Fugas - Vinhos

Valerá a pena correr o risco?

Por Rui Falcão

Não estará o sector do Vinho do Porto a querer simplificar demasiado aquilo que por natureza deveria ser complexo? Não será esta uma estratégia errada?

Tenhamos consciência ou não do facto, a realidade demonstra que somos um povo diferente, distinto nos hábitos, nas práticas e nas tradições, condicionado por séculos de isolamento face à ameaça latente que sempre pensámos poder um dia implodir de Castela.

Isolamento mais tarde potenciado pelo isolamento auto-imposto pelas prédicas e práticas do Estado Novo. Uma solidão que, apesar de esbatida por quase quatro décadas de integração europeia, se reflecte ainda em tantas das maneiras de ser portuguesa.

E se o aforismo é válido para a sociedade portuguesa como um todo, ele transforma-se num axioma ainda mais sólido quando o transpomos para o universo do vinho, espaço onde a individualidade e originalidade lusitanas são ainda mais explícitas. De tão habituados à nossa realidade, por vezes temos tendência para esquecer como somos diferentes do resto do mundo, apostando em práticas que nenhum outro país ou região sustentam de forma sistemática, sustentando práticas como a utilização de talhas de barro para a fermentação, prática milenar introduzida na Península Ibérica durante a ocupação romana e que continua a ser aplicada no Alentejo mantendo uma tradição que se perdeu em quase todo o mundo. e que hoje começa a renascer timidamente pela Europa fora com o advento das práticas sustentáveis da agricultura biodinâmica.

E o que dizer da perpetuação da tradição dos lagares e da pisa a pé, processo há muito desamparado no resto da Europa e do mundo, teimosamente conservado em Portugal? Ou da filosofia inerente às vinhas velhas de castas misturadas, tão comuns no Douro, consideradas como um verdadeiro anacronismo pelo resto do mundo que se entretém a dividir as castas por talhões separados, sem a alegre promiscuidade a que as castas são coagidas em Portugal. Vinhas misturadas que são mantidas com carinho num Portugal que tem tudo para se afirmar pela diferença. Mas é na riqueza das castas indígenas portuguesas, que caracterizam um património genético único no mundo, que assenta a maior das originalidades nacionais, no uso de variedades que nenhum outro país aproveita ou promove. Castas singulares que concretizam aquela que é a derradeira grande originalidade lusitana, a arte do lote, a arte de juntar diversas castas num só vinho, de associar múltiplas variedades procurando que o todo seja maior que a soma individual dos atributos de cada casta. Uma arte que, não sendo única no mundo do vinho, longe disso, é levada ao extremo em Portugal, conduzida com a mestria e sapiência de uma tradição que desde cedo entendeu o lote como sinal revelador do talento do enólogo para fazer vinho.

Por razões diversas, por condicionantes históricas e por questões de oportunidade, foi na região do Douro, do Vinho do Porto, que o conceito se afirmou de forma mais lógica e categórica, chegando mesmo ao ponto de regulamentar e obrigar o Vinho do Porto à obrigação do lote, impondo o condicionamento legal de ter de associar mais de uma casta na elaboração do vinho generoso.

Porque o tempo se encarregou de demonstrar que a estrutura, longevidade e complexidade do Vinho do Porto necessitavam do contributo de diferentes vinhas e de diferentes castas, dando corpo a uma erudição que nenhuma casta sozinha, por excelentes que os seus predicados se anunciassem, seria capaz de proporcionar.

O Vinho do Porto reúne, pois, duas das características principais que nos demarcam do resto do mundo, autorizando uma identidade única que o destaca entre os pares, firmado nas castas originais de Portugal e na arte de as saber associar numa só garrafa.

O assunto é pacífico e poucos se darão ao trabalho de contestar este axioma, sobretudo quando passamos grande parte do tempo a falar e a promover as nossas castas, de como são incomparáveis, e de como somos tão peculiares nesta lógica profundamente lusitana de emparceirar um conjunto alargado de castas no mesmo vinho.

O problema surge quando, em vez de seguir os preceitos de que nos vangloriamos, em vez de seguir a teoria que profetizamos e que pretendemos promover, começamos a estreitar os critérios, deixando de lado as especificidades que nos singularizam. O problema surge quando, ano após ano, declaração após declaração, reparamos que a relação de castas empregues nos lotes dos magníficos Porto Vintage começa a minguar, estabelecendo-se actualmente em pouco mais de três ou quatro variedades, relegando para o esquecimento anos de evolução e adaptação de um número incontável de variedades locais. condenando na passagem uma imensidão de castas a uma extinção anunciada. Na declaração 2009 de Vintage, pasme-se, existem mesmo alguns exemplos de Porto Vintage compostos por apenas duas castas, duas simples castas, duas pobres variedades sozinhas num lote reduzido à mais simples expressão, órfãs da companhia de outras variedades que assistam nas matizes, nos rendilhados e nos sombreados.

Como se comportarão estes Porto Vintage quando chegar o seu tempo de serem avaliados, num futuro a médio ou longo prazo? Poderão eles ostentar a mesma riqueza e complexidade que os seus antepassados, ou estaremos nós a condená-los a um ciclo de vida muito mais curto e unidimensional? Poderão duas simples castas, por muito boas que se afirmem nesse ano em particular, ser suficientes para assegurar a longevidade e complexidade que se esperam daquela que é a categoria mais especial do Vinho do Porto? Não estaremos nós a querer simplificar demasiado aquilo que, por natureza, é complicado e que merece reflexão profunda? Estaremos nós condenados, num futuro próximo, a ter de ver nascer os Porto Vintage estipulados exclusivamente no mesmo triunvirato de castas que hoje dominam os vinhos do Douro, Touriga Nacional e Touriga Franca, assistidas por uma pincelada de Tinta Roriz? Aquela que é a denominação nacional mais rica em história e em património genético de qualidade estará a aplicar ao Vinho do Porto a mesma receita que, infelizmente, tem vindo a aplicar aos vinhos do Douro, reduzindo um património valioso a pouco mais que uma vaga recordação do passado? Como escolha estratégica, pareceme um passo em falso.

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