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Alcoutim e Sanlúcar, unidas pelo Guadiana

Por Carla B. Ribeiro

Foi só por três dias, mas uma pequena ponte flutuante quebrou a fronteira que separa a portuguesa Alcoutim da espanhola Sanlúcar. Tudo em prol do contrabando, tema que pesa na história da região e que foi adoptado como mote de um festival que promete marcar o calendário anual da região.

Se há fronteiras que dividem, em Alcoutim parece ser a divisão que une esta localidade algarvia à espanhola Sanlúcar. E se a proximidade, em muitas partes do mundo, cria rivalidade, aqui transforma as duas pequenas vilas vizinhas, separadas (ou será unidas?) pelo Guadiana, numa grande, ecléctica e bilingue comunidade.

Em dia da primeira edição do Festival do Contrabando, que marcou o último fim-de-semana de Março e que teve como ponto alto a inauguração de uma ponte flutuante pedonal provisória a ligar as duas margens, há visitas de Estado. Mas, enquanto decorrem os discursos da praxe, o corrupio pela improvisada construção não cessa. A música de fundo, que parece saída directamente dos anos 1980, destoa do ambiente. Mas também ninguém parece ouvi-la. E o desfile de pratos de arroz de lampreia, de enguias fritas ou de javali estufado, pelas mesas montadas à beira-rio, rouba atenções aos discursos.

Enquanto isso, o tráfego na ponte parece congestionado (lembra-se das filas para o Pavilhão de Portugal na Expo’98? Os números apontam para que cerca de oito mil tenham atravessado a ponte durante o fim-de-semana). E, assim se exige do mote, no meio de tanta gente, não poderiam faltar contrabandistas: homens de saco de serapilheira às costas, mulheres de saia bem comprida e larga. Afinal, tudo serve para esconder o “material”.

“Queres tabaco?”, pergunta, em surdina, uma contrabandista portuguesa em contracorrente enquanto atravesso o rio a pé e ao mesmo tempo que combato uma certa sensação de mareio. Mas também há indigentes. “Tenho fome e tenho frio, venho ver se há contrabando aqui à beira do rio”, clama um pedinte cego, no mercado montado do lado espanhol, acrescentando: “Uma moeda para ver o que aqui se passa, outra moeda para voltar a não ver nada.”

Festival de emoções

Ao contrário, por exemplo, do ministro das Finanças, Mário Centeno, que, em visita oficial na terra onde o bisavô foi o primeiro presidente da Câmara após a implantação da República e perante uma plateia que reúne ex-alunos da sua avó, não resistiu a elogiar o espírito contrabandista que une as duas localidades, chego a Alcoutim numa visita vazia de afectos — além de achar a vila bonita e de há anos ter feito um passeio de descoberta, tanto natural como patrimonial, não tenho familiares na zona nem quaisquer recordações emocionais.

Já para as duas mulheres que seguem à minha frente, a passagem a pé, sobre as águas do Guadiana, é um rol de emoções. “Eis um momento que nunca pensei viver para ver”, desabafa uma sob o aceno concordante da outra. O colorido da feira, porém, não as surpreende: “As festas aqui sempre foram tão bonitas e animadas.” Mesmo a viver em Olhão há 50 anos, não perde “a oportunidade de vir quando há uma festa”.

Os figurantes — entre músicos e actores, foram contratados 58 profissionais — misturam-se com gente real, e nem a estes se perdoa nada. Os guardas-fiscais fazem questão de escrutinar todos os que cruzam a fronteira: “Tras algo? Ah, eso, puedes pasar, vamos!” A pronúncia não é fabricada: são actores vindos de Sevilha que vestem a pele dos agentes do lado espanhol.

“Jornal do dia?”, grita um ardina, atirando-nos, literalmente, com a edição de 1939 do Guadiana Alcoutenejo que exibe na capa uma alusão à 8.ª Volta a Portugal em Bicicleta, conquistada por Joaquim Fernandes (CUF). Na contracapa, o programa detalhado dos três dias de festival, com eventos em ambas as margens do Guadiana: exposições, teatro, cinema, gastronomia...

Traficar artes

Ao contrário do que acontece em muitos festivais, neste não há uma zona de feira. Toda a vila portuguesa é um mercado ao ar livre (do lado de lá da fronteira, o medo da chuva foi mais forte e a praça faz-se em recinto coberto). Há bancas de chouriças e queijos, doces regionais, mantas, ourivesaria, ervas e licores, artesanato regional. Entre estas misturam-se oficinas de antigos ofícios. Sapateiros, ferradores, caudeleiros, mestre em cestaria… Algumas destas vivem da perícia de mestres-artesãos; outras ganham vida com os actores que simulam as diversas artes.

A intenção da autarquia, explica Júlio Cardoso, do Turismo da Câmara Municipal de Alcoutim, passava por “apostar no artesanato ao vivo”, dando espaço a diferentes artes e artesãos. E há até uma tasquinha onde, entre as propostas, não falta rum de contrabando. Pelo meio há mesas de jogos tradicionais que divertem os visitantes, jogos de chão, brinquedos que lembram outros tempos. Além de música! Arruadas, cante, gaiteiros, ranchos… Vieram músicos um pouco de toda a parte, muitos provenientes de zonas onde o contrabando também foi durante anos uma forma de vida, criando assim um elo entre Norte e Sul do país.

Perto das 19h, o sol insiste em desaparecer no horizonte e sobre a vila tenta-se o silêncio. Não é total, mas o suficiente para que se arranje lugar para a poesia melancólica do Teatro Só como o espectáculo Sorriso. Uma história de um amor que nem a morte matou e que nos volta a remeter para a rota do contrabando que, além de fazer passar tabaco, álcool, café, roubava corações de uma e de outra margem. “Alcoutim e Sanlúcar estão unidas por muitos laços de sangue”, confirma Júlio Cardoso.

“O que se passa aqui?”, pergunta um casal inglês, visivelmente entusiasmado com o que tem testemunhado mas perdido no sentido. “É o Festival do Contrabando”, informo-os. “Smuggling?!” — acham que ouviram mal. “Sim”, confirmo, “para relembrar os tempos em que a fronteira entre Portugal e Espanha era desafiada por quem, à procura de uma vida melhor, recorreria ao mercado negro, e por isso é que foi inaugurada a ponte — para ligar os dois lados”. “Ali é Espanha? Ali?”, pergunta, atónita, a minha interlocutora.

Há muita gente que se passeia por aqui sem saber ao que veio. Mas a maioria está bem informada e, sobretudo a camada mais idosa da população, ajuda à festa com informações preciosas de como as coisas se passaram durante anos entre as duas margens. Com a conivência, diz-se, dos guardas-fiscais, que olhavam para o lado enquanto se atravessava o rio a nado a meio da noite.

Hoje, o contrabando entre as duas margens já se esgotou. Pelo menos, o clássico. Mantém-se o contrabando de afectos, de ideias, de artes. E é o contrabando destes que promete estar de volta no próximo Equinócio para a segunda edição de um festival que, a julgar pela afluência e pela animação, é já um sucesso.

 

A não perder

Museu do Rio
Guerreiros do Rio
Tel.: 281 546 179
Horário: aberto todos os dias, das 9h30 às 13h e das 14h30 às 18h, no Verão, e das 9h às 13h e das 14h às 17h, no Inverno.
Preços: bilhetes a 2,50€ (inclui acesso ao Núcleo Museológico de Arte Sacra, ao Castelo da Vila, à Exposição no Paiol, Núcleo de Arqueologia, Núcleo Museológico “Escola Primária”, Núcleo Museológico Dr. João Dias e Núcleo Museológico “Casa do Ferreiro” na aldeia de Pereiro).

Tirolesa transfronteiriça
Sanlúcar
Um slide que parte de Sanlúcar, Espanha, para aterrar em Alcoutim, depois de uma viagem a cerca de 70km/h num cabo de aço sobre o Guadiana. Para esta aventura, é necessário ter no mínimo 14 anos e peso máximo de 110kg.
Preços: um salto compra-se desde 18€.
www.limitezero.com

 

Onde ficar

Hotel D’Alcoutim
Avenida de Espanha, s/n
8970-052  Alcoutim
A antiga estalagem acaba de reabrir após um processo de requalificação e renovação. Sob a nova designação de Hotel D’Alcoutim, oferece 32 quartos, todos com varanda, nos quais é privilegiado um conforto sóbrio. Entre os serviços, inclui ar condicionado, lavandaria, serviço de quartos e acesso à Internet grátis. O pequeno-almoço, estilo buffet, com propostas frias e quentes, aposta também nas iguarias regionais.
Preços: uma noite reserva-se desde 40€.

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