Está discretamente instalado numa das dependências do antigo palácio do Conde de Vila Flor. Dois pisos traseiros da vetusta residência onde, nos anos de 1800, morou António Severim de Noronha, que ficou para a história como Duque da Terceira, são agora ocupados por um restaurante incomum na cidade, cuja principal característica é não ter gás. É este o cartão-de-visita desta adega moderna que exibe com orgulho um forno a lenha e uma grelha onde são confeccionados todos os pratos, desde as entradas às sobremesas, como fazem questão de sublinhar os proprietários. O barro e o ferro são os veículos eleitos para cozinhar as dezenas de propostas anunciadas na carta, apresentadas sob a forma de petiscos para partilhar, com acompanhamentos à parte. De facto a oferta é alargada, mas nem todas as referências estão disponíveis em permanência, o que pode gorar expectativas entretanto criadas.
Inicialmente o restaurante fazia parte da lista cada vez maior de locais que abrem apenas para jantares (sinais dos tempos), mas agora divide o serviço entre uma oferta ibérica de petiscos e tapas a partir das 14h, com a parte mais substancial da lista a estar disponível a partir das 19h30. Há sugestões interessantes e algumas que fogem ao corriqueiro, entre acepipes, carnes em geral e caça, peixe e mariscos, e também nas sobremesas. O espaço mistura o lado rústico dos arcos em pedra, sobreviventes do terramoto de 1755, que foram picados de forma barroca para serem valorizados com a elegância da iluminação indirecta, a surgir de forma telúrica. Em evidência estão igualmente os painéis de azulejo com motivos de flor-de-lis a formarem o padrão que reveste até meia altura as paredes centenárias. O piso superior, mais sóbrio, é reservado a grupos e provas de vinho, e tem uma conveniente entrada independente.
Chegados à mesa, as cadeiras maciças e confortáveis têm um útil recorte no espaldar para que as senhoras possam pendurar a mala, sem terem de a pousar no chão, um pormenor simples mas a ter em conta. Outro detalhe de relevo é haver uma garrafa de "água purificada da fonte das ratas", numa brincadeira alusiva à fama que o vizinho Chafariz d"El Rei chegou a ter devido a uma fase de menor salubridade das suas águas. No entanto, a histórica fonte (século XIII) chegou a ser local de disputas trágicas para se ter acesso ao precioso líquido, o que obrigou a câmara a legislar no século XVI acerca do uso de cada uma das suas seis bicas, dividindo os utilizadores por raças, géneros e classes sociais, sob ameaça de pena de prisão. Águas passadas. A da Adega Victor Horta é filtrada na casa e colocada na mesa de forma graciosa, um gesto ainda pouco vistos entre nós, mas que valoriza o serviço e a atenção ao cliente.
Ao fundo da sala, o estalejar das brasas propicia o ambiente para as provas. Da quinzena de entradas, experimentaram-se a "farinheira com ovos mexidos" (9,30 euros), de boa qualidade, cortada em pedaços, que ao ser salteada libertou a gordura necessária para envolver os ovos e os deixar gulosos. Os "peixinhos da horta" (5 euros), de boa fritura e sabor, infelizmente vinham frios, parece que por serem fritos em recipiente de barro sobre a grelha a execução é antecipada por questões de logística, o que também acontece com as pataniscas de bacalhau, retirando-lhes algum fulgor na hora de servir.
A "tábua de entrada" (15 euros), com dois queijos, três enchidos mais para o lado dos embutidos espanhóis, presunto, saladinha de polvo e de orelha, era uma selecção de qualidade regular, mas que beneficiou da preciosa ajuda do bom pão tradicional (2,10 euros) de que a casa dispõe. Antes de continuar, um olhar mais demorado sobre a cozinha aberta para a sala, que permite ver o raiar hipnótico das chamas, e uma ida aos lavabos para aferir mais um detalhe, ao constatar que existe água quente no lavatório. Parece banal mas não é, pois a maior parte dos restaurantes descura este ponto, e quando lá fora a noite está (mais uma vez) gélida, o aconchego deste pormenor é de "por maior" importância.
De volta aos acepipes, continuou-se com umas tenras "lulas na frigideira" (10,50 euros) servidas numa frigideirinha de barro preto, de sabor apaladado, com um suave toque picante no final, que foram casadas com o "esparregado conventual" (5,50 euros), com a nabiça a vir segada e não triturada, bem balanceado de vinagre, mas carente de uma pitada de sal. Uma panelinha de ferro trípode aterrou na mesa para consagrar o palato à "dobrada com feijão branco" (9,30 euros), guisadinho tradicional, apurado e competente.
Seguiu-se o "pato à medieval" (13,50 euros), assado inteiro demoradamente e trinchado em pedaços, que ficaram suculentos, a soltarem-se do osso. Os diversos condimentos "especiados" remetem para a época, mas sem exageros, a conferirem um sabor rico e equilibrado, a pedir pãozinho no molho. Outra das quinze hipóteses de carne é o "cabrito no forno" (20,70 euros), de tempero tradicional e a dar o seu melhor noutra execução de mão segura. As "batatas a murro" (3,90 euros), bem azeitadas e de boa estirpe, fizeram a ligação à parte da caça, com uma das seis propostas a ser o "veado no forno" (22 euros). A carne, mais uma vez saborosa e macia, a evidenciar uma marinada longa em vinho tinto, como é de praxe. A dose é que pareceu estranhamente escassa, a destoar das restantes.
Ganham os lisboetas
Nas bebidas, o proprietário que dá nome à casa é também enólogo e por isso puxa todas as brasas, neste caso, às suas vinhas, disponibilizando apenas seis lotes produzidos na região de Alenquer. Os vinhos, divididos por castas como "Fernão Pires & Arinto", "Cabernet Sauvignon" ou "Castelão & Aragonez", são tirados directamente das pipas que revestem uma das paredes da sala, e produzem um efeito visual de cariz turístico, mas que têm um bag-in-box no interior. Apesar de serem servidos em copos apropriados e temperaturas adequadas, a oferta é claramente reduzida. A opção comercial é discutível, mas fica atenuada pela boa qualidade média dos vinhos, encorpados e equilibrados, e os preços pouco especulativos (2,50 euros o copo e 8, 50 euros por 75cl). Victor Horta acrescenta mais um detalhe ao engarrafar na hora qualquer vinho da carta por cerca de metade do preço listado. Há ainda alguns espumantes e uma cerveja artesanal produzida na casa, que varia de estilo, e numa das visitas era preta, aromática q.b., de espuma suave, sabor delicado e corpo leve.
Nos doces, a temática e delicada "mousse de casta arinto" (3,90 euros), de ligeiro sabor vínico e enriquecida com passas brancas trituradas, é uma opção original a contrastar com um típico e bom "arroz doce" (3,50 euros), cremoso e alvo (sem ovos), ou o "pudim da adega" (3,90 euros), na clássica versão de ovos mas guarnecido com pão. A fechar, um datado "café de peúga" mantido quente numa belíssima cafeteira de inox, que não trazia a valorizada espuma (claro), mas cumpriu bem a função digestiva de trancar a refeição, e acrescentou mais um pormenor à lista.
O chef Viegas trouxe para terra a experiência acumulada em cruzeiros, segundo consta, e demonstra domínio do fogo e do tempo na qualidade dos pratos. O espaço está bem pensado, com um acolhimento simpático, e um serviço prestável e esclarecido. A experiência é ainda valorizada pelo tal conjunto de detalhes, que ajudam a criar memórias boas ou más, como uma da primeira visita: o fumo "sebastiânico" que invadia a sala e a roupa com odores indesejados e que quase arruinava todos os pontos positivos a enaltecer no espaço. A questão parece estar felizmente resolvida, o que indicia a vontade que há em dar a esta Adega Victor Horta a mesma longa vida que fez do edifício onde se encontra património classificado.
Ficam a ganhar os lisboetas e os turistas que por ali deambulam entre a Casa dos Bicos e o Museu do Fado e gostam de parar para petiscar numa casa portuguesa, antes de irem ouvir o fado clamar das entranhas de Alfama.
- Nome
- Restaurante Adega Victor Horta
- Local
- Lisboa, Santo Estêvão, Rua do Cais de Santarém, 8
- Telefone
- 218825082
- Horarios
- Segunda a Sábado das 14:00 às 19:00 e das 19:30 às 00:30
- Website
- https://www.facebook.com/Adega.Victor.Horta
- Preço
- 25€
- Cozinha
- Trad. Portuguesa