Fugas - Viagens

Luís Maio

Nas Caraíbas há vida além da praia

Por Luis Maio

As jóias do gótico espanhol são o chamariz, mas é sobretudo o doce deixar andar e o instinto festivo que atraem nesta cidade. Que é, por excelência, uma cidade after hours, que resume a face mais prazeirenta das Caraíbas. Só não se dá bem com visitas de excursão...

A cidade colonial de Santo Domingo, de traça espanhola, murada e sobranceira ao rio, lembra Cartagena das Índias. A cultura mestiça e festiva, que se testemunha nas suas ruas, faz, por sua vez, pensar em Havana. Já a vibração chique-tropical dos bairros modernos estará mais próxima da porto-riquenha San Juan. Santo Domingo tem um pouco dessas e doutras cidades das Caraíbas, mas não maior afinidade com uma delas em particular. Sem traços predominantes ou mais vincados, a capital dominicana oferece-se como uma síntese ligeira de toda a região das Caraíbas. 

É o tipo de cidade com que é fácil simpatizar. Mas, pela mesma ordem de razões, é daquelas que não provoca paixões, pelo menos num primeiro contacto. As excursões de meio-dia - modalidade de visita mais comum para turistas em férias de praia na República Dominicana -, dão o lamiré, mas são manifestamente insuficientes para lhe fazer justiça. Em toda a sua cordialidade e moderação, Santo Domingo exige disponibilidade - porventura mais do que é usual nas Caraíbas - a quem quiser descobrir os seus verdadeiros encantos.

Despertar ao anoitecer

Não se vê vivalma nas ruas, durante a maior parte do dia. Até que o sol se põe e uma leve brisa se insinua, contrariando o pesado bafo tropical. É a altura do dia em que a vida renasce, no centro histórico de Santo Domingo. Como no Sul de Espanha e, na verdade, como nas Caraíbas. Os habitantes do velho casario colonial sacam de pequenos bancos em madeira e vêm sentar-se à porta, a tagarelar e a ver passar os outros. À esquina, ou ali mesmo na porta ao lado, há certamente um colmado, o estilo de botequim que é meio mercearia, meio bar. A clientela vai lá dentro abastecer-se para depois se instalar cá fora a consumir, socializar e eventualmente dançar. 

Mas os sítios mais populares ao fim do dia são mesmo as praças, que modulam a grelha rectilínea de 16 quarteirões da Cidade Colonial. O crepúsculo é hora de ponta na Praça de Cólon, a da Catedral e também dessa paradoxal escultura que faz contracenar Colombo com as suas melhores vestes de colonizador e uma seminua Anacaona, heroína dos índios Taíno, exterminados à chegada dos espanhóis. Ao seu redor há rapazes que ensaiam acrobacias hip hop, raparigas de uniforme escolar, provavelmente a comer gelados, ases do dominó que se enfrentam nos bancos de jardim com uma multidão de mirones em redor, pais a correr atrás da descendência, que se entretém a perseguir os pombos, gente mais aperaltada que abanca a tomar o aperitivo nas esplanadas, enquanto contempla os últimos raios solares pintando de dourado as paredes calcárias da catedral. 

A Praça de Colón rivaliza em animação com o Parque Independência, centrado no mausoléu onde repousam os heróis da independência, na ponta oriental da cidade antiga. O caminho entre as duas praças faz-se pela El Conde, única rua pedonal do perímetro colonial, passerelle onde Santo Domingo inteira gosta de desfilar e ir às compras. Até aos anos 80 e ao aparecimento dos malls (centros comerciais) da cidade nova, El Conde era a principal artéria comercial da cidade, uma espécie de Gran Via dominicana - parentesco, de resto, acentuado pelo perfil dos edifícios de três-quatro andares, entre a Arte Nova e um certo Classicismo franquista. Hoje os grandes armazéns estão devolutos ou repletos de artigos fora de prazo, mas essa decadência dá-se bem com as latitudes tropicais e sobretudo com a socialização espontânea que os dominicanos gostam de celebrar na via pública. 

Quando a noite se instala, a vida transita para outros palcos urbanos, nomeadamente para a Praça de Espanha, a do Alcazar e do Arsenal. O casario pintado de cores festivas frente ao palácio alberga uma série de restaurantes com esplanada (Ângelo, Rita"s Café, Pat"e Palo), algures entre o chique e kitsch "Miami style". São muito frequentados por casais instantâneos, formados por forasteiros, quase todos pálidos, barrigudos e cinquentões, e por beldades locais, quase todas negras, jovens e esculturais. Aos fins-de-semana deixam de dar nas vistas, mesclando-se com as legiões de dominicanos que desembarcam na praça, atraídos pela promessa de baile e música ao vivo, no palco montado ao lado do palácio. 

A Cidade Antiga é ainda uma aérea residencial, mas algumas das melhores moradias têm sido convertidas em restaurantes, bares e afins. Uma morada que vale a pena reter é a da Casa de Teatro (Arzobispo Meriño 110), restaurante e centro cultural, onde todas as noites há alguma coisa a acontecer, desde concertos de jazz latino a ciclos de cinema e exposições de artesanato de autor. Não é, porém, na zona histórica que a noite de Santo Domingo é mais movimentada e depois da meia-noite todas as atenções se voltam para Aquel Lado, assim chamado porque se situa na outra margem (oriental) do rio Ozama. Aqui, em especial nas avenidas Venezuela e São Vincente de Paul, encontra-se todo um sortido de locais de animação nocturna (Cool Bar, Eclipse e House Drink são dos mais badalados), onde melhor se dança merengue e bachata, os ritmos característicos da República Dominicana. 

Para acabar a noite há sempre os colmadonescolmados em versão XL, que não têm mercearia, mas onde não falta o álcool e a música (Puerto de la Misericórdia é o líder deste campeonato). Há mesmo um Car Wash (na esquina da Maximo Gomez com a 27 de Fevereiro) que à noite se converte num vibrante salão de festas. Aqui dança-se num enorme espaço coberto, mas sem paredes, até quando o resto de Santo Domingo já vai no segundo sono.

Casinos e museus

dancing-car wash destoa um pouco em Gazcue, bairro moderno e chique, a oeste do centro histórico. É outro mundo, ou pelo menos outra cidade. O Malecón, a marginal que primeiro se chama Presidente Billini, depois Avenida da Independência e finalmente Av. George Washington, é bordejado por hotéis quase todos em torres monolíticas, quase todos com casinos, alternando com restaurantes e discotecas. Pelo meio fica o Adrian Tropical, restaurante de cadeia que não impressiona pela cozinha mas tem a grande vantagem de ser o único que fica mesmo em cima do mar, atraindo uma clientela jovem e sofisticada, algo de semelhante ao jet set dominicano. 

Mais para o interior, Gazcue é uma combinação de edifícios públicos, villas privadas e condomínios fechados. Nota-se pelas elegantes vivendas Belle Époque que foi para aqui que as classes altas se transferiram quando a cidade transbordou das muralhas, em finais do século XIX, enquanto a traça modernista dos ministérios revela a chegada posterior das infra-estruturas governamentais. Também se percebe que as torres de habitação são um fenómeno mais recente, ou que Santo Domingo só começou a crescer em altura à entrada do novo milénio. 

A Praça da Cultura, que remata Gazcue a noroeste, é o coração monumental da cidade moderna (que depois se estende para oeste, no bairro chique residencial de Piantini). Aí se encontram sediados três dos principais museus da cidade, que valem tanto pela sua arquitectura brutalista como pelo respectivo recheio. É um excelente lugar para começar ou acabar qualquer visita a Santo Domingo, quando estes museus contam cada um à sua maneira a história da cidade e nessa medida iluminam a sua actualidade. O Museu do Homem Dominicano reconstitui os hábitos e costumes dos índios Taínos, incluindo a causa do seu rápido extermínio, justificado pela sua crença genuína numa outra vida melhor. A chegada dos colonizadores espanhóis, dos escravos africanos e a cultura mista resultante são depois ilustradas, destacando-se a prodigiosa colecção de máscaras de Carnaval de toda a ilha.

O Museu Nacional de História e Geografia, apesar da designação, reúne memorabilia associada ao ditador Trujillo (1891-1961), incluindo o carro em que foi assassinado. Trujillo, descobre-se no vizinho Museu de Arte Moderno, foi o principal impulsionador da arte dominicana do século XX, ao acolher os refugiados da Guerra da Espanha, na altura com a intenção de "branquear" a população da ilha. Desse contingente de expatriados saíram os fundadores da Escola de Belas Artes e um punhado de artistas que, naturalmente, criaram obras de forte contestação ao regime, inaugurando uma corrente de arte interventiva, ainda hoje dominante na República Dominicana. 

Uma visão mais abrangente da arte dominicana requer uma visita ao Museu Bellapart, a maior colecção privada do país, que tem a particularidade de se encontrar no quarto piso da sede e salão de exposições da marca de automóveis Honda (www.museubellapart.com). O edifício é outra delícia para os amantes de arquitectura brutalista, que poderão aproveitar a proximidade para dar uma espreitadela à cúpula esférica do Palacio de los Deportes, pura colheita de 1974.

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