O que mais ressalta do silêncio e do ambiente adormecido é o cheiro intenso a madeira sublinhado pelos aromas fortes a coco e a baunilha. E percebe-se porquê. Nesta sala, os licores, incluindo o de maracujá, repousam em grandes pipas de carvalho-americano, de 5 a 10 anos. Assim é até serem despejados em garrafas de vidro ou porcelana e de seguirem para a sala de rotulação, de longe a mais importante da fábrica. Aqui, o olfacto mistura-se com os outros sentidos. Torna-se impossível não acompanhar o tilintar constante do vidro ou fixar os olhos nas garrafas que vão sendo cuidadosamente decoradas à mão por duas trabalhadoras. O progresso tem sempre, dir-se-ia, um toque de tradição, na fábrica de Licores Mulher de Capote, na Ribeira Grande, em São Miguel.
O licor de maracujá foi a primeira e também a mais emblemática aposta da Mulher de Capote, embora a marca Ezequiel já o fabricasse, desde 1936. A produção começou com cerca de dez pipas apenas. “Tivemos curiosidade em fazer este licor, pois era muito falado na altura e bastante apreciado”, afirma Idália Ferreira, a actual proprietária da fábrica. Uma oportunidade de negócio que enfrentou uma concorrência feroz.
Mas “o [seu] licor de maracujá destacou-se pela maneira como era envelhecido e também pela graduação alcoólica ser mais elevada”, recorda com orgulho. Mais tarde, segundo ela, tonar-se-ia mesmo no licor mais conhecido dos Açores, fazendo com que a marca concorrente tivesse problemas em manter o negócio. Daí a uma internacionalização mais consistente foi um passo. O licor de maracujá é, hoje, conhecido, em vários pontos do globo, muito graças à emigração portuguesa, em particular a açoriana, mas também a uma promoção eficaz. Na Europa, soma seis medalhas de ouro conquistadas em certames especializados.
Mas nem só do licor de maracujá vive a fábrica. São 16 os produtos feitos pela marca, como se pode ver em sala própria onde todos eles estão expostos. Uma montra que exibe garrafas de licor, cremes, aguardentes, vinho abafado e até compotas, sendo o creme de chocolate o mais recente, lançado no último Natal, com vista a aproveitar o excesso de leite da região.
Aliás, a chave do sucesso, defende Idália Ferreira, passa pela utilização de produtos naturais açorianos, de qualidade, como a polpa de fruta, o açúcar e o leite, das bebidas mais recentes às mais antigas como o anis. Este tem uma cozinha especial para colocação da planta no interior da garrafa e máquinas para a sua cristalização. E todo este processo feito ao pormenor faz com que a receita tradicional se mantenha praticamente intacta. Há mais de um século que o anis aquece a alma de muitos apreciadores, com largo contributo da fábrica de Licores Mulher de Capote.
A história da marca é também a história de Idália Ferreira e do marido. Emigrantes nos EUA, vieram para Portugal, em 1980, para continuar o negócio de vinhos da família. Lançaram as aguardentes e, posteriormente, foram experimentando os licores, primeiro o de maracujá, depois, o de ananás, o de amora e o de banana. “Já fabricávamos licores há muitos anos, apenas para consumo próprio e, como eram muito apreciados, decidimos apostar no negócio”, relata Idália Ferreira. “Com muito trabalho e uma pontinha de sorte”, admite a dona da fábrica, puseram os talentos da família a render.
Durante alguns anos investiram no mercado açoriano. Mais tarde, em 1998, começaram a exportar para os EUA e, no ano seguinte, para o Canadá. Já com algum mercado em 2000, decidiram construir novas instalações, o que ajudou à expansão da marca. Um ano depois, com a compra da fábrica Ezequiel – a grande concorrente – consolidaram, ainda mais, a sua posição no mercado. “Era a margem que precisávamos para expandir o negócio. Com a compra da Ezequiel, ficámos com uma gama de produtos que já têm um certo valor no mercado”, explica Idália Ferreira.
Em 2005, fazem a sua primeira exportação para Africa do Sul. Apostaram sobretudo no “mercado da saudade”, pois entrar nos restantes países, revelou-se, por vezes, muito difícil. “O Canadá tem uma [grande] resistência a produtos vindos do estrageiro, repetem sempre as análises ao licor, avaliam todos os rótulos e ainda nos mandam a factura”, admite.
Com a qualidade reconhecida e com os mercados conquistados, a fábrica de Licores Mulher de Capote investiu na própria garrafa. Inspirando-se na lenda em volta da figura que lhe serve de inspiração, criou garrafas temáticas. As garrafas são de porcelana e uma imagem de marca. “Foi pensando nas pessoas que nos visitam que apostámos neste tipo de garrafas. Após beberem o licor, podem utilizar a garrafa como peça decorativa e, ao mesmo tempo, ficar com uma recordação dos Açores.”
Daí os motivos pintados nas garrafas incluírem pontos turísticos micaelenses, como as Portas da Cidade ou a Matriz de Ponta Delgada. São 20 garrafas de porcelana diferentes, umas em miniatura e outras em tamanho-padrão. São outras tantas formas de oferecer ao turista a possibilidade de beber o espírito do lugar e de levar consigo uma recordação da sua passagem pelos Açores.
A associação da venda dos licores à indústria do turismo tem outra componente: a da visita às instalações que a fábrica organiza diariamente. Podem visitar-se todas as salas e conhecer todo o processo de fabricação, incluindo a rotulagem e o lugar de envelhecimento dos licores. O tamanho das instalações e seu ar limpo surpreendem os turistas que, após a visita, compram o licor de maracujá, o de amora, o de anis e mais que houvesse. Saem de sacos cheios, levando consigo também o aroma a coco e a baunilha do carvalho-americano, até onde a memória olfativa o permitir.
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Quem era a Mulher de Capote?
A Mulher de Capote caracteriza a mulher açoriana dos séculos XVII e XVIII. Segundo a lenda, o uso do capote é de influência flamenga e inspira-se na imagem da Virgem. Era utilizado pelas mulheres de famílias nobres, quando saíam à rua para ir à missa ou para outros afazeres. Quem vestia o capote mostrava também um vasto poder económico e social. O capote era composto por um manto de tecido grosso azul-escuro que cobria todo o corpo. Embora, as mulheres tenham abandonado o capote, actualmente é utilizado como parte integrante do traje da Universidade dos Açores e em figuras dos grupos folclóricos.
As moradas do licor
Além dos Açores (www.mulherdecapote.pt), este licores podem ser adquiridos em diversos espaços pelo país, casos de Lisboa, na loja Açores (Avenida Elias Garcia, 57) ou no Espaço Açores (que é gerido pela família proprietária dos licores, na Rua de São Julião, 58, na Baixa). Os preços (no Espaço Açores) variam entre os 11,50 € (garrafa normal) e os 25 € (garrafa de porcelana). As minituaturas que lhes corrrespondem podem custar desde 1,99 a 8,50 €. Diversas garrafeiras integram também alguns destes licores: por Lisboa, a Nacional, Napoleao, Manteigeira Silva e Manuel Soares ou Garrafeira Gourmet (Centro Comercial Colombo); no Norte, o licor de Maracujá Ezequiel integra a Garrafeira Tio Pepe (r. Eng.º Ferreira Dias, 51, no Porto) ou a Rota das Regiões (av.. General Humberto Delgado, 373, Gondomar); na Madeira, os licores estão na Garrafeira de Moisés Figueiras e Manuel Gonçalves (av. do Mar, 20, Funchal).