E se de repente, surgindo quase do nada e praticamente sem avisos prévios, o mundo sempre tão conservador e relativamente proteccionista da vinha e do vinho fossem agitados pela emergência de uma casta de nome estranho que ainda por cima tem uma sonoridade estrangeira?
Essa variedade tem por nome Alicante Bouschet e está hoje intrinsecamente conotada com o Alentejo, região onde se assume como o nome mais sonante das muitas castas que povoam a grande planície. Uma casta que hoje é não só profusamente conhecida como identificadora do sucesso dos vinhos desta região que representa quase metade do vinho consumido em Portugal. Perante tal realidade, poderá parecer estranho o intróito deste texto manifestando um misto de admiração e vaticínio sobre o sucesso futuro do Alicante Bouschet.
A crónica seria de facto estranha, e pouco relevante, se o Alicante Bouschet se mantivesse na condição actual da casta, se o Alicante Bouschet mantivesse unicamente o estatuto de estrela alentejana, sem repercussão e influência nas restantes regiões nacionais. A grande novidade, e para muitos motivo de surpresa, é que o Alicante Bouschet começa finalmente a mover-se para outras regiões nacionais permitindo enormes ganhos de uma notoriedade que começa agora, pela primeira vez, a deixar de ser meramente regional para passar a ter um efeito nacional.
Sim, o Alicante Bouschet está na boca de muitos graças ao contributo precioso que proporciona a muitos dos lotes de vinhos tintos alentejanos, desde os vinhos mais clássicos até aos mais jovens, rebeldes e ousados. Tanto pode entrar quase num regime de monopólio em vinhos tão sisudos como o Mouchão ou o Júlio B. Bastos como alegra e substancia vinhos tão profundos mas expansivos como o Esporão Alicante Bouschet ou o Casa de Santa Vitória Alicante Bouschet. Hoje a casta já nada tem a provar no Alentejo, tendo conquistado os corações e afirmado como uma das castas indispensáveis para o encanto e prestígio da região.
Curiosamente, a casta tem tido maior dificuldade em manter ou afirmar essa reputação fora do seu espaço natural no Alentejo. Mas são cada vez mais aqueles que se interessam pela casta, aqueles que a plantam em modo mais ou menos experimental e aqueles que começam a louvar os seus predicados. Até mesmo na região nacional mais rica em castas, o Douro, já se começam a sentir os primeiros efeitos do Alicante Bouschet. Com efeito, a casta começa a ganhar hoje um espaço e atenção crescentes, condições que nunca antes tinham ocorrido. Sim, é verdade que no Douro, aqui e ali, já se conseguiam descortinar pequenas manchas de Alicante Bouschet maioritariamente visíveis em algumas vinhas misturadas. Mas a casta nunca tinha sido verdadeiramente encarada com seriedade ou considerada como uma opção que acrescentasse valor.
De repente, depois de anos de abstracção em relação à casta, um número crescente de produtores de prestígio começa a olhar para o Alicante Bouschet como uma das soluções mais evidentes e promissoras para a região. E se muitos olham para o ela como uma eventual mais-valia para os vinhos do Douro, a maioria entende que a casta pode ser verdadeiramente relevante e decisiva no Vinho do Porto, aquele que é indiscutivelmente o vinho mais conhecido de Portugal e seguramente um dos mais relevantes do mundo.
A tendência de caminhar para o Douro Superior, também ela recente, a disposição para investir em vinhas nesta região, de desbravar terras para plantar em terrenos que eram virgens, poderá ajudar a explicar esta nova realidade. A entrada num clima mais seco, quente e severo, com mais horas de sol, mais calor e menos pluviosidade, aproxima esta sub-região das condições naturais de uma parte significativa do Alentejo. O tão propalado e temido aquecimento global, com colheitas cada vez mais extremadas, ajuda a justificar a aposta numa casta que já deu provas da sua mais-valia em climas também eles extremados. O facto de estarmos em terras maioritariamente virgens e onde as vinhas têm de ser plantadas de raiz com menos condicionamentos mentais também ajuda à introdução de uma casta com pouco peso histórico no Douro.
Por uma razão ou por outra, a verdade é que já são muitos os produtores de referência do Douro a dispor de Alicante Bouschet nas suas vinhas. Alguns assumem esta escolha técnica e estética de forma mais directa e descomplexada, enquanto outros preferem manter esta opção com uma postura mais discreta ou mesmo off the record. A maioria entende o Alicante Bouschet como uma alternativa viável ao Sousão, substituindo-se assim ao papel de casta provedora de cor, músculo e acidez que o Sousão interpreta na actualidade. A vantagem do Alicante Bouschet assenta numa capacidade corante superior, beneficiando do facto de ser uma casta tintureira, no vigor que empresta aos vinhos e, sobretudo, na frescura, intensidade e acidez estridente que é capaz de conceder à categoria rainha do Vinho do Porto, o Vintage.
O Alicante Bouschet pode assim preencher um espaço importante proporcionando cor, músculo e acidez numa só variedade, condição que poucas castas durienses conseguem suprir com a mesma destreza. Os números não mentem e basta olhar com atenção para as fichas técnicas de alguns dos vinhos do Porto Vintage mais sonantes, sobretudo das colheitas mais recentes, para perceber o empenho recente dos produtores durienses no Alicante Bouschet. Quem diria que, após décadas na condição de principal exportador de castas, de que tantas regiões portuguesas beneficiam, o Douro iria agora assumir o papel inverso, o papel de importador daquela que é a casta mais emblemática do Alentejo?