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Os singulares Czar de Fortunato Garcia

Por Pedro Garcias

Os licorosos do Pico já não têm a fama nem a importância dos tempos em que eram presença habitual na garrafeira de algumas cortes europeias. Mas, graças a produtores como Fortunato Garcia continuam a ser um dos vinhos mais distintos e singulares do país.

Há vinhos que, para serem percebidos na sua plenitude, nos obrigam a conhecer previamente as vinhas de onde saem. Se bebermos um vinho licoroso do Pico com 18 ou 19 graus de álcool sem qualquer enquadramento vamos ter a tentação de o comparar a um Porto ou a um Madeira, ambos fortificados, e, com alguma probabilidade, sentiremos alguma desilusão, porque não têm a doçura destes.

Mas, se já tivermos percorrido, por exemplo, o deslumbrante labirinto de pedra negra solta da Criação Velha, pousado em plateau junto ao mar com a ilha do Faial em frente, se soubermos como ruge o mar quando bate nas rochas e como uiva o vento em dias de temporal, se experimentarmos o assombro perante a forma como os picarotos descobrem terra no meio de um caos granítico para fazerem medrar as videiras e se soubermos que os verdadeiros licorosos do Pico não são aguardentados, aí já olhamos para o vinho de outra maneira. Porque para que as uvas atinjam aquelas graduações são necessárias duas coisas: sorte e coragem. Sorte porque, se no final da maturação começar a chover — como é frequente no Pico —, as uvas podem apodrecer. Coragem porque, perante essa forte probabilidade, ainda há quem arrisque  e espere que as uvas atinjam a máxima graduação possível, para que o vinho ganhe a riqueza e a profundidade que fizeram os brancos do Pico apreciados por papas, reis, imperadores e czares.

Sem esta contextualização nunca entenderíamos devidamente os vinhos que Fortunato Garcia faz no Pico, os Czar, brancos tributários de uma tradição longeva e que hoje não têm paralelo na ilha. Nem tiraríamos o melhor partido da fantástica prova vertical que este produtor realizou no início do passado mês de Fevereiro, no Pico. Além de professor de Educação Tecnológica, mergulhador, pescador, caçador e músico, Fortunato é também uma espécie de gaulês irredutível que insiste em fazer os vinhos da mesma forma forma natural que o pai os fazia, sem adicionar aguardente, açúcar ou leveduras.

Antes de mais: o vinho licoroso do Pico não é, como erradamente o nome sugere, um licor, mas também não é um vinho fortificado. É um vinho de uvas brancas muito maduras, maioritariamente da casta Verdelho (os vinhos de Fortunato Garcia levam geralmente Verdelho, Arinto dos Açores e Terrantez do Pico). Por ser feito com uvas muito maduras, a fermentação demora muitos meses e, no final, os vinhos podem atingir 17%, 18% ou, em casos excepcionais, até 20% de álcool. Os vinhos passam depois quatro a cinco anos em pequenas pipas, ganhando tons de oxidação e uma grande complexidade aromática e gustativa. Dada a elevada concentração das uvas, nem sempre a totalidade do açúcar é transformada em álcool.

Se, no final, o vinho ficar com até 15 gramas de açúcar é considerado seco; se tiver 16 a 30 gramas é meio seco; se tiver 31 a 45 é meio doce: acima de 45, é doce. Mas mesmo os doces parecem secos. Os mais ricos são os que resultam das uvas mais maduras. Só que colher uvas bem maduras é o grande desafio que se coloca aos viticultores do Pico. A pedra negra assume aqui um papel fundamental. As videiras são plantadas em fendas abertas no basalto e protegidas por um monumental reticulado de muros de pedra solta, as curraletas. Esta peculiar arquitectura permite proteger as videiras dos elementos, em particular dos ventos salgados do mar, e funciona também com uma verdadeira estufa. Porém, como chove com frequência no Pico, a possibilidade de as uvas apodrecerem é elevada. Para não correrem riscos, alguns produtores apanham as uvas com 15 ou 16 graus de álcool provável e juntam-lhe depois um pouco de aguardente, para fazerem subir o álcool final de vinho e também aumentar a quantidade de vinho, porque o rendimento das uvas menos maduras é muito maior. Só que esta prática não é legal.

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