiferente dos viandantes um sentimento de espanto, tamanhas são a sua grandiosidade e a sua elegância estética ao longo de quase duas dezenas de galerias que abrigam centenas de colunas de mármore, de granito, de jaspe e berilo que sustêm uma arcada dupla de matizes ocres e avermelhados.
A primeira sensação, imediata e profunda, é de que estou embrenhado numa floresta, banhado de luzes e sombras que também envolvem, numa harmonia silente, todo o conjunto, uma atmosfera que tem tudo de irreal e que subjuga, uma fascinante obra-prima da arte muçulmana, única no mundo. Mas os meus olhos, como quase todos os outros que vagueiam sem destino, a esta hora e por este lugar mágico, acabam por se plantar na sua construção mais delicada, o mihrab; levantado nos tempos de Al-Hakam II e ainda hoje, tantos séculos depois, a jóia mais autêntica da mesquita, o nicho octogonal leva a assinatura de artistas bizantinos que deixaram como herança os fantásticos mosaicos que ornamentam o arco de entrada, a maqsura, bem como a cúpula que a antecede.
Allahu Akbar, Allahu Akbar – e agora, quando corre o século X, já os fiéis ocupam cada centímetro da mesquita, uns 40 mil (entre uma população a rondar o milhão de habitantes), tantos que ultrapassavam o número de residentes em grandes metrópoles dos nossos dias, como Londres e Paris, tantos que enchiam o Patio dos Naranjos como um ovo.
O murmúrio do rio
O perfume inunda a atmosfera, um inebriante odor a flor de laranjeira que me persegue enquanto cruzo, ainda ébrio de tão eloquente visão proporcionada pela mesquita, o Patio de los Naranjos, onde Averroes (latinização do nome árabe Abu-I-Walid Muhammad ibn Muhammad ibn Rushd), dava as suas aulas de filosofia com a mesma facilidade com que dominava áreas como as leis islâmicas, a astronomia, a medicina e as matemáticas.
Por momentos, estando tão próximo, num lugar que o poeta Ricardo Molina descreveu como «ilha de sombra, de silêncio e perfume», parece que escuto o murmúrio do Guadalquivir ou mesmo as palavras de Frederico García Llorca.
Um peixe sozinho na água
Que as duas Córdovas junta:
Branda Córdova de juncos.
Córdova de arquitectura.
Moços de cara impassível
na margem põem-se nus,
aprendizes de Tobias,
e Merlins pela cintura,
para aborrecer o peixe
em irónica pergunta,
se deseja flores de vinho
ou saltos de meia lua.
E o peixe que doura a água
e os mármores enluta
dá-lhes lição e equilíbrio
de solitária coluna.
O Arcanjo arabizado
de lantejoulas escuras
entre o comício das ondas
rumor e berço procura.
Um peixe sozinho na água
Duas Córdovas de formosura.
Córdova quebrada em jorros.
Celeste Córdova enxuta.
Em Córdova, após muitas discussões, o ano de 1523 ficará para sempre intimamente ligado ao início das obras da catedral cristã, Património Mundial da Humanidade desde 1984 – e só mesmo uma cidade habituada à diversidade cultural poderia aceitar a amálgama artística com que presenteia os seus habitantes, com a particularidade de, com os seus quase 23 mil metros quadrados, apenas ser superada pela mesquita de Meca. A meia dúzia de passos da catedral, qual espectro que simboliza o encontro do Cristianismo com o Islão, está a Juderia, com a sua sinagoga e as suas ruas e vielas de inspiração andaluza, o seu traçado irregular e ziguezagueante, mais os seus pátios onde borbulha a água das suas fontes seculares, abraçadas por limoeiros, por jasmins e roseirais tão perfumados, a tão curta distância do Alcázar dos Reis Católicos, inspiradores, serenos e exemplo de sentido de estética.
Fundado em 1328 por Alfonso XI, foi testemunha, no interior dos seus muros, de uma entrevista, em 1486, entre os Reis Católicos e Cristóvão Colombo (em busca de fundos para partir à descoberta do Mundo Novo) mas também de intrigas da Inquisição, que teve neste palco a sua sede até aos primeiros anos do século XIX.
Com a partida dos árabes, coube aos cristãos a decisão de abrirem os pátios às ruas, como símbolos de hospitalidade e integração. Nos pátios, as famílias recebiam os seus convidados e, quando os comensais entravam pela primeira vez nas casas, eram acolhidos com um copo de leite, representando a pureza de sentimentos, e com tâmaras, símbolo de ajuda aos amigos.
Cuidados ao longo de todo o ano, os pátios são mais belos e encantadores quando a Primavera chega em força mas especialmente em Maio, mês em que Córdova veste o seu fato de gala para receber os visitantes atraídos pela sua magnificência e pelos odores primaveris, coincidindo com a realização do festival que elege o mais imponente entre todos os que concorrem anualmente.
A esta hora, Francisco Fernández estará a fotografar a sua cidade, descobrindo mais um recanto, escutando mais uma história.
- Recordo que, quando chegava a altura das festas, todos os vizinhos se reuniam na minha casa e, enquanto os homens se ocupavam a fazer remendos, de escova e cal nas mãos para pintar as paredes, as mulheres poliam os vasos e cuidavam das flores. Ao cair da tarde, quando terminava o trabalho, todos os vizinhos se juntavam no pátio, as crianças brincavam e os mais velhos continuavam com os seus debates intermináveis por entre aromas de flor de laranjeira e de jasmim.
Deixo que os meus passos me conduzam ao longo da Calleja de las Flores, verdadeira orgia de cores e odores e um dos lugares de onde se obtém uma das mais formosas panorâmicas da cidade, com a torre da catedral recortando-se contra um céu apenas manchado por uma ou outra nuvem. Sinto um desejo irresistível de preencher as minhas últimas horas do dia banhado pelos raios dourados do sol enquanto contemplo a ponte romana sobre o Guadalquivir, admirando, ao mesmo tempo, a majestosa Torre de la Calahorra. Mas a tarde ainda se espreguiça, sem pressas, como deve correr a vida em Córdova, e caminho, na minha quietude que teima em não me abandonar, até a um dos extremos da cidade, ao encontro do Palácio de Viana e à descoberta de uma casa senhorial que proporciona uma lição da evolução da arquitectura civil cordovesa entre os séculos XIV e XIX.
O silêncio acompanha-me ao longo da escadaria renascentista, quando perscruto o seu mobiliário enquadrado em perfeita harmonia, a sua expressiva colecção de porcelanas, de azulejos, de arcabuzes e de tapeçarias, os seus salões mudéjares e os seus tectos artesoados.
Acompanhado por um rumor da água, como uma banda sonora de um filme, um cheiro forte inunda o ar e, ainda que por breves instantes, evoco o Perfume, de Patrick Süskind, editado há precisamente 30 anos. «Grenouille estava inclinado sobre ela e aspirava o seu perfume sem qualquer mistura, tal como se lhe depreendia da nuca, dos cabelos, do decote, do vestido e absorvia-o como a uma suave brisa. Nunca se sentira tão bem em toda a sua vida.» À minha frente, no Palacio de Viana, estende-se uma dúzia de pátios, todos diferentes, tão ilustrativos da sensibilidade deste povo e desta cidade, tão impregnados do cheiro a jasmim e a flor de laranjeira, tão bem enquadrados por buganvílias que vão recortando a abóbada do mundo como montanhas de contornos delicados.
O céu já tingia com as cores do crepúsculo o centro histórico reconhecido pela UNESCO como Património Mundial em 1994 e, mais para diante, para um lado e para o outro, toda a cidade que se situava na encruzilhada de todos os caminhos, uma rival à altura de Bagdad ou Damasco, onde as culturas árabe, judia e cristã um dia conviveram de forma tão harmoniosa como as flores nos dias de hoje. Numa demonstração de que a convivência entre culturas distintas era possível, tanto uns como outros deixaram o seu legado e, independentemente das fricções sociais, as memórias de um tempo de prosperidade económica, de respeito e tolerância, quando todos viviam em Al-Andaluz, o país sem fronteiras.
O Guadalquivir recebe-me, sereno, as luzes não tardam a iluminar a ponte romana e reverberar nas águas, como fonte de inspiração para Llorca mas não só. Cheira bem, cheira a Córdova, a flor de laranjeira e a jasmim.
Carros fechados chegavam
às margens daqueles juncos,
lá onde as ondas alisam
um romano torso nu.
Carros que o Guadalquivir
deita em seu cristal maduro,
entre gravuras de flores
e ressonâncias de nuvens.
Meninos tecem e cantam
o desengano do mundo,
próximos dos velhos carros
já perdidos no nocturno.
Porém, Córdova não treme
sob o mistério confuso,
porque se a sombra levanta
a arquitectura do fumo,
um pé de mármore afirma
seu casto fulgor enxuto.
Pétalas de lata débil
bordam em relevo os puros
cinzentos da brisa, solta
sobre os arcos do triunfo.
E enquanto a ponte sopra
dez rumores de Neptuno,
os vendedores de tabaco
fogem pelo ruinoso muro.
GUIA PRÁTICO
Como ir
Os aeroportos mais próximos são os de Málaga e Sevilha e, desde uma ou de outra, há ligações frequentes de comboio com Córdova (www.renfe.com), cuja estação está situada muito próxima do centro histórico. A TAP viaja para as duas cidades desde Lisboa por cerca de 170 euros (ida e volta) mas a distância entre a capital (ou mesmo do Porto) e Córdova é perfeitamente viável de carro, com a vantagem de dispor de mais liberdade para visitar a urbe espanhola e os arredores. Desde Lisboa, são pouco mais de 600 quilómetros (custo de portagens no valor de 26 euros por trajecto) e, a partir do Porto, uns 900 e 47 euros se optar por conduzir em auto-estrada (há outras alternativas).
Quando ir
O clima de Córdova sofre os condicionalismos resultantes dos fenómenos atmosféricos e das características do relevo. As massas húmidas provenientes do Atlântico encontram-se com a barreira orográfica da Sierra Morena pelo que, quando chegam à cidade, raramente trazem chuva, ao contrário do que acontece com o vale do Guadalquivir, que facilita a precipitação sobre Córdova, especialmente na Primavera e no Outono, em consequência das massas de ar quente vindas do norte de África. Em média, a cidade beneficia de quase 150 dias de sol por ano e as temperaturas mais altas registam-se no Verão, com máximas que vão dos 38 aos 41 graus entre Junho e Setembro – em Maio, quando ocorrem as festas dos pátios, a mínima é de 19 e a máxima de 34. Os meses mais frios são entre Dezembro e Fevereiro mas os termómetros raramente baixam os nove graus.
Onde comer
A Casa Pepe de la Juderia (www.casapepejuderia.com), na Calle Romero, 1, bem no coração da judiaria, é um dos restaurantes clássicos da cidade, com a vantagem de proporcionar duas alternativas: as tapas na taberna ou confortavelmente sentado numa das divisões da casa ou mesmo no pátio, provando a gastronomia tradicional cordovesa. Na mesma rua, mas no número 16, encontra o El Churrasco (www.elchurrasco.com), abrigado numa elegante casa da judiaria, mas se o que procura é a tradição da comida local aliada a um toque de inovação não deixe de experimentar o Zyriab (www.bodegasmezquita.com), na Calle San Felipe, 15, com as suas especialidades de leitão. Finalmente, para um encontro com a história mas também com a arte de cozinhar, vale a pena sentar-se calmamente no pátio do La Almudaina (www.restaurantealmudaina.com), na Plaza Campo Santo de los Mártires, 1, mesmo em frente ao Alcázar de los Reyes Cristianos, um palacete do século XVI construído por Leopoldo de Áustria, tio de Carlos V. De alguns anos a esta parte, Córdova promove a rota das tabernas como produto turístico tão intimamente ligado às suas raízes, num total de sete dezenas de estabelecimentos onde se misturam locais e turistas para provar as tapas cuja fama há muito se estendeu para lá das fronteiras da Andaluzia. Além da já citada Casa Pepe de la Juderia, há outras que justificam uma visita, como a Taberna San Miguel (Casa El Pisto), na praça com o mesmo nome, fundada em 1886 e gozando de grande reputação, ou a Taberna Salinas, um lugar de encontro junto à Plaza de la Corredera e uma segunda casa próxima da Puerta de Almodóvar.
Onde dormir
Se busca um pouco de tranquilidade e não se incomoda de pernoitar fora do centro da cidade, embora a curta distância, nada melhor do que optar pelo magnificente Parador de la Arruzafa (www.parador.es), na Avenida de la Arruzafa, 37, um hotel erguido sobre as ruínas do palacete de Verão de Abderramán I, no sopé da serra cordovesa e rodeado de vegetação. Para quem pretende ficar na judiaria, uma das melhores opções, por cerca de 90 euros por um duplo, passa pelas Casas de la Juderia (www.casasypalacios.com), na Calle Tomás Conde, 10, de fronte para o Alcázar de los Reyes Cristianos e os Baños Califales. Por último, para uma estada memorável e luxuosa (160 euros por noite), mesmo no centro histórico, deve dirigir-se ao Palacio del Bailío (www.hospes.com), na Calle Ramirez de las Casas Deza, 10-12, uma antiga casa romana onde não faltam umas termas no spa Bodyna.
Informações úteis
Os cidadãos portugueses apenas carecem de um documento de identificação (passaporte, cartão de cidadão ou bilhete de identidade) para visitar Espanha. Este ano, a Festa dos Pátios (Património Imaterial Cultural da Humanidade desde 2012), organizada pela primeira vez (como concurso) em 1921, decorre entre os dias 4 e 17 de Maio. Os pátios dividem-se em dois tipos de arquitectura, antiga (até 1960) e moderna (vivendas construídas após uma demolição ou que perderam os seus elementos mais significativos), cada qual com o seu encanto, e podem ser apreciados ao longo do ano através de visitas pagas e organizadas (actualmente, alguns abrem as suas portas durante a quadra natalícia).