E se os últimos 200 anos fossem apenas uma anomalia na longa história da relação do homem com as máquinas? Se o período em que queimámos combustíveis fósseis representasse apenas um intervalo na regra de séculos do aproveitamento das energias renováveis? Vendo as coisas por esse prisma, os moinhos não são apenas testemunhos do passado. São oportunidades de futuro.
A tese é defendida por Jorge Miranda, antropólogo de formação, apaixonado pela história da engenharia e empresário por visão. Membro da direcção da Sociedade Internacional de Molinologia (TIMS, na sigla inglesa) e sócio-fundador da empresa Etnoideia, ele é testemunha activa da reactivação da dinâmica de conservação dos moinhos. "Mas sempre na perspectiva do seu uso. Não a reconstrução romântica, que gera gastos e não tem possibilidades de rentabilização. Reactiva-se para efeitos úteis, ligados à museologia, ao turismo rural, às energias renováveis..."
É o segundo golpe nas ideias feitas. Depois de nos apresentar os moinhos como ponte tecnológica entre o passado e o futuro, Jorge Miranda põe de parte a imagem bucólica do moinho como símbolo do viver no campo. Não. Os moinhos são para produzir riqueza e é por isso que a sua empresa nunca apresenta projectos de recuperação sem os enquadrar numa unidade de negócio.
"Os moinhos são brinquedos caros. Não se pode investir neles sem ter retorno... É preciso que eles ajudem a pagar as nossas reformas", enuncia, explicando como a paixão pela tecnologia do passado o levou a alargar os horizontes da sua actividade comercial. "À medida que ia dizendo às pessoas, empresas e autarquias como se podia aproveitar os moinhos, elas começaram a entregar-me os projectos de recuperação."
O resultado é uma actividade já com décadas. Começou em 1981, recuperando dois moinhos da Siemens, na região de Lisboa, e alargou-se a todo o país. Na sua qualidade de factores distintivos da paisagem, os moinhos podem servir para múltiplos fins, turísticos e "industriais", mas nem sempre as modas andaram de braço dado com a lógica. "Recuperar moinhos para habitação já foi comum, mas não é prático. As casas não ficam grande coisa...", comenta Jorge Miranda.
Ecologia e tradição
Para além de que se perde a essência da coisa. De vento ou de maré, de água ou movidos a força animal, os mecanismos que permitem aos moinhos funcionar são o testemunho de séculos de progresso tecnológico, de engenharia humana aplicada. "Olhar para o moinho como aquela coisa do saloio é perder o que realmente interessa. É preciso vê-los como o que permitia transformar energia em trabalho, o motor, nos tempos em que não queimávamos combustíveis fósseis."
Nas sociedades actuais, as preocupações ecológicas voltaram a trazer à tona virtudes que se julgavam enterradas nos museus e nas bibliotecas. E essa tendência "verde" alia-se a outra pulsão dos stressados e tantas vezes desenraizados habitantes das grandes cidades: recuperar os valores tradicionais. Encontrar formas de o fazer de forma equilibrada pode ser o segredo do negócio. "As pessoas suspiram pelo velho chouriço artesanal, mas não querem comê-lo todo. Querem duas ou três fatias servidas num prato gourmet..."
Passando isto para o mundo dos moinhos, o que nós queremos é ver um belo moinho a funcionar, integrado numa paisagem bem ordenada e onde passeamos com ponto de partida e de chegada, de preferência com "reabastecimentos" pelo caminho. "Quando procuramos o campo, não é pela natureza. É para nos reencontrarmos a nós próprios", diz Jorge Miranda.
Ou seja, os moinhos estão no ponto de encontro entre a excelência da tradição e aquela espécie de desespero da sustentabilidade com que estamos a aprender a viver. A boa notícia é que eles estão por aí. Em Portugal, os de água distribuíam-se por todo o território de forma semelhante (Beja era o distrito com menos, por razões óbvias), enquanto os de vento se concentravam em Lisboa, Leiria e Coimbra. Em 1962 ainda havia cerca de 1100 a funcionar no distrito de Lisboa.
Números que justificam outro facto pouco conhecido: a TIMS nasceu em Portugal. Em 1965. A sociedade e o termo - molinologia - que classifica a actividade de estudo e protecção dos moinhos foram criados por Santos Simões, responsável pela requalificação dos moinhos de Santana, no bairro lisboeta do Caramão da Ajuda. Mas, desaparecido o seu mentor, os portugueses esqueceram a causa. Até surgir Jorge Miranda, em 1997. "A primeira coisa que me disseram foi: "Português?! Até que enfim!" E depois explicaram-me a história toda."
No resto da Europa, estes mecanismos tornados obsoletos pelo paradigma energético que lançou a Revolução Industrial acabaram por ser vítimas das duas guerras mundiais. Mas estas passaram ao lado do nosso território. Temos, por isso, muitos à espera de serem resgatados com os olhos no futuro. E admirados. No Dia Nacional dos Moinhos (7 de Abril), e no fim-de-semana seguinte, cerca de 150 estarão de portas abertas. Descubra um perto de si.
Sete visitas que valem a pena
Moinho do Belmiro, Parque Biológico de Gaia: Uma cama entre cereais
André Morais vai repondo, com calma, os utensílios no sítio certo. A quelha e o tramelo já não estão como deviam, desde que o último grupo de visitantes invadiu o Moinho do Belmiro, no Parque Biológico de Gaia. A curiosidade e energia dos mais novos extravasa, muitas vezes, para o manuseamento incorrecto (e, por vezes, proibido) de tudo o que vão vendo. Mas, aparentemente, não há nada a fazer, excepto repor tudo nos devidos lugares. O moinho, cujas origens remontam ao século XVII, foi completamente restaurado em 1991, e está de portas abertas a todos os visitantes do parque.
A casa de pedra e janelas e portas avermelhadas situa-se nos terrenos da antiga Quinta de Santo Tusso - uma das que foi integrada no Parque Biológico. Quando não tem crianças a correr para cima e para baixo nos seus diferentes pisos, é um local sossegado, onde se ouve a água que faz girar as mós deste moinho de rodízio horizontal. Mas só quando é preciso, como durante os ateliers Dos cereais se faz a broa, que o parque organiza amiúde. No resto do tempo, limita-se a mostrar-se parado e sossegado, como mais uma das várias atracções do parque.
O Moinho do Belmiro tem a particularidade de possuir espaços mobilados que mostram, como uma fotografia a três dimensões do passado, como viviam os seus habitantes. Além dos equipamentos de moagem do milho e centeio (os cereais que moeu até 1960, ano em que o moleiro, conhecido como Zé Gordo, fez girar as mós pela última vez), o edifício preserva um quarto de dormir e uma cozinha, mobilados à moda do princípio do século passado.
A entrada no moinho faz-se pela eira coberta, onde está instalado um pequeno Museu das Alfaias. Daí, desce-se por alguns degraus para espreitar o quarto, e mais uns degraus para olhar a cozinha, dominada por uma lareira. A sala principal é, claro, a sala das mós, com quatro a funcionar segundo o método tradicional (água) e uma, mais moderna, movida a electricidade. Se se aproximar desta última, que possui a pedra do topo partida, é muito fácil ver como a pedra inferior está coberta de finos sulcos, completamente "picada", para que o cereal espremido e moído seguisse o caminho destes veios até cair para o chão.
O edifício tem mais um segredo. Na sala das mós, quatro ou cinco degraus descem até uma porta que se abre, ao nível da água, deixando ver, mesmo ali ao lado, o funcionamento do rodízio, a girar ao sabor da água. A tradição chama a esta espreitadela "a descida ao inferno", embora, ali, nada o sugira.
No Parque Biológico de Gaia, o Moinho do Belmiro é o único que está recuperado na totalidade, mas é possível espreitar mais dois exemplares, ainda à espera de um futuro mais activo. O Moinho do Chasco, de uma mó só, servia apenas a Casa do Chasco, ao contrário do do Belmiro, que era um moinho industrial. Quase em ruínas, o Moinho da Casa da Cunha de Baixo será o mais antigo do parque - sabe-se que já existia em 1600, e está hoje em ruínas. [Patrícia Carvalho]
Visitas: Parque Biológico de Gaia | 4430-757 Avintes | Tel.: 22 7878120 | www.parquebiologico.pt
Horário de Funcionamento: Primavera e Verão, das 10h00 às 20h00; Outono e Inverno, das 10h00 às 18h00. Ao fim-de-semana, das 15h00 às 17h00 é possível realizar visitas guiadas ao Moinho do Belmiro.
Parque Molinológico de Ul, Oliveira de Azeméis: Como comer um pão especial
Quando se começa a descer o caminho que sai do largo da igreja de Ul, em direcção ao rio, é impossível não ver o primeiro núcleo de moinhos do Parque Temático Molinológico de Ul e Travanca, em Oliveira de Azeméis. Este conjunto de três moinhos, conhecidos como Moinhos da Igreja, encaixa-se numa curva do rio, numa paisagem bucólica, que chama os visitantes até aos edifícios brancos, aninhados ao lado de um parque de merendas. O núcleo Museológico do Moinho e do Pão integra-se num projecto-piloto desenvolvido pela Câmara de Oliveira de Azeméis, desde o ano 2000, e que promete não parar por aqui.
O conselho para visitar os moinhos de Ul tem que incluir tempo para relaxar, levar uma merenda e, mesmo correndo o risco de encontrar o local cheio de gente, apostar numa visita ao domingo à tarde. Isto porque é neste dia que as padeiras de Ul invadem um dos espaços do núcleo de moinhos mais próximos da igreja, fabricando o tradicional pão da freguesia, que atrai compradores de várias regiões. São as padas e o pão de canela a sair do forno e as mãos a esticarem-se para o comprar e consumir, antes que arrefeça. Sandra Santos, responsável pelo projecto de recuperação dos moinhos diz que há a expectativa de alargar o tempo da feitura e venda do pão, nos moinhos, ao sábado à tarde, já a partir de Abril. O melhor é estar atento e ir espreitando o site www.moinhosdezemeis.com.
Dos três moinhos da igreja, que integram o Núcleo Museológico do Moinho e do Pão, um ainda funciona. Tem seis mós, das quais apenas uma gira e tritura o cereal, sempre que alguém põe a funcionar o rodízio horizontal, agitado pelas águas desviadas do rio Ul, ali ao lado. Um segundo edifício foi transformado em espaço museológico, e está recheado de artefactos utilizados pelos moleiros e carregadores da região. O terceiro funciona como auditório.
O conjunto destes três moinhos não esgota, contudo, o parque molinológico. Ao longo do rio, num percurso que os visitantes podem fazer a pé, ou de carro (a partir da localidade de Adães), existem três outros núcleos, um deles já em Travanca. Do total de onze moinhos, sete são propriedade municipal e quatro são privados. Sandra Santos garante que todos são visitáveis, até os privados, desde que se faça marcação prévia. Numa área rica em arroz (já ouviu falar nas marcas Saludães e Caçarola?), alguns destes moinhos são utilizados para o descasque do arroz, e moagem da casca, utilizada no fabrico de rações de animais.
Mesmo ao lado dos Moinhos da Igreja, do outro lado da ponte que é preciso cruzar para chegar a este núcleo, existem dois outros moinhos, conhecidos como do Souto, que se dedicam ao descasque do arroz. Estas duas estruturas não integraram a candidatura inicial aos fundos comunitários, que permitiu a reabilitação dos restantes, pelo que não estão ainda recuperadas. Os moinhos do Souto foram, entretanto, alvo de uma candidatura própria - mal surja a resposta positiva, começará a transformação. O objectivo é torná-los em oficinas do pão.
Sandra Santos avisa que o parque está encerrado às segundas-feiras e feriados, e que as visitas de grupo são permitidas, mediante marcação, às terças e quintas-feiras. Para as visitas livres, apareça quando quiser. [Patrícia Carvalho]
Visitas: Parque Molinológico de Ul | Ponte da Igreja | 720-604 Ul Oaz | Tel.: 256.664043 ou 256 683170 | www.moinhosdeazemeis.com
Moinho de Aboim, Fafe: O solitário de pedra
Jorge Miranda conta a história no livro Portugal - Terra de Moinhos. Entre 1923 e 1926, Daniel Gonçalves Pereira, um lavrador de Aboim, transformou em realidade o sonho de construir, na sua terra, um moinho de vento. Fê-lo com particularidades ainda visíveis e erros fatais que provocaram a sua destruição, menos de um ano depois de estar concluído. O pequeno edifício circular em pedra, com quatro velas, e que domina toda a aldeia, foi reconstruído entre 2007 e 2008, pela Etnoideia (a empresa de Jorge Miranda), que pôs em prática a sugestão da Junta de Freguesia de Aboim.
Para chegar a Aboim, no concelho de Fafe, é preciso subir por estradas onde nos aconselham a andar devagar por causa dos animais à solta (a nós, calhou-nos um grupo de garranos, que atravessou a rua mesmo à nossa frente) e onde os montes em redor estão cobertos de eólicas que, em alguns casos, estão tão perto das casas que parecem ir arrancar os telhados num movimento das suas pás. Junto ao moinho, o senhor Artur aguarda, de guarda-chuva na mão e sob um vento cortante, no topo do monte de onde se avistam as serras em redor e o rio Ave a serpentear, largo, ao fundo.
Se quiser ver o interior do moinho e ele estiver com a porta fechada, o senhor Artur é a pessoa que deve procurar, porque é ele quem guarda a chave. "Estou sempre por aqui", garante. Ajudado por dois homens, colocou as velas que permitem ver o moinho completo, como se estivesse pronto a funcionar. Pouco depois, as mesmas mãos retiram os panos brancos, para que o vento não as arranque e para que não se corra o risco de um acidente como o dos finais da década de 20, que deitou por terra (literalmente) o sonho de Daniel.
Lá dentro, o espaço é apertado. Por uma escada sobe-se ao primeiro andar, onde quase só há espaço para a mó, e o presidente da Junta de Freguesia de Aboim, António José Novais, de quem partiu a ideia de reabilitar o moinho, aponta as duas especificidades deste moinho de vento - o único moinho de vento da região, onde quem mais ordena são os moinhos de água. Talvez por isso, a mó que Daniel usou no seu moinho não era própria de um moinho de vento, mas sim de um de água. Esta é uma das razões que tornam o moinho de Aboim único. A outra é o facto de as vigas que sustentam a mó serem em pedra - um erro fatal, já que o material não aguentou a trepidação causada pelo movimento da moagem e partiu. Hoje, a viga danificada está emendada e protegida por mais pedra, graças à intervenção de Jorge Miranda.
No exterior, o senhor Artur e os seus ajudantes mostram como é possível fazer rodar o suporte em que assentam as velas, para que estas possam encontrar o vento, seja qual for a direcção de que ele sopra. E, ali em cima, ele sopra muito.
Para visitar o moinho de vento de Aboim pode procurar o senhor Artur ou, em alternativa ligar com antecedência para a Junta de Freguesia de Aboim, avisando quando irá aparecer. O mesmo deverá fazer se quiser visitar o pequeno museu em que foi transformada a antiga escola primária da aldeia, e onde é possível ver algumas imagens sobre a região e descobrir um pouco da história da aldeia. [Patrícia Carvalho]
Visitas: moinho, à partida, está aberto. Se chegar sem avisar, procure o senhor Artur Rodrigues, que mora nas imediações e é quem tem as chaves. Para uma visita mais segura, contacte com antecedência a Junta de Freguesia de Aboim (Fafe), pelo telefone 253 657 285. Este contacto é essencial para poder visitar o pequeno museu da aldeia, que encontrará fechado se não marcar previamente a visita.
São Pedro de Alva, Penacova: Uma azenha centenária ao pé do rio
Ao pé do rio Alva, há um moinho com "mais de 160 anos" que ainda funciona. Pelo menos aos fins-de-semana, um dos proprietários, Américo Dinis, faz questão de ir lá pôr a roda a girar e a mó a desfazer os cereais. Este moinho de xisto, que o moleiro de 59 anos crê ser "o único a funcionar da foz do Alva até à Ponte da Mucela", ergue-se na margem da praia fluvial do Vimieiro, em São Pedro da Alva, Penacova.
Qualquer pessoa pode visitar o moinho de água, e não paga nada por isso. Só é preciso que Américo Dinis lá esteja. Se assim for, abrirá com todo o gosto a porta para mostrar o interior a todos os curiosos que se interessem pelas histórias que guarda nas paredes de xisto, já várias vezes fustigadas pelas cheias do rio. Apesar de por dentro estar como estava há um século - as mós são as mesmas que existiam no tempo dos pais de Américo Dinis -, a roda, o eixo e o telhado foram restaurados.
Este moinho centenário tem uma roda vertical, erguida na parte da fachada virada para o rio. Ao lado, existe uma roda ainda maior, mas não pertence ao moinho. Antigamente servia para regar as terras. Ainda gira, mas já não cumpre a função que lhe coube em tempos.
Dentro do moinho, objectos antigos fazem-nos viajar no tempo. Mas, apesar do ar gasto, muitos são ainda usados por Américo Dinis. É numa daquelas balanças antigas com os pesos ferrugentos com que o moleiro faz as contas à farinha que produz.
Américo Dinis é, em conjunto com o cunhado, proprietário do moinho que já passou gerações na família. Hoje é ele quem entende do ofício. É ele quem vai para lá todas as semanas, pôr o engenho a funcionar. Tem uma das três casas particulares que existem na praia fluvial. Para além delas, há apenas um restaurante, o próprio moinho, o rio e muitas árvores a circundar o espaço, onde quase só se ouve o correr das águas. Todas as semanas, Américo Dinis sai de Coimbra, mete-se a caminho e lá vai moer cereais que, depois, podem ser transformados em pão, em broa ou simplesmente servir para alimentar "as galinhas".
"Antigamente moía todos os dias", recorda, enquanto põe o milho na moega de madeira. À medida que a farinha cai no tabuleiro, vai explicando que a mó que actualmente funciona mói milho e trigo. A que está ao lado, parada e adormecida por estar a precisar de "reparação", só mói trigo.
O moleiro ajusta agora a mó de forma a que, em vez de farinha, caia no tabuleiro milho partido. "É só regular aqui", explica, com o orgulho que às vezes os pequenos têm quando mostram o brinquedo preferido. No Verão, com a praia fluvial cheia, os curiosos que querem espreitar o moinho por dentro são muitos. Américo Dinis não leva nada pelas visitas. Para ele, isto é um gosto. [Maria João Lopes]
Visitas: Américo Dinis, tel.: 938247880
Moinho Nascente Siemens, Amadora: O velho mastro regressou a casa
Quando, em 1992, Jorge Miranda se lançou na tarefa de recuperar os dois moinhos de vento localizados no complexo da Siemens, na zona industrial da Venteira, Amadora, utilizou num deles, o Nascente, um mastro recuperado de uma ruína na zona de Negrais. Descobriu-se depois que a enorme haste de madeira estava, afinal, a regressar a casa, porque saíra daquele mesmo subúrbio de Lisboa umas boas décadas antes. Nisto dos moinhos, nem só as pás andam à roda: a história também é circular.
O mastro, a peça central do moinho, é de uma madeira exótica (macacaúba) e cara, muito resistente. Mas não ao fogo... Quando um raio atingiu o moinho onde estava instalado, a população apressou-se a apagar as chamas e a afagar a madeira de forma a devolver-lhe o aspecto saudável. E assim se salvou a parte mais valiosa do engenho.
Para um moinho de vento, ser atingido por um raio não era um azar, era uma probabilidade estatística. Devido à sua forma cónica, com projecções em forma de mastro, e à localização em sítios altos e expostos - para melhor "caçar" o vento -, os moinhos atraíam as forças mais destrutivas das trovoadas.
O povo, que os via como o sítio onde as sementes são desmanchadas, não deixava que as mulheres grávidas passassem à sua porta e quando isso acontecia com algum animal de gado doméstico havia que afastar o mau-olhado com rezas e sal. Entre os fenómenos físicos do clima e as crenças populares, a verdade é que estes edifícios muito especiais sempre se viram rodeados de uma aura de mistério.
Para se defenderem, os proprietários pintavam o terço inferior das paredes de uma cor que afastasse o Diabo - de acordo com os corantes disponíveis, eles são vermelho-óxido-de-ferro na região de Lisboa, azul-anil no Sul e amarelo-ocre a Norte. Esculpiam cruzes nos umbrais das portas e talhavam estrelas de David no forro do tecto (também era hábito as pessoas tatuarem-se com esses sinais).
Na região de Lisboa, os ventos constantes são de Norte/Noroeste e é, normalmente, nesse sentido que o mastro aponta as velas. Do lado contrário, invariavelmente, está a porta do engenho, uma forma de evitar que a passagem das velas complicasse o acesso. É claro que às vezes o vento sopra do quadrante Sul, mas esse é um vento instável, normalmente violento e pouco favorável ao trabalho lento, mas persistente, das mós.
Aqui, na Siemens, a mó pesa cerca de 300kg e a base é um colosso com mais do dobro desse peso. Mas ambas foram colocadas lá em cima à força de braços, usando os métodos tradicionais: cordas, roldanas e paciência. "Só assim é que tem graça", comenta Jorge Miranda, que destaca ainda o trabalho de mestre de construção de uma nova entrosga, a enorme roda dentada que transmite ao carreto (e este às mós) o movimento gerado pelas pás do moinho.
É um mecanismo fascinante, um motor cuja potência pode ser calculada em cerca de 20 cavalos e que tem no vento o seu combustível. Cá fora, as enormes hastes formam uma circunferência com 12 metros de diâmetro, equipada com quatro velas que mãos hábeis conseguem soltar e armar em dois ou três minutos. E assim se viaja no tempo, até ao tempo em que, em 1772, os moleiros Tomé Francisco e Manuel Roiz produziram "30 contos de réis" de farinha. [Luís Francisco]
Visitas: Etnoideia, www.etnoideia.pt | Tel.: 214159202; Jorge Miranda: 963979018 ou 965861567.
Moinhos da Anacom, Queijas: Como passar umas horas no campo
Quando o "sr. António" se senta cá fora, os carros que passam na estrada ali ao lado abrandam. A vista sobre o Tejo e o mar está do outro lado, mas é para este terreno que toda gente olha. Para o terreno onde a silhueta elegante do moinho da Moita ergue as suas hastes para o céu. À porta, o velho moleiro mantém-se imperturbável perante os assomos de curiosidade. O que, para ele, não é difícil: o "sr. António" é uma estátua.
Há muito que não há gente a trabalhar em permanência neste moinho situado nos terrenos da Anacom, a autoridade nacional para as telecomunicações, no alto de Queijas, concelho de Oeiras. Os moinhos da Moita e da Cruz foram recuperados em 2000, o segundo para poder funcionar como nos velhos tempos, o primeiro para fazer as vezes de auditório e centro de interpretação. Como ali ao lado há um parque de merendas à sombra de um enorme sobreiro, não surpreende que este seja um belo sítio para se passarem umas horas no campo.
A figura do "sr. António" representa um moleiro, elegante e imaculado no seu colete castanho. Pode parecer estranho, mas não é. Porque o moleiro não era bem um trabalhador braçal. Era assim uma espécie de capataz, bastas vezes responsável por vários moinhos. Quem dava realmente no duro eram os bandejas, os migrantes que chegavam a Lisboa vindos da província com uma mão à frente e outra atrás - a eles cabiam as tarefas mais duras e eram eles que viviam nos moinhos.
Era toda uma estrutura de produção, m a que assentava nos moinhos nesta era pré-industrial do século XVIII. Os proprietários (nobres, colegiadas, burgueses endinheirados) aforavam-nos aos foreiros, que os arrendavam aos rendeiros. Estes, normalmente, contratavam moleiros, que pagavam a bandejas para trabalharem nos engenhos.
Na Lisboa desta era, cerca de 80 por cento do trigo que se consumia era importado (e o mesmo se passa hoje). O cereal chegava em barcos e era transformado em farinha nas centenas de moinhos que proliferavam nas colinas dos arredores da capital do império, que por essa altura quase duplicou a sua população em poucas décadas, alcançando as 300 mil almas.
O negócio florescia. Os sacos chegavam cheios de grãos e saíam, mais pequenos, carregados de farinha. Virá dessa discrepância a fama dos moleiros, que o folclore classifica como ladrões. Bom, reconheça-se que muitos "metiam a mão" no produto, mas a verdade é que uma noção elementar de física permite perceber que o espaço entre os grãos é muito maior do que entre as partículas da farinha. Quantidades iguais pesarão o mesmo, mas o volume dos primeiros é muito superior.
Os moleiros eram vistos como espertos e tinham mesmo de o ser. Ou pelo menos carregar consigo a sabedoria acumulada pelos antepassados. Tinham de saber fazer contas às voltas das velas para perceber se a velocidade da mó não ultrapassava as 120rpm - mais do que isso começa a queimar a farinha. E tinham de saber ouvir o moinho para afinar o engenho ou evitar desastres. As vasilhas de barro que ornamentam os cabos junto às velas estão lá por uma razão: emitem sons diferentes conforme a velocidade do vento e a humidade relativa do ar. Sim, os moinhos cantam. [Luís Francisco]
Visitas: Anacom | Fernando Oliveira; Tel.: 21 434 85 00 | Etnoideia, www.etnoideia.pt
Tel.: 21 415 92 02; Jorge Miranda 96 397 90 18 ou 96 586 15 67
Lagar do Palácio do Marquês, Oeiras: Fazer azeite como no século XVIII
Diz-se que o palácio de Queluz é uma imitação de Versalhes e que o palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras, é uma cópia em escala menor do de Queluz. Diz-se muita coisa, mas há coisas na residência de um dos políticos mais famosos da nossa história que não têm paralelo com quaisquer outras em Portugal. Vejam-se os lagares, num dos extremos dos jardins: constituíam, no século XVIII, uma verdadeira unidade de produção agrícola. Decorada com mármores de Carrara e bustos de imperadores romanos...
Foi aqui que Jorge Miranda enfrentou um dos grandes desafios da sua carreira: recriar um lagar do tempo do Marquês. O resultado ainda não está acessível ao público (será inaugurado em breve), mas o mínimo que se pode dizer é que ficou impressionante. E é uma justa homenagem à visão do homem que, nestes mesmos jardins, organizou, em 1776, a primeira exposição agrícola e industrial de Portugal.
O moinho propriamente dito que aqui está instalado não será, por uma vez, a vedeta da companhia. Está recuperado e funciona, com a prestimosa ajuda de uma besta de carga que faça rodar o mecanismo instalado dentro de um tanque circular, para onde eram despejadas as azeitonas. As quatro mós colocadas em posição vertical percorrem o fundo em órbitas desencontradas, de forma a cobrirem toda a área disponível. Pequenas peças metálicas desviam os frutos triturados e empurram-nos para debaixo das outras mós, até se formar uma massa homogénea.
Este é um moinho de galgas de tracção animal, ou seja, uma atafona. E está ali porque lhe cabia o papel de antecâmara da verdadeira zona de produção do azeite: as duas gigantescas prensas que se alinham ali ao lado. A madeira branca do moinho não se aplica aqui, nestas compridas lanças de dez metros amarradas, num dos extremos, a pesos com duas toneladas. Aqui brilha o tom de mel do pau-rosa africano.
Originalmente, as madeiras utilizadas eram provenientes do Brasil, mas em tudo o resto foram respeitadas as dimensões e os métodos de trabalho do século XVIII. As lanças foram feitas, não de um único bloco de madeira, mas de um ardiloso puzzle de tábuas encaixadas de forma desencontrada e reforçadas por um exoesqueleto metálico. Uma gigantesca rosca talhada à mão une as duas peças (a lança e o contrapeso) e bastam dois pares de braços para a operar.
Quando a enorme pedra é erguida do chão, o seu peso puxa a lança para baixo e, cinco metros mais à frente, os recipientes porosos colocados sob a prensa recebem uma pressão de sete toneladas. O azeite é espremido e escorre por canais talhados na pedra até às vasilhas de barro onde era recolhido. O primeiro azeite, o virgem, era separado. Depois lavava-se tudo com água a ferver e o trabalho continuava, num ambiente escaldante e pesado - trabalhar num lagar era um verdadeiro inferno.
Lá fora, os canteiros alinhados, os azulejos, as estátuas e as pontes sobre a ribeira do Jamor. Escondida sob o palácio está uma nora, também já recuperada. O Marquês de Pombal, que o povo acusava entre dentes de lhe roubar água, pagou sempre os impostos que devia por ela e mandou construir um engenhoso sistema de transporte do precioso líquido. Curiosamente, com "fugas" estrategicamente colocadas de forma a regar os jardins do palácio... [Luís Francisco]