Em prova cega, todo e qualquer vinho que fuja da normalização, da padronização convencional, é forçosamente depreciado. Os vinhos mais complexos, pela própria natureza da complexidade, são fatalmente prejudicados face a vinhos directos e monocórdicos. Alguém no seu perfeito juízo acredita que um vinho de Sidónio Sousa, um vinho do Buçaco ou o J da JMF, herdeiro natural dos velhos José de Sousa da casa Rosado Fernandes, poderá ficar bem considerado numa prova cega de vinhos jovens? Não e a experiência assim o confirma. Significa isto que os vinhos de Sidónio Sousa, Buçaco ou J da JMF são uma invenção jornalística, uma fraude inventada por quem só vê rótulos e não consegue fugir à ditadura dos nomes? Seguramente que não, porque a reputação de um vinho não se constrói numa década nem pela invenção de uns quantos jornalistas. Constrói-se assente em registos, em capacidade de guarda e em consistência, particularidades que só podem ser entendidas reconhecendo o contexto. Em prova cega estes vinhos irão ter prestações inferiores simplesmente porque são melhores e mais austeros, desenhados para o longo prazo, para um longo e nobre envelhecimento.
Ao juntar vinhos com ciclos de vida distintos, vinhos de evolução rápida com vinhos de longo curso, a prova cega patrocina arbitrariedades. Os vinhos mais simples, mais prontos e mais imediatos são promovidos, lesando todos os vinhos que necessitam de tempo em garrafa, vinhos mais austeros que se encontram ainda numa fase juvenil. Os vinhos de guarda, os clássicos intemporais, dificilmente poderão ser apreciados e valorizados em prova cega.
E, finalmente, o principal vício de forma, a ausência de contexto, condição inerente à prova cega. Despojado do seu contexto, despido do enquadramento histórico, destituído da cultura, do homem e da vinha, o vinho perde identidade, perde sentido, transformando-se num mero líquido inócuo. Os vinhos de maior personalidade e temperamento, os mais originais, são especialmente prejudicados pelos dogmas da prova cega. Imaginar um Bairrada ou um vinho de talha fora do contexto, desgovernado no meio de uma prova cega, na companhia de vinhos carnudos e comunicativos é um destempero absoluto. Porque para apreciar verdadeiramente um vinho é indispensável percebê-lo e conhecer o seu enquadramento.
Finalmente, um apontamento de ortodoxia moral. Não exigimos ao crítico de cinema um conhecimento profundo do realizador e actores principais? Não lhe exigimos conhecimentos legítimos e históricos para poder julgar e enquadrar o filme na sua cenografia? Por um instante que seja, aceitamos que um crítico literário desconheça o nome do autor do livro que está a ler para poder oferecer uma crítica mais “isenta”? Por que razão a crítica de gastronomia tem obrigação de conhecer o restaurante que critica, visitar a casa e conhecer o chef, fundamentando a sua apreciação numa visita directa e presencial, e negamos esse pressuposto ao crítico de vinhos? Por que razão assumimos, ainda que inconscientemente, que a crítica de vinhos é inferior, na acuidade e honorabilidade, à restante crítica especializada? A prova cega limita a vivência ao momento despindo o vinho de todo um contexto, um enquadramento, um passado e um registo histórico.