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Coimbra de A-a-Z

Por Andreia Marques Pereira

Não nasceu com a universidade, mas foi à sombra dela que cresceu, se desenvolveu e ganhou fama. No ano em que a Universidade de Coimbra cumpre 725 anos, fomos descobrir do que se faz esta cidade à beira do Mondego, “do choupal até à lapa”. Entre a história, as lendas e as tradições vimos também a cidade que se mexe por caminhos menos óbvios apanhando a bonança da distinção da UNESCO. E viemos com a certeza de que o maior encanto de Coimbra não é só na hora da despedida.

A

Anozero

Não é o primeiro ano do resto da vida de Coimbra – ou se calhar até é, mas quantos terá tido ao longo dos séculos? É certamente o primeiro ano da bienal de arte contemporânea que o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) organiza aos 57 anos de idade. Não é um aniversário redondo, mas é uma boa forma de assinalar a classificação como Património Mundial da Unesco da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, há dois anos atrás e é também o pretexto ideal para dar (mais) visibilidade a essa distinção, ocupando 30 locais quase todos abrangidos por ela. Isso será a partir de 31 de Outubro (até 29 de Novembro) – nós chegamos à sede do CAPC em meados de Setembro para encontrarmos um local suspenso no tempo, que é como quem diz, vazio de exposições, embora cheio de ideias para a bienal. Mariana Roque, da produção,  fala-nos da necessidade de “reflexão sobre o território e o património”, que se enquadra numa “longa tradição” que é para manter. “Esta classificação é pertinente: não só legitimamos mas também confrontamos a cidade com essa realidade.”

Afonso Henriques

Portugal ainda dava os primeiros (e muitos bélicos) passos, quando o nosso primeiro rei instalou as cortes em Coimbra. Afonso I acabou por morrer na cidade, com a idade avançada de 74 anos, e aqui foi sepultado na Igreja Santa Cruz, que ele próprio mandou construir, de pedra alva, bem na Praça 8 de Maio, toda ela a brilhar com o tapete de pétreo polido. D. Manuel I, não reconhecendo no túmulo a grandeza exigida ao fundador da pátria, mandou fazer outro que colocou na nave central, contudo, rapidamente voltou à capela-mor onde se mantém até hoje. É difícil apreciar a beleza gótica do túmulo actualmente, não só porque as esculturas à laia de retábulo estão gastas e sujas mas porque o tráfego de visitantes é constante. É assim que nos vemos com a narração de um guia russo  e respectivos turistas enquanto observamos o túmulo de D. Afonso Henriques e o do seu filho, Sancho I, no mesmo estilo embora mais modesto na decoração, lado oposto da capela. Ultrapassamos na nave central grupos de turistas que são alheios aos crentes que se recolhem nas últimas filas da igreja.

B

Baixa

A Baixa de Coimbra tem uma curiosidade que é um contraponto: a ela corresponde uma Alta e, entre ambas, congregam grande parte do património histórico cultural da cidade. A Baixa era os arrabaldes da cidade muralhada, zona de comerciantes e artesãos – e hoje, é aqui que floresce o comércio tradicional da cidade. Enfim, é aqui, entre a Rua Ferreira Borges e a Sofia que se sente esse pulsar da cidade, mais à margem das flutuações estudantis. É também um corredor de turistas – a cada grupo com que nos cruzamos, uma língua diferente, italianos, franceses, chineses, espanhóis, que se cobrem da chuva com o panfleto sobre a universidade; brasileiros que, à porta do histórico café Santa Cruz, combinam uma ida à Bairrada para comer leitão; um espanhol toca saxofone à vista da Igreja Santa Cruz; duas velhotas instalam-se num muro em venda ambulante.

Às vezes não olhamos para cima, mas no caso da rua Ferreira Borges podemos deparar-nos com edifícios especialmente belos e com montras inesperadas em primeiros andares: um Darth Vader com mão de rato Mickey é chamariz suficiente para a loja Gang of Four (loja de roupa com marcas pouco usuais). Na Praça do Comércio, que já levou o nome de Praça Velha, já só há a Feira das Velharias e Antiguidades, uma vez por mês, mas temos esplanadas, algum comércio e a igreja românica de São Tiago junto à barroca de São Bartolomeu – à noite, a iluminação feérica dá-lhe um ar saído doutros tempos. Assim como às ruelas e becos que aqui na Baixa se confundem num dédalo com um charme único.

Na Rua da Sofia, a monumentalidade é mais visível, pelos colégios universitários que aqui se localizavam (o berço da universidade): os grandes edifícios de pedra branca de um lado da rua convivem com o comércio do outro lado.

C

Cria'ctividade

É através de um cartaz que temos o primeiro contacto com a Cria’ctividade – Integração Alternativa à Praxe, no topo das Escadas Monumentais, enquanto estudantes rodeiam a estátua de D. Dinis com odes à bebida e estas na mão. Para esta noite anuncia-se um concerto no Jardim da Sereia e uma festa na Real República Rápo-Táxo. Depois de no Tropical, café de gerações de estudante, voltarmos a ouvir falar da Cria’ctividade (a “Rita da Bota-Abaixo” distribui flyers, um ano depois de, caloira, ter recorrido ao grupo quando a praxe não lhe correu bem. “Pensei ‘fiz asneira, não vou ter amigos’”) ver-nos-emos noite bem cerrada na República Rápo-Táxo, mesmo ao lado da dos Fantasmas.

Bruno Garrido e Mário Carvalho vendem senhas (finos a 0,80€) e esperamos que eles expliquem o conceito que nasceu na República dos Kágados. A ideia foi criar uma plataforma alternativa à praxe dita tradicional e para tal juntaram-se seis repúblicas, secções e organismos autónomos da universidade. “É um grupo informal, sem hierarquias e submissão. Quem participa são voluntários, com motivações diversas e uma motivação comum: não se reveem no modelo de praxe.” Esta Cria’ctividade dura um mês e tem programação ecléctica: concertos, workshops, jogos em rede (“lan parties”), torneios de futebol, jantares em casas, festas. Na semana de inscrições tiveram várias bancas a prestar auxílio nas matrículas. “Até pais demonstraram interesse” e a mãe de uma estudante que desmaiou no primeiro dia de praxe pediu-lhes ajuda. E muitos estudantes vêm esclarecer dúvidas juntos dos membros do Cria’ctividade: “sinal de que fazemos bem as coisas”.

D

Distinção

Foi a 22 de Junho de 2013 que a Universidade de Coimbra – Alta e Sofia foi inscrita na lista do Património Mundial da Unesco por oferecer um exemplo maior da integração de uma cidade universitária numa tipologia urbana específica, pela manutenção de tradições culturais e cerimoniais ao longo dos séculos e pelo património histórico exemplar. Em Coimbra, a distinção da UNESCO foi bem-vinda, mas agora algumas vozes se levantam contra a massificação do turismo que trouxe – e que este Verão se sentiu ainda mais, dizem-nos – cujas consequências ainda estão por apurar. Há quem fale da “gentrificação” que se começa a sentir, “qualquer apartamento é para turistas, qualquer loja é gourmet [com as respectivas inflações dos preços]”, queixam-se Bruno Garrido e Mário Carvalho; há quem refira, como Natasha Soares, que “se continua a privilegiar a Alta e a Baixa” deixando o resto da cidade à margem. Bruno e Mário falam ainda do risco de Coimbra “se tornar uma Disney”, porque “o turismo tem consequências”.

E

Encontros Mágicos

Não estávamos à espera, mas quem andava por Coimbra entre 15 e 20 de Setembro dificilmente lhes escaparia. Na sua 19ª edição, os Encontros Mágicos teimam em trazer para as ruas da cidade a magia que nem sempre se vê. E assim no Largo da Portagem, entre o hotel e o posto de turismo, nos deparamos com um aglomerado de gente; aproximamo-nos e o objecto da atenção é um palhaço-ilusionista, vestido de negro e chapéu com fita vermelha, acompanhado por um pequeno ajudante de chapéu XL cheio de lantejoulas. Na plateia tem alunos das creches 25 de Abril e O Pátio. “Acho que vêm mais, mas como está a chover têm medo”, diz-nos uma funcionária de uma das creches. Na verdade, nem dez minutos depois, volta a chuva que anda a brincar às escondidas com o sol. A debandada é geral, contudo voltaremos a ver magia mais tarde, onde a Rua Ferreira Borges corta para o Arco da Almedina.

F

Fado

Canção de Coimbra, fado de Coimbra, não importa qual a designação, agora tem uma casa institucional na cidade. O Núcleo da Guitarra e do Fado de Coimbra, que encontramos deserto e sem informação para dar, abriu em Julho, na Torre do Anto, parte da muralha medieval da cidade, e ainda cheira a novo nos seus quatro andares. É Carlos Paredes quem nos recebe, a sua guitarra em destaque; o seu pai, Artur Paredes, não é esquecido e conjuram-se as palavras de José Régio sobre ele. Com ecrãs tácteis – onde podemos, por exemplo,  “desmontar” e “montar” uma guitarra de Coimbra – e filme que narra a evolução do fado e nos acompanha enquanto subimos a torre, passam diante nós os vários intérpretes do fado de várias épocas, entre a canção de Coimbra e a canção de intervenção. Se o fado virou instituição-a-sério, ele já anda à solta há muito tempo, longe das serenatas estudantis. De uma das lojas de souvenirs da Porta da Almedina ele invade a rua, com as noites de Verão da autarquia instala-se na Praça 8 de Maio e numa série de espaços é cartão-de-vista: do Fado ao Centro ou À Capella, ao café histórico Santa Cruz, sem esquecer novos espaços como o Quebra o Galho.

G

Ginkgo biloba

São duas as ginkgo biloba (ou nogueira-do-japão) que nos recebem no Jardim Botânico de Coimbra, a ladear a estátua de Soares dos Reis a Avelar Brotero e são uma espécie de árvore-símbolo deste jardim. Mas estes exemplares são apenas um dos muitos pretextos para visitar o jardim Botânico de Coimbra, situado na alta, bem junto da universidade, tendo num dos lados a companhia do Aqueduto de São Sebastião, por isso também conhecido por Arcos do Jardim. Aqui encontram-se variedades botânicas de todo o mundo, dispostas em vários níveis, tudo a congregar-se no fontanário central. Daqui faz-se a transição para a mata, que avança por um vale intensamente arborizado, onde há um circuito de arborismo (fechado na tarde em que o visitamos) e onde os passeios são limitados aos caminhos principais demarcados por fitas – o abandono é inegável, logo que se passa o portão, com a escadaria fechada. As estufas estão em obras e demos de caras com Manuel António Pina, homenageado num cedro-do-himalaia.

H

Hilário

É o eterno estudante de Coimbra, cultor paradigmático de toda a boémia estudantil e admirado intérprete de fado. Hilário é, portanto, o pretexto para falar dos estudantes: é impossível falar de Coimbra sem os mencionar, eles que marcam o seu ritmo. Como há-de dizer-nos Alexandre Lemos, do projecto Condomínio Criativo (lá iremos), “o ano aqui termina com banhos de cerveja [queima-das-fitas] e recomeça com banhos de cerveja [recepção aos caloiros].” Nada mais apropriado, portanto, que estudantes sejam os anfitriões da referência maior da cidade – e é assim que conhecemos Franco Dinis e Angélica Gusmão, 28 e 37 anos, trajados à porta do Pátio das Escolas para receber os visitantes. São ambos estudantes de doutoramento, vindos do Brasil. “Fomos convocados para recepcionar os turistas, mesmo aqueles que vêm com guia. Somos anfitriões em nome dos estudantes e só mesmo estudantes aqui podem estar.” Não podem receber dinheiro sob qualquer pretexto nem vender nada – podem, porém, tirar fotografias e são poucos os que resistem a fazê-lo com estas espécies de guardiães do templo do saber trajados a rigor.

I

Inquisição, pátio

Quando entramos no Pátio da Inquisição dificilmente conseguimos imaginar os tempos de terror de que herdou o nome. Há uma beleza tranquila, quase monástica, nesta praça interior rodeada de edifícios majestosos (que foram colegiais e depois inquisitoriais), mesmo com a vida quotidiana a correr. Os carros estacionados não permitem usufruir totalmente do espaço ao dirigir-nos para o Centro de Artes Visuais – Encontros de Fotografia, instalado desde 2003 no edifício onde funcionou o Colégio das Artes. Durou pouco essa vocação, já que em 1566 aqui se instalou o tribunal do Santo Ofício até à sua extinção em 1821. Recuperada um pouco a vocação artística, a praça  alberga o grupo de teatro A Escola da Noite, recebe espectáculos de teatro e de música ao ar livre, e o CAV para onde entramos por um pátio luminoso no branco da pedra do edifício e do chão. Há crianças a brincar aqui – e nada mais. O interior do CAV parece em hibernação e para percorrermos a exposição de Vasco Araújo “E eles tinham coisas para me dizer...” é necessário ligarem-se as luzes, os vídeos, as colunas de som.

J

Jesuítas

Diz-se que foi o primeiro colégio jesuítico de todo o mundo, o que se construiu em Coimbra a partir de 1547 e por onde passou, por exemplo, o padre António Vieira. E, para servi-lo, construiu-se também uma igreja que com a expulsão da Companhia de Jesus, por ordem do Marquês de Pombal, passou para o episcopado que a tornou a nova catedral da cidade, a chamada Sé Nova – o colégio passou, por seu lado, para a universidade. É inconfundível a origem jesuítica da Sé Nova, no Largo da Feira, pois tem todos os traços arquitectónicos paradigmáticos desta ordem: a fachada (relativamente) sóbria, com estátuas de quatro santos jesuítas (entre eles, inevitavelmente, Santo Inácio de Loyola), dividida em vários andares onde se alinham portas, janelas, pilastras.

Há uma escadaria que separa o largo do Museu Machado de Castro, um dos incontornáveis de Coimbra, que leva o nome do escultor natural da cidade cuja formação humanista foi moldada precisamente pelos jesuítas. O museu, com uma considerável colecção de escultura – em pedra, madeira e terracota -, joalharia, ourivesaria, mobiliário, cerâmica (incluindo azulejos jesuíticos) e têxteis, guarda uma máquina do tempo – do tempo dos romanos. O criptopórtico romano, uma galeria subterrânea, leva-nos ao tempo de Aeminium.

L

Lágrimas, quinta das

Não se pode ainda hoje falar de Coimbra sem lembrar Pedro e Inês e a Quinta das Lágrimas, hoje hotel de charme, é o palco mais palpável desses amores. Foi coutada de reis e nobres e desses tempos ficou-lhe a lenda pois foi aqui que viveram o (proibido) idílio romântico e foi aqui que Inês encontrou a morte. Nos jardins é possível tentar transportarmo-nos para aquele século XIV feito de amor e sangue. E é de sangue que se faz um dos mitos deste local, na chamada Fonte das Lágrimas (pois das lágrimas de Inês terá surgido) cujas algas avermelhadas são tradicionalmente associadas ao sangue de Inês – a sua cor escura já não permite essas liberdades poéticas. De qualquer forma, foi o suficiente para comover o duque de Wellington, que durante a sua estadia mandou colocar uma placa com uma das estrofes de “Os Lusíadas”. A outra fonte, a dos Amores, enquadrada por ruínas medievais – um pano de parede com janela e porta ogivadas – prossegue por um estreito canal e é conhecido por “cano dos amores” pois por ali iriam os barquinhos com as cartas de Pedro para Inês na altura em que esta vivia no Paço da Rainha Santa (junto ao convento de Santa Clara). Mitos ou realidade, o certo é que as árvores da mata junto da Fonte dos Amores estão cobertas de “laços de amor”, juras de enamorados.

M

Mondego

“Oh Coimbra do Mondego...”. Mais um fado, sim, e quantos falam do rio que atravessa a cidade? Desde Camões, gerações de poetas se inspiraram no Mondego; agora chegou a vez de os conimbricenses também se inspirarem. O restaurante Baga não resistiu e ocupou o barco O Basófias, um clássico do turismo no Mondego, com o Love Sushi à horas das refeições. Chegamos ao Parque Dr. Manuel Braga, onde ancora, com o restaurante a ser montado para poucas horas depois ser desmontado, na altura em que o barco volta a navegar. Começou a funcionar há um ano e a opção foi pela vista e tranquilidade que se usufrui no barco, conta Sérgio Santos. A vista é para a outra margem, uma das entradas do Parque Verde do Mondego, que se estende pelas duas margens – desse lado, o esquerdo, surgiu a grande novidade (e sensação) do rio Mondego. Na zona dos desportos náuticos agora também se pratica paddle surf. Nós vimos mergulhos desde a ponte Pedro e Inês, caiaque-polo mas do paddle surf hoje só o meeting point à laia de lounge do Coimbra Stand Up Paddle. Luís Brito faz as honras da casa, que é de aluguer de material e em breve será escola.

Na outra margem, em frente, sobressaem os restaurantes e bares “pendurados” no rio. É a outra metade do Parque do Mondego, que inclui o Pavilhão Centro de Portugal, que Siza Vieira e Souto Moura projectaram para a Expo de Hannover, e agora é a sede da Orquestra Clássica do Centro.

N

Noite

Hoje o Salão Brazil está transformado numa espécie de salão literário – vários poetas ditos por vozes portuguesas e brasileiras. Mas essa é a primeira parte da noite, a segunda será ocupada por electrónica experimental. Poucas noite são iguais no Salão Brazil e há noites que nem existem. “Abrimos três ou quatro vezes por semana mas sujeito a actividade cultural”, explica José Miguel Pereira, presidente da Jazz ao Centro, a entidade gestora e programadora do Salão Brazil – que foi salão de bilhar e manteve o nome e as filas de candeeiros, agora a iluminar mesas, hoje cheias. Muitos concertos (os músicos ficam muitas vezes hospedados no andar superior, onde já funcionou um pensão, “quando a Baixa tinha a energia que agora não tem” – há 50 anos esclarece José Miguel) – apesar do jazz ser o leit motiv da associação gerente, não há preconceitos – e até noites de quizzes fazem a programação ecléctica.

Hoje a poesia termina com o verso “a única coisa a fazer é pedir um tango argentino”, o que podia ser uma boa deixa para uma visita à Aqui Base Tango, já na Alta da cidade, na órbita da Praça da República. Aqui na Baixa e a poucos metros do Salão Brazil mais dois espaços teimam em animar uma Baixa sem a energia de outrora – Be Tasty/Be Poetry e Be Scobar, esta noite com concerto na rua.

E então a subida pelo Quebra-Costa (ver entrada referente), passando pelo Largo da Sé Velha (ver entrada referente) até à Praça da República, local que congrega a comunidade estudantil – o Tropical e o Cartola são clássicos, o Académico, idem. “Apesar da universidade ter muitos alunos, todos passam por ali”, dir-nos-á Sandra Sousa, funcionária da Casa das Caldeiras. E nas margens da Avenida da Sá da Bandeira, que culmina na praça, são os bares de “bebida barata” e música alta – com centenas de copos espalhados pelo chão.

O

Originalidades

Há novos espaços, antigos espaços com novas funções: Coimbra inventa-se e recicla-se. Há uma bicicleta dourado escuro com um cesto de flores ao lado da porta alta – é a entrada de um “novo” conceito em Coimbra, ou pelo menos assim se assume a “Coimbra Concept Store”, na Avenida Sá da Bandeira. Pegou-se numa casa antiga e dela se fez uma espécie de centro comercial alternativo, com as salas como lojas: papelaria e centro de estética, roupa e acessórios, objectos de decoração e produtos gourmet, mobiliário e bijuteria. Dir-se-ia que estamos noutra geografia e noutro tempo, apesar de continuarmos na mesma avenida: o Brunn’s transporta-nos aos anos 50, nos EUA. É um dinner com certeza, com os carros como motivo, a Route 66 como imaginário, e todos os ícones presentes: das cores fortes ao busto de Marilyn. A música vai de Johnny Cash a Beatles e pode chegar aos anos 80, diz José Rodrigues, o gerente; o menu é tipicamente americano, pois claro.

Não saímos da órbita da avenida, na Casa das Caldeiras, exemplo de reconversão: de antiga casa das caldeiras que aqueciam água para os antigos hospitais para hamburgueria (sobretudo) e bar em ambiente industrial. Da mesma proprietária, Sara Alves Barbosa, é a Cafetaria do Museu, com o mesmo princípio: desta feita no antigo Laboratório Chimico (agora Museu da Ciência), com brunch ao domingo e esplanada com vista.

Também com vista é  o novo Passaporte Lounge Terrace que ocupa o antigo edifício do Governo Civil (dividindo-o com o hostel Portagem). A sua esplanada, a uma vez clássica e contemporânea, é a varanda ideal para o Mondego – acompanhado por uma bebida ou um petisco.

P

Penedo da Saudade

Se “o fado sobrevive da saudade”, como ouvimos, cantado, diante da Igreja de Santa Cruz, a saudade tem de ser intrínseca a Coimbra. E tanto o é que até tem um Penedo da Saudade, dizem as lendas ligado a Pedro e Inês: este seria um dos locais onde D. Pedro vinha chorar a morte da sua amada. O jardim romântico que agora o ocupa, distribuído em vários patamares, foi construído em 1849, faz as vezes de miradouro, porém, foram os estudantes que lhe emprestaram a nova aura quando ali começaram a colocar lápides a assinalar a sua passagem pela cidade (“Parto a sorrir”) ou alguma efeméride académica (“No Penedo da Saudade homenageamos Coimbra”, inscreveu o curso médico 1959-65 em 2010). O busto de João de Deus recebe-nos, António Nobre e Eça de Queirós também não foram esquecidos, mas o “Retiro dos Poetas” é de anónimos estudantes, assim como a “Sala dos Cursos”, onde as lápides estão tão gastas que por vezes são ilegíveis e a vegetação seca quase lhe empresta uma aura de cemitério romântico.

O “outro” Penedo da Saudade também tem canção, “Do Choupal até à Lapa”. A lapa é a dos Esteios, território do Romantismo, na margem esquerda do Mondego – por detrás dos portões da Brigada Fiscal da GNR, que agora ocupam a Quinta das Canas. Também aqui à beira-Mondego vinham estudantes, boémios, poetas em busca de inspiração neste recanto também em patamares e onde não faltam placas a assinalar várias passagens (incluindo a do imperador do Brasil, D. Pedro II). As visitas são livres; a vista de Coimbra e do rio segredo bem escondido.

Q

Quebra-costas

Da Baixa à Alta de Coimbra, do Arco da Almedina ao largo da Sé Velha são “só” umas escadarias a subir. A inclinação da colina é tal que a rua ganhou esse nome incontornável na geografia da cidade e central para qualquer visitante. A partir deste eixo central, saem ruelas que mergulham entre casario antigo, em alguns casos em processo de renovação, mas aqui, nesta passarela rasgada e sustida em vários níveis – diríamos fôlegos – a recuperação já vai adiantada, pintando de cores brilhantes, ora fortes ora suaves, os edifícios. Restaurantes, tascas modernas (uma anunciando-se até como “ginja point”) com petiscos à fartura e respectivas esplanadas, lojas gourmet, de artesanato, de souvenirs, de roupa, hostels – isto no primeiro segmento, que termina com o mítico bar Quebra, que dos seus dois andares dá jazz a toda a zona e da esplanada oferece boa vista ao vaivém de turistas que param para fotos junto da estátua da tricana de Coimbra. Está num local apropriado: é personagem de vários fados coimbrões e está entre duas casas onde o fado, o Fado ao Alto e o Quebra o Galho. No segundo lanço do Quebra-Costas, que começa ao lado do bar Quebra, mais estreito, as tascas são tradicionais e os andaimes não tão constantes. “Há dois anos, dois terços dos negócios no Quebra-Costas não existiam”, nota Mário Carvalho, arquitecto, voluntário do Cria’ctividade, “agora é só hostels, lojas gourmet, restaurantes que afastam as pessoas daqui de lá. Ainda não houve reflexão sobre as consequências da classificação”.

R

Rainha Santa Isabel

É a padroeira da cidade e mandou construir o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, um dos ex-libris de Coimbra. Depois da morte de D. Dinis mudou-se definitivamente para aqui passando a residir num paço anexo e acompanhou a construção desta obra singular, distinta de todas as outras góticas pela sua tipologia que muitos atribuem ao facto de ter sido projectada também para receber o túmulo da sua mecenas. Situado, na altura, nos arrabaldes da cidade, o mosteiro sofreu desde sempre com as inundações do Mondego. Por isso, no século XVII passou a “a-Velha” quando foi construído um novo, mais acima. O de Santa Clara-a-Velha continuou o seu persistente afundamento nas águas do Mondego até que já nos anos de 1990 começaram as obras definitivas para recuperar o conjunto arquitectónico, resgatando as ruínas do antigo claustro. Hoje, com um centro interpretativo e esplanada, recuperou parte do seu esplendor podendo ser visto na sua totalidade – há passadiços de madeira que permitem uma visão global também do seu exterior. A Rainha Santa Isabel, por ironia do destino acabou por morrer em Estremoz onde se deslocou para, uma vez mais, evitar uma guerra familiar (entre o filho, rei de Portugal, e o neto, rei de Castela), mas foi transportada para Coimbra seguindo os seus desejos expressos. Sepultada no “seu” mosteiro, foi transferida para Santa Clara-a-Nova.

S

Souvenirs

Não é nada de novo: lojas de souvenirs, há-as, aos molhos, nos locais turísticos. Em Coimbra não são novas, mas a oferta aumentou e diversificou-se. Continua a haver aquelas que se dedicam sobretudo aos ímanes, postais, cinzeiros, isqueiros, com canto de louça de Coimbra e atoalhados – é impossível não dar por elas na Rua Ferreira Borges, no Arco da Almedina – e há algumas que tentam distinguir-se. A Ólifante Shop, por exemplo, abriu em Maio do ano passado, minúsculo espaço no Quebra-Costas, enche-se exclusivamente do imaginário de Coimbra: estudantes, queima-das-fitas, Pedro e Inês, rainha Santa Isabel, Afonso Henriques plasmado em t-shirts, ímanes, canecas. Ao lado, a Portugal na Lata começou por ter “produtos regionais de todo o país”, explica Andreia Morato, a proprietária. Depois, essa oferta foi sendo complementada por algum artesanato, peças únicas à mistura, como as túnicas de croché, e coisas menos comuns como os chinelos de burel (Serra da Estrela) ou o tecido autocolante com motivos da azulejaria antiga e invadida pela iconografia de Lisboa (com o eléctrico 48 como motivo comum), do fado e da literatura (bustos de Camões e Pessoa em várias cores – todas bem fortes, as mesmas dos galos de Barcelos –, postais de Saramago).

T

Transição

Foi um encontro inesperado na Baixa de Coimbra, na estreita Rua Direita, a degradação à vista de todos (mas com a inscrição colorida à entrada: “Arte urbana R. Direita”) e imprevistos descampados entre os edifícios: num destes, fechado mas à vista de todos, um jardim-horta pouco ortodoxo (quase como que abandonado), um misto deste com intervenção artística, plasmada em murais pintados ou com pequenos azulejos nas paredes de prédios esventrados, esculturas com materiais inesperados e slogans “Arte s/ abrigo”, “Quero habitar o teu coração. Deixas?”. Saberemos depois que é um projecto da Coimbra em Transição, associação que tem por objectivo envolver a comunidade num meio urbano mais verde. Mas à primeira vista nós, tal como os turistas espanhóis que espreitavam pela rede, não percebemos o que víamos.

U

Universidade

Chegou este ano aos 725 anos de idade e o Pátio das Escolas continua a ser o coração da UC. Nós chegamos pela escadaria das traseiras, mesmo ao lado da Biblioteca Joanina, onde há dois grupos com guias à espera para visitar a “jóia da coroa” da universidade, uma das bibliotecas mais belas do mundo, e outros visitantes avulsos. A estátua de D. João III, que transferiu definitivamente os Estudos Gerais para aqui (desde a sua fundação em 1290, por D. Dinis, alternou entre Lisboa e Coimbra), preside, central, à praça e é motivo de fotos – incluindo de duas estudantes trajadas, elas próprias foco de outras fotos. Ouvimos línguas estrangeiras por todo o lado, distinguindo palavras portuguesas como “via latina” (a galeria onde apenas se falava latim), “cabra” (o sino da torre, que marcava o dia-a-dia), que juntamente com a Sala dos Capelos, a Capela de São Miguel e a Prisão Académica (dos tempos em que a universidade tinha autonomia jurídica) são referências incontornáveis neste espaço nobre – que foi o Paço Real e ainda guarda restos da Coimbra muçulmana. Andando uns séculos à frente, o Marquês de Pombal deixou uma marca indelével na universidade, com a sua reforma imbuída pelo espírito iluminista. Uma das suas mais notáveis heranças é o Laboratório Chimico, o mais antigo ainda existente, instalado num edifício neoclássico, que hoje recebe o Museu da Ciência com acervo que recua ao século XVIII. Da mesma altura data a reconversão de antigos edifícios jesuíticos em pólos de educação.

V

Velha, Sé

É um caso de esquizofrenia o que se vive em redor da Sé Velha de Coimbra e é ela quem perde. Estamos a meio caminho entre a Baixa e a universidade quando se abre o largo irregular, de inclinação acentuada e casario apertado. A Sé-Velha, que tenta respirar no meio, é uma igreja-fortaleza quase puramente românica, onde não faltam ameias na fachada que deixa desmaiar a severidade nos três arcos perfeitos a enquadrar um janelão. No exterior, vale  pena observar as traseiras, com a abside principal enquadrada pela torre-lanterna, mas é o alçado norte que guarda o “tesouro”, a Porta Especiosa, que foi adossada à romântica transformando-a numa obra-prima da Renascença em Portugal. No interior, o maior deslumbramento também vem de uma capela renascentista, em pedra de Ançã. Dizem que é a catedral mais portuguesa de Portugal porque acompanha toda a vida da nação, mas é sobretudo guardiã de um caótico parque de estacionamento durante o dia, e de uma vida nocturna desbragada – esta é zona de convívio etílico, alimentado com bares que são réplicas no modelo: televisão a passar desporto, cerveja, baldes de vodka anunciados a preços baratos. Por estes dias a pergunta que mais se ouve é: “Vocês são de que curso?” A noite faz-se na rua e faz-se (aparentemente) o que se quer.

X

XX, século

Alguns crêem que durante o século XX se perpetrou o maior atentado urbanístico em Coimbra e dele resultou a diluição do conceito de Alta. Foi da Alta, muralhada, que houve cidade, entre ruelas que trepavam até ao castelo. A população começou a viver fora desta área, na Baixa, e só quando em 1537 aqui foi instalada definitivamente a universidade – no Paço da Alcáçova – a Alta recuperou importância: a degradação anterior deu lugar ao renascimento com a construção de colégios e a instalação de ordens religiosas. E, em traços largos, a Alta passou a ser domínio de estudantes e lentes, a Baixa de todos os outros: nesses tempos, desta divisão informal, nasceram muitas das tradições que ainda hoje preenchem o imaginário estudantil de Coimbra. Até que, na década de 40 do século XX, parte importante da herança de séculos de ocupação, a “velha Alta”, poderíamos dizer, foi arrasada para a construção de novos edifícios que concentraram a cidade universitária tal como a conhecemos – e que se reflectem na sua grandeza ao estilo Estado Novo, sobretudo na rua Nova, que une a praça D. Dinis à Porta Férrea. Claro que nas décadas entretanto decorridas, a cidade universitária já se expandiu (muito) mais, com pólos em vários pontos de Coimbra – e o conceito de Alta cada vez mais diluído.

Z

Zeitgeist

É o ar do tempo que aqui se respira. Chegamos pouco antes do início da Matiné, marcado para as 18h: o relvado ainda está praticamente deserto; na cozinha, o postigo está aberto e preparam-se petiscos; em pouco chegará o DJ (Chico, dos Wraygunn) e começará a montar-se a mesa de som – todos os voluntários são bem-vindos para carregar a aparelhagem de uma das salas de exposição (hoje também é a finissage da mostra “69 Happy Cocks”) para a mesa baixa tutelada por um cadeirão algo barroco donde haverá música. E mais tarde começarão a chegar os vendedores de hortícolas biológicos frescos e artesanato. Não é o dia-a-dia desta Casa das Artes da Fundação Bissaya Barreto (a mesma que detém o Portugal dos Pequenitos, um clássico de Coimbra), são as sextas-feiras, o final da semana de trabalho, um dos momentos mais óbvios de abertura à cidade.

A Casa das Artes é a casa do Condomínio Criativo que reúne profissionais liberais de indústrias criativas que trabalham nos seus próprios projectos ou em regime comunitário, explica o director, Alexandre Lemos. Não são um espaço de co-work comum, portanto, uma vez que o próprio condomínio chama a si a prestação de serviços como um todo – agora a comunicação da UC no âmbito dos seus 725 anos. E quem quiser envolver-se é bem-vindo. “A porta está aberta para quem quiser vir”, explica. Tanto no sentido de um envolvimento mais profundo (podendo tornar-se mais um condómino), como para desfrutar do espaço e espírito que a ele preside. Porque a abertura não é só nas matinés nem nas visitas às exposições que acontecem regularmente – jogos de tabuleiros, jantares temáticos, conversas com viajantes, concertos, meetups (o próximo de realidade virtual) são eventos comuns.

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