Fugas - Viagens

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Na Serra d’Arga, entre montes sagrados e profanos

Por Andreia Marques Pereira

Os incêndios do Verão passado ainda são uma cicatriz, mas o poder regenerador da natureza já se manifesta e a Serra d’Arga é uma fénix a renascer. A visita foi curta, mas o suficiente para despertar o desejo de voltar. Das paisagens naturais às humanas, das lendas às tradições, este é um museu etnográfico a céu aberto para percorrer de pés bem assentes no chão – ou seja, a caminhar.

“Daqui, vemos o cimo da serra. Se há nevoeiro dizemos para não subirem.” “Daqui” é Montaria, freguesia de Viana do Castelo encavalitada na Serra d’ Arga; o “cimo” é a Nossa Senhora do Minho. Quem nos fala é Agostinho Costinha, diante da sede da Descubra Minho, empresa de ecoturismo especializada no território que a rodeia e também no Parque Nacional da Peneda-Gerês, voluntário para uma mini-visita guiada por esta área da Serra d’Arga. “O lado secreto”, diz, este que fica no concelho de Viana do Castelo em contraponto com o lado de Caminha, “onde ficam as Argas [Arga de Cima, Arga de Baixo, Arga de São João], que todos associam à serra”. E o que vemos quando olhamos para cima neste início de Março não é animador. Nuvens pesadas, deslocando-se lentamente – mas temos pouco tempo na Serra d’Arga e arriscamos subir até ao seu “melhor miradouro”. Em dias de sol, a vista vai de Viana do Castelo passando pelo vale do Lima, até ao Gerês; vai da Póvoa de Varzim até à Galiza, sempre com o mar no horizonte.

Entramos na estrada de montanha para sermos envolvidos por árvores que fazem da via um túnel verde animado de amarelos das acácias e mimosas. Há água que escorre para a estrada em ribeiros improvisados pelo Inverno, rochas que já se exibem e que vão perdendo o pudor à medida que subimos: a austeridade rochosa vai tomando conta das encostas, onde tudo se torna rasteiro, enquanto o fundo dos vales pertence a aglomerados de verde. Um contraste perante a imensa cicatriz dos incêndios do ano passado, terra queimada e arbustos carbonizados – e o espanto perante o poder regenerador da natureza quando o verde tenro do que está a nascer se encosta ao negro do que morreu. Avistamos cabras esquivas (o cabrito à Serra d’Arga é um dos pratos típicos, e obrigatórios, nos restaurantes da zona), mas não o pastor. Tal como não vemos, nem veremos, garranos que são relativamente comuns, declara Agostinho (o lobo ibérico também não é um desconhecido) que por isso diz que “a Serra d’Arga é um pequeno Gerês” – está integrada na Rede Natura 2000.

No “cimo” é com um planalto que nos deparamos, extenso e dominado a norte pela igreja do Santuário de Nossa Senhora do Minho, uma construção de granito que se assemelha a um penedo, na sua forma ogival. Uma zona de piquenique está abrigada por bétulas, praticamente as únicas árvores aqui. Nós somos os únicos neste local. Nós, o vento, as nuvens. Há-de chegar o nevoeiro: olhar desviado do vale onde se aninham terras de Paredes de Coura e Ponte de Lima, tutelado pelo Corno de Bico, paisagem protegida, para um salto nas rochas e já estamos num “ensaio sobre a cegueira”. Voltaremos, mas por enquanto viramos costas ao horizonte e espreitamos a igreja, que só abre para a missa domingueira: entre as grades da porta principal vemos no altar a imagem da Nossa Senhora do Minho, traje minhoto e espigas numa das mãos. Bem diferente da que se vê na pequena gruta-ermida das traseiras do templo, traços gastos, rústicos, autenticidade mais condizente com a empedernida serra. É aqui que no primeiro fim-de semana de Julho se faz a romaria da Nossa Senhora do Minho. “Antes, a procissão vinha a pé, agora, todos vêm de carro.”

A pé continuam a vir muitos visitantes – ainda esta manhã Agostinho foi guia de um grupo de estrangeiros. É que não há como evitá-lo, a serra descobre-se caminhando. Ou então caminha-se já com um destino e esse pode ser uma das muitas lagoas que a povoam ou tão simplesmente um dos cartões de visita mais conhecidos da Serra d’Arga, o Santuário de São João d’Arga: quando há a festa, conta Agostinho, muitos são os que deixam o carro deste lado da serra e se aventuram a caminhar pelos montes cerca de duas horas.

Fora fim-se-semana, teríamos podido ver a D. Carmen ou a D. Maria a fazer broa de milho como “antigamente”, ou seja, com a farinha moída num dos moinhos de água que já foram quase ubíquos na freguesia. Assim, não lhes pomos a vista em cima, mas visitamos um moinho de água no lugar de Espantar. É um dos dois ainda em funcionamento, dos 42 que existem na aldeia. “Para cada 10 famílias, havia um moinho”, conta Agostinho. A emigração levou muita gente, contudo, a igreja é um bom testemunho da antiga abundância populacional, parecendo agora quase incongruente na sua dimensão e na sua riqueza barroca.

Segredo mal guardado

Chegamos, então ao moinho de Espantar, tabuleta caída na beira da estrada. Há outro moinho a meio da colina, onde antes as mulheres coravam a roupa: não havia tempo a perder e enquanto os moinhos moíam a farinha no ribeiro lavava-se a roupa. Agora o moinho da encosta está abandonado, o de baixo restaurado e com restos de farinha entre as mós. As diferenças são óbvias e começam no telhado, um novo, laranja  brilhante, o outro gasto, algumas telhas já cinzentas; as semelhanças também, xisto e granito a compor as construções, “o granito dos montes, o xisto daqui mesmo”. A mesma levada alimentava ambas, uma das que “escorrem” do rio Âncora, que nasce na Fonte da Urze e chega ao mar em Vila Praia de Âncora; essas levadas ainda alimentam os campos agrícolas, em regime comunitário.

Não vamos perder o norte ao rio Âncora, apesar de poucas vezes o vermos. No Pincho, onde este se transforma em cascata, teremos, aliás, um excesso, cortesia da chuva dos dias anteriores. A cascata do Pincho é talvez o segredo mais mal guardado desta zona “secreta” numa serra conhecida pelas “sete lagoas”. O carro leva-nos até bastante perto, apesar do receio pelos efeitos das chuvas recentes nos caminhos florestais de terra. A água cai em fúria do penhasco, continua sobressaltada pelas rochas e segue nervosa em redemoinhos sobre fundo de seixos. Não conseguimos chegar perto da lagoa onde as águas se despenham, uma piscina natural no Verão. O calmo espelho de água em torno do qual se acotovelam banhistas está revoltoso e se as margens já são escassas no tempo seco, agora estão selvagens. “À volta da cascata existiam campos agrícolas”, conta Agostinho. Já passou mais de um século, calcula, e a floresta voltou a tomar conta de tudo – no meio dela, uma ponte minúscula, que mais parece um delírio rochoso sobre um ribeiro, lembra os tempos em que por estes terrenos se fazia o caminho até Vila Praia de Âncora.

Herança de outros tempos é o Santuário de São João d’Arga, isolado a meia encosta. Não há ninguém à vista quando abrimos o portão, apenas fechado no trinco. Dedicado a São João Baptista, o mosteiro e os albergues para romeiros que o ladeiam estão fechados na atmosfera medieval original (as datas de construção indicam o século VII) e constituem uma das mais icónicas imagens destas paragens. E não só durante a romaria que transforma os dias 28 e 29 de Agosto numa celebração com tanto de sagrado como de profano (diz a lenda que os romeiros davam duas esmolas, uma a São João e outra ao diabo) – a festa que anima a noite tem pelo menos folia (desde cantigas ao desafio a concertinas) e bebida para aguentar até de manhã.
“Nunca mais houve verde”

E já estamos do lado norte da Serra d’Arga, concelho de Caminha, a zona mais conhecida. As “três Argas” agora são a União de Freguesia de Arga, e é na sede, em Arga de Baixo, que se encontra o Centro de Interpretação da Serra d’Arga (CISA). Já tínhamos deambulado por Arga de Cima, para espreitar os espigueiros. Galinhas e perus correm soltos no largo onde se juntam as caixas do correio, numa casa anuncia-se venda de mel, mas está tudo fechado. “Já não há quase ninguém aqui”, diz-nos um homem no largo, “só reformados e velhos”. E como para que contrariá-lo chega uma sobrinha, jovem, vestido justo às riscas pretas e brancas.

Percorremos estes montes entre campos de cultivo, que surgem como puzzles entre muros de xisto rebeldes. Mas sabemos que o melhor seria pôr pés a caminho e adentrar-nos por eles fora. Aí percorreríamos as vias em lajes de granito que a serpenteiam, ligando povoações a bouças, ribeiros, pastagens, chãs, minas, turfeiras; passaríamos fojos do lobo – as antigas armadilhas que agora pouco mais são que vestígios feitos de pedra – e abrigos para caçadores de lobos; e avistaríamos ruínas de moinhos, cascatas, pontes e lagoas. “É preciso partir à descoberta”, insta Ventura Gonçalves, 44 anos, funcionário do CISA, antigo posto florestal instalado numa encosta pedregosa e molhada que o sol faz parecer de prata. E passa-nos quatro guias (dobrados cabem numa mão) de quatro trilhos sinalizados.

Para quem quer explorar este território da Serra d’Arga, o CISA funciona como porta de entrada (e loja de produtos regionais), uma espécie de resumo do que aqui se encontra – ou encontrava. Referências a flora (e uma horta pedagógica), fauna e património edificado, recriação de uma antiga cozinha, exposição de minérios, ouro inclusive; agora a prospecção está mais virada para o lítio, a população é que não: “Buracos já temos muitos”. O que já não têm é o Pontão do Lobo, cuja fotografia está numa parede, uma das construções mais emblemáticas da zona: caiu há dois anos numa tempestade. Ficamos pela imagem do tempo em que os padres atravessavam a serra a pé para dizer as missas – as lajes colocadas toscamente, horizontal e verticalmente, erguiam-se num semicírculo (“lombo do lobo”, diziam as gentes) minúsculo que se auto-sustentava.

Pedras quase como as que nos rodeiam e que “há 30, 35 anos eram pinhal”. “Ainda me lembro”, diz Ventura, “veio um incêndio e queimou tudo, nunca mais houve verde. Agora só rocha, pela erosão”. Ardeu a serra, ardeu o mato para os animais. Foi-se a gente. “É quase tudo velhos”, ouvimos outra vez, “foi tudo para Lisboa”. Ele também foi. “Cansei-me e voltei.” “Já não troco isto”, afirma, “qualidade de vida como aqui não há. Estamos a 20 km de Caminha, de Vila Nova de Cerveira, de Ponte de Lima. A 30 minutos de Viana do Castelo, a 60 de Vigo...”.

Ainda passamos pelo Cerquido e Ponte de Lima, ouvimos histórias de eremitas e anacoretas, eremidas e conventos (“a montanha santa”), amores proibidos e bruxas. E, antes de regressarmos, voltamos ao ponto de partida: Nossa Senhora do Minho. O final de dia está limpo e tranquilo, nas rochas descansamos com os olhos na paisagem. Não distinguimos o Sameiro (Braga), Santa Luzia é apenas o monte, e adivinhamos a direcção do Gerês. A vista está imperturbável. O mar brilha realmente ao fundo. Acreditamos que chega à Galiza.

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