A dúvida, em jeito de reflexão filosófica, serve-se em forma de introdução à Casa da Passarella, mas nada melhor do que provar e saborear para poder concluir que aquelas são realmente terras acostumadas a produzir vinhos de rara qualidade e identidade. “Nunca se saberá se foi o clima, se foi a terra.
Se foi o talento das gentes que por cá passaram e das suas apaixonantes histórias e personalidades. Ou se terá sido, pura e simplesmente, sorte”. É assim, com esta retórica especulativa, que se faz a apresentação à centenária propriedade, mas nada como o contacto com a realidade, a obra de um visionário e a imponência omnipresente da montanha da serra da Estrela para se perceber que esta é mesmo uma parcela muito especial do Dão. E que nada tem de especulativo o trabalho que por ali se faz, antes se alicerçando na individualidade do território, num conhecimento centenário e na sabedoria das coisas simples que, como se sabe, é sempre o mais difícil.
A propriedade de Lagarinhos, no concelho de Gouveia e no sopé da serra, nasceu nas últimas décadas do século XIX, dando corpo ao sonho visionário de um filho da terra que fez fortuna no Brasil e que deixou depois, também, um apelido para a história dos vinhos e viticultura nacional: é com o nome “Santos Lima” gravado no rótulo que em 1893 surgem a primeiras garrafas dos vinhos da Passarella, o que indica ainda que a propriedade e os seus vinhos são mesmo anteriores à existência do Dão, cuja região demarcada surgiria quase duas décadas depois, em 1908.
Durante todo o século passado quase todos os vinhos, apesar de grandiosos, seguiam para grandes caves engarrafadoras, tal como acontecia com a generalidade dos produtores. Deram origem a vinhos como os célebres “P” da casa José Maria da Fonseca ou os Caves S. João das décadas de 60 e 70, em cujas galerias subterrâneas repousam ainda algumas garrafas que aí estão, frescas e vivas, para comprovar a sua invulgar garra e qualidade.
Um modelo que se alterou radicalmente a partir de 2008, quando teve início um processo de renovação com a entrada de um novo proprietário. Também um local ido nas ondas da emigração, mas que agora optou por se manter em terras suíças cuidando dos negócios e nem gosta de dar a cara.
O anfitrião é, por estes dias, o enólogo Paulo Nunes, que não consegue esconder o gosto e orgulho que constitui a gestão de um legado e um património vitivinícola com estas características. “Procuro apenas copiar. E da forma mais fiel que posso”, atira, logo à partida, como que a declinar qualquer tipo de louros pelos extraordinários vinhos que nos últimos anos levam a sua assinatura.
A ideia, percebe-se logo a seguir, é destacar o valor do património genético que tem em mãos, associado a um enquadramento específico e ao conhecimento centenário acumulado por gerações que se têm sucedido no cuidado da vinha e no trabalho de adega. Pelo meio, sim, um pouco de sorte, com a invulgar e apaixonante história com um judeu da Borgonha que durante a II Guerra se refugiou nas terras da Passarella. Trouxe práticas, técnicas e conhecimentos que foram absorvidos pelas gentes da quinta e que Paulo Nunes agora interpreta à luz do conhecimento actual.
Além das vinhas dessa época, a felicidade do enólogo – e de quem prova os vinhos, claro – está no facto de poder contar com a sabedoria empírica daqueles trabalhadores, ou de seus descendentes a quem naturalmente a transmitiram. Embora reformados, alguns estão ainda activos e é com eles que o enólogo procura interpretar a vinha e os vinhos, tirando também natural proveito das técnicas, equipamentos e conhecimento actuais.
“Foi com um desses homens que ainda há dias conseguimos catalogar as parcelas de vinha velha”, conta. Aos 82 anos, António Domingues, que sempre trabalhou na propriedade conseguiu, a olho e em pouco dias, identificar todas as castas. As cepas lá estão com as braçadeiras de diferentes cores para as identificar. Foram assinaladas 15 castas principais, havendo ainda várias outras dispersas. E para se ter uma ideia da riqueza e variedade genética diga-se apenas que a de maior densidade é a Jaen, mesmo assim não ultrapassando uma décima parte da vinha.
“O fugitivo” da Borgonha
Para lá de as poder trabalhar separadamente, a ideia passa principalmente por recolher material genético e aplica-lo noutras parcelas da propriedade. O que Paulo Nunes está a fazer é uma espécie de trabalho de arqueologia, que lhe permite perceber e replicar aquilo que ditou a qualidade e o carácter muito particular dos vinhos da propriedade. Uma conjugação entre a natureza e o trabalho dos homens que foi testada a longo de quase século e meio. E com provas mais que certificadas.
Uma das coisas que o intrigava quando chegou era o facto de existir na propriedade uma parcela de Pinot Noir e desta casta nunca ter entrado nos lotes de vinhos da Passarela. Foi através dos trabalhadores antigos que percebeu que o que nesse tempo fazia “o fugitivo”, o tal judeu da Borgonha, era aproveitar os mostos apenas para induzir o arranque das fermentações. Como é uma casta precoce a atinge plena maturação na região antes das habituais chuvas de final de Verão, era assim que contornava os seus efeitos perniciosos. Paulo Nunes usa agora esse Pinot para fazer microbiologia, o que lhe permite utilizar exclusivamente leveduras naturais nos vinhos da Passarella.
É também com base nesse conhecimento com os tempos acumulado que está agora a plantar uma nova vinha, com castas diversas e sem alinhamento nem aramação, tal como os trabalhadores lhe referiam e o confirmam os documentos antigos da propriedade. Uma vinha “em asterisco”, ou seja na qual é determinado o centro da parcela e aí plantada a primeira videira, sendo depois todas a outras dispostas em círculo a partir desse ponto central.
Outra particularidade é a utilização da uva Cão, uma variedade branca quase desaparecida e sobre a qual Alberto Vilhena, nos seus célebres ensaios do Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão, chegou a elaborar uma tabela fazendo corresponder a longevidade e capacidade de envelhecimento dos brancos do Dão com a percentagem (sempre mínima) de uva Cão que era utilizada no lote. Foi identificada nas vinhas velhas e foi com ele se procedeu à plantação de uma novos bardos para lotear segundo os ensinamentos do engenheiro Vilhena.
Respeito pela tradição
Apesar da evidente modernização das instalações e da tecnologia instalada com a remodelação operada a partir de 2008, o respeito pela tradição está também sempre presente no trabalho de adega. Como se não bastasse a grande imagem com o rosto do fundador da Passarella, Amândio d’Oliveira, pendurada na parede do fundo, mantêm-se também a tradição e serem as mulheres no comando, como sempre foi desde a fundação.
A actual adegueira é Lurdes Sousa, 48 anos e aqui empregada desse os 14. Tal como acontece com a generalidade os trabalhadores, o pai sempre trabalhou na propriedade e também a mãe por aqui ocupava grande parte dos seus dias em regime de jorna. Apesar das funções, Lurdes não prova e não bebe vinho “mas é absolutamente certeira apenas com a avaliação pelo nariz”, garante o enólogo.
Com as obras perderam-se os antigos lagares em granito, mas lá estão ainda a velhas cubas de cimento onde se continuam a fazer os vinha velha e Touriga. “E é sempre a cuba sete para os vinha velha e a 21 para o branco”. Porquê? Simplesmente “porque sempre assim foi e se assim era alguma razão deveria existir”, justifica Paulo Nunes corroborado pelo sorriso cúmplice da adegueira.
Vinhas centenárias e a marca do terroir
Nos cerca de cem hectares da propriedade a vinha ocupa pouco menos de metade da área total. As vinhas velhas correspondem a 4,4 hectares, às quais se juntam agora quatro parcelas centenárias exteriores à propriedade. Paulo Nunes explica que só foram alugadas depois de os seus proprietários de sempre terem assumido o compromisso de continuarem a trabalhá-las como sempre e apenas com a sua supervisão técnica.
Parcelas de uma beleza quase comovente, aconchegadas na parte mais baixa da aldeia e onde as velhas videiras frequentemente convivem afloramentos graníticos. Predomina a Baga, como sempre foi típico no velho Dão, e grande parte das cepas são ainda de pé franco, sendo que algumas devem ter mesmo bem mais de cem anos. Um trabalho de datação está já a ser preparado com o professor Nuno Magalhães, da Universidade de Trás-os-Montes, e a equipa de especialistas que se especializou na datação de oliveiras.
Quatro parcelas de reduzidíssima produção e onde foram já efectuadas três colheitas, de cerca de dois mil litros cada. O primeiro vinho, com o rótulo “O Fugitivo”, deverá ser lançado no final do próximo Verão e, pela impressionante pujança, vigor e exuberância que dá mostras a última colheita, promete ser mesmo coisa muito séria.
É das vinhas velhas que vêm os actuais topos de gama Villa Oliveira, branco e tinto, à base de Encruzado e Touriga Nacional, respectivamente. E também os Casa da Passarella “Oenólogo”, igualmente branco e tinto, ambos a partir de grande variedade de castas antigas da região num lote feito na vinha e consolidado ao longo dos tempos.
Pequenas produções sempre a rondar as sete mil garrafas anuais de típicos vinhos de terroir, o que resulta da específica conjugação das características da vinha e o seu enquadramento natural e levou a que o produtor fosse o primeiro da região a incluir nos rótulos a indicação de que os vinhos são produzidos na sub-região da serra da Estrela.
Nos Casa da Passarella são ainda engarrafados dois tintos: o “Abanico”, reserva, o “A Descoberta”, um colheita com Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro e Jaen, o lote característico do Dão. Há também o rosado “O Brasileiro” que resulta da fermentação sem peliculas de Touriga Nacional e Tinta Roriz.
A estes junta-se agora o “Enxertia”, um varietal com a casta que melhor se adapta à colheita de cada ano. Uma novidade que acaba de ser lançada com o Alfrocheiro de 2011, sendo que o próximo deverá ser com o Jaen da colheita do ano seguinte.
Para além destes vinhos de terroir, que se encontram apenas em garrafeiras especializadas e surgiram com a remodelação da propriedade, a Passarella continua a engarrafar o tradicional Somontes, destinado à grande distribuição. Mesmo estes, só saem para o mercado depois de um estágio mínimo de dois anos em garrafa em ambiente sem luz e à temperatura constante de 16/17º.