Fugas - Viagens

O Morgenrot é a grande instituição do “paga conforme podes” da capital alemã

O Morgenrot é a grande instituição do “paga conforme podes” da capital alemã Kim Keibel

Em Berlim, entre, coma, beba e pague o que quiser (ou o que puder)

Por Maria João Guimarães

A filosofia é diferente mas o resultado é o mesmo: em Berlim há vários cafés e restaurantes em que não há preço fixo. Nuns a ideia é que se pague o que se acha que vale o serviço, sem indicação nenhuma de preço; noutros há um leque de preços e a ideia é que quem ganha mais paga mais e quem ganha menos paga menos.

Entra-se no Perlin e dá-se um euro para um mealheiro que é uma cara de madeira, de língua de fora, estendida. A moeda cai com estrondo e a partir daí é-se convidado a levar um copo e provar os vinhos em exposição. Pode-se também comer uma refeição. Ao sair, deixa-se numa grande taça de vidro vermelha o pagamento. Não há preços fixos, ninguém faz contas, nem sequer uma pista, uma indicação. Paga-se o que se quiser. 

O Perlin faz parte de um grupo de três bares-restaurantes perto da Zionskirche, não muito longe da Rosenthaler Platz, em Berlim. Todos têm o mesmo conceito: não há um menu, não há tabelas de preços e as pessoas pagam o que acham que a refeição valeu.

Entro no Perlin num dia de chuva, cedo. Como não reservei mesa, seria complicado chegar mais tarde. O restaurante-bar ainda está quase vazio, as velas ainda estão a ser acesas, mas já está um ambiente acolhedor. Espero para ser atendida e recebo a explicação sobre o modo de funcionamento - um euro de depósito para o copo, e a partir daí posso comer e beber e pagar o que achar que é justo. Há alguma indicação de preço?, pergunto. "Nenhuma." Nenhuma linha de orientação? Nenhum valor mínimo? "Não."

Fico a sentir-me um pouco perdida. E, claro, pergunto-me se este sistema resulta. "Nós acreditamos em Deus, tu não?", pergunta-me Reinhard Hennig (que é também quem tira as fotografias dos espaços). Parece estar a brincar com um meio sorriso. Fico na dúvida.

Deixado o euro, começo a rondar a mesa dos vinhos, enquanto espero a comida. Decido-me por um branco, um Riesling. Não é mau, mas não fico impressionada.

Hennig comenta que os vinhos brancos alemães são muito secos e mais ácidos, muito frutados, talvez de mais para o gosto português. A razão não me convence. Decido passar para outro branco, um Pinot-Riesling, e continuo com a mesma impressão - não me parece mau, mas também nada de especial.

Sento-me e enquanto vou tentando fazer um juízo sobre o vinho, chega uma sopa de abóbora, bastante picante, com coentros frescos cortados, saborosa. Começa a dar música de Boris Vian (J"suis Snob, parece-me apropriada), e comecei logo a ficar mais bem-disposta. Espreito para a cozinha e vejo Mariano Goni, o cozinheiro de origem argentina, um dos sócios do restaurante - o outro é um alemão que tem vinhas na Baviera, a maior parte do vinho vem de lá - a cortar uma abóbora. Goni é o mito do restaurante, um cozinheiro-artista que costuma entreter quem vem jantar, e é também quem desenha os rótulos dos vinhos "da casa". Mas isso deve acontecer mais tarde, porque agora está ocupado na cozinha, embora ainda apareça na sala uma ou outra vez, de riso alto e camisa curta, abotoada a deixar quase ver o umbigo. Não fica muito tempo.

Mudo de vinho, desta vez para um tinto que ouvi uma outra cliente elogiar - mas continuo a não achar nada de especial. Tento outro tinto, um Beaujolais. Não me consigo decidir: não acho bom nem mau.

Chega o prato principal (uma alternativa feita para evitar a carne no prato desse dia -no Perlin há um prato por dia), cuscus com vegetais, saborosos, também um pouco picantes. Ao lado uma salada generosa, tomate, alface, pepino. 

Enquanto como, é inevitável começar a fazer contas ao que pagar. Berlim não é uma cidade cara para comer. 20 euros será justo? Não bebi quase vinho - mas a verdade é que experimentei vários. Comi uma boa refeição, bem cozinhada e com quantidades generosas - mas com ingredientes que não custariam muito. Tive o privilégio de jantar quando o restaurante estava quase todo reservado - mas por outro lado prometi que demoraria pouco por causa disso, e vou sair depressa. Quanto vale o que comi, o serviço, o local, a liberdade de ir escolhendo e provando, o ter sido cozinhado um prato de propósito para mim? Não sei. Penso em 25 euros, no total - parece-me suficiente. Na carteira só tenho notas de dez. Pergunto a Reinhard Hennig, que está a tratar do atendimento no bar, se é possível ter troco: dou uma nota de dez e peço cinco de volta.

Recebo um olhar incrédulo. Obviamente, planeava deixar o resto do dinheiro na taça vermelha, mas parece que não fui compreendida. Ainda ponho as notas na taça, esperando que ele repare, mas Hennig já virou costas. Fico com uma sensação estranha - pode parecer que paguei apenas cinco euros, quando na verdade paguei 25. Começo a achar que paguei de mais. Ainda agora, a escrever o artigo, tenho essa sensação.

Saio assim do Perlin com alguma frustração por alguém pensar que me passaria pela cabeça pagar apenas cinco euros. Tinha ouvido Hennig queixar-se dos espanhóis que bebiam, comiam e não pagavam, e penso se não terá ficado a pensar o mesmo de mim.


Os espanhóis caloteiros

Mas trabalho é trabalho e ainda quero ir ver outro local dos mesmos donos, o Fra Rosa, do outro lado da praça da igreja. A chuva já passou e uma série de jovens bebem vinho na esplanada, já com mantas a aconchegarem-se do frio.

Ainda falo brevemente com Paula Bogati, que está ao balcão (e é também artista, como parece ser quase toda a gente que trabalha nestes bares) e me diz que aqui já dão "uma orientação" do preço, apontando para os 20 euros por pessoa pelo menu, duas entradas, prato principal e sobremesa (chama-lhe uma refeição de quatro pratos). Isto acontece depois de ter saído um artigo na revista da  easyJet dizendo que se podia comer e beber no FraRosa pagando apenas um euro. "Agora explicamos melhor o conceito", diz. "Só queremos que seja pago um preço que mostre respeito e seja justo. Não é assim muito difícil", comenta. E nos sete anos em que os bares-restaurantes têm estado abertos nunca houve problemas, até à publicação desse artigo na revista da companhia low cost. "Principalmente com espanhóis, foi um pouco complicado"; comenta Paula Bogati. "Vinham, comiam e não pagavam nada. Mas agora começámos a explicar e as pessoas percebem", diz.

Saio e sento-me na mesa dos jovens com as mantas. Birgit, 31 anos, acha um bom conceito, este de não haver preço fixo. "Há pessoas de outras nacionalidades que acham estranho, mas a mim nunca me passaria pela cabeça não pagar. É como o metro de Berlim, está totalmente aberto, mas eu nunca sonharia em andar sem bilhete", exemplifica. "Ficaria sempre com má consciência se não pagasse."

Os amigos, Katja e Robin, concordam. E quanto vão pagar? "Ainda é cedo", sorri Robin. "Vai depender de quanto bebemos e de quanto temos no bolso", explica. Mas não têm uma ideia? "Devemos pagar entre 3 a 4 euros por copo", diz Birgit. "E tens de provar a comida, é mesmo boa", garante. Mas seria preciso reservar - o restaurante está cheio e não há mesmo lugar para mais ninguém.


Um café de consumo ético

Um conceito semelhante, mas ao mesmo tempo radicalmente diferente, é o do pagar conforme a nossa situação financeira. O modelo é experimentado também em Berlim, no brunch de fim-de-semana de pelo menos dois cafés, o Morgenrot (na Kastanienalle, não muito longe do FraRosa e do Perlin) e no Café Vux.

Comecei pelo Café Vux, em Neukölln, a nova zona prestes a "gentrificar-se" (com muitos jovens residentes a aproveitar as rendas mais baratas do que noutros bairros cool de Berlim) mas ainda a anos-luz de Kreuzberg. Urte Böhn, uma das sócias do Café Vux (o outro sócio é o seu marido brasileiro, o que explica o acento no "e" de Café e o nome de alguma da comida, como o bagel "sol vermelho"), cabelo curto e braços (muito) tatuados, está no balcão branco, ao lado de uma vitrina com bolos de aspecto delicioso.

O café está agora a fazer um ano e instituiu os brunchs de domingo "paga o que podes" - "entre 6 e 9 euros", diz. Quem ganha mais e come mais paga mais, quem ganha menos e come menos paga menos, explica. "Aqui há muita gente que não tem tanto dinheiro", diz Urte sobre a zona multicultural onde os jovens artistas ou profissionais liberais se misturam com muitas pessoas dependentes de prestação social (Neukölln é uma das zonas de Berlim com mais altos números de desemprego). 

Esta mistura parece resultar no brunch do Café Vux. "Algumas pessoas pagam o mínimo, outras o valor mais alto... Sinceramente, nunca fiz contas, mas a média final deve estar no meio, e tem sido suficiente e justo para nós", garante Urte.

"Faz parte do espírito de consumo ético" do café, continua. "Só temos produtos vegan, não estamos aqui para fazer muito dinheiro..." É uma filosofia que, no entanto, não se nota logo que se entra no Vux, um espaço branco e claro, muito bem decorado, com candeeiros antigos, flores e velas nas mesas, uma parede com molduras pintadas de branco, com telas brancas ou espelhos. Só olhando para o tipo de folhetos no aparador, ou vendo com atenção a comida na vitrina, é que se notam os assuntos dos folhetos ordenadamente colocados numa espécie de aparador: lojas vegan, revistas de direitos gay, por exemplo.


Pagar mais pelos que ganham menos

Bastante diferente é o Café Morgenrot, a grande instituição do "paga conforme podes" de Berlim, com oito anos de experiência em brunchs de fim-de-semana, na Kastanienallee, Prenzlauer Berg (tal como o Perlin e o FraRosa, não muito longe da Rosehthaler Platz). Não tem um ar ordenado como o Café Vux: logo no balcão, entre uma parafernália de panfletos, vêm-se avisos militantes: "zona livre de patriotismo" ou "preto-vermelho-amarelo fica lá fora" (referência às cores da bandeira alemã).

Um pequeno papel em cada mesa explica a filosofia do lugar: "O pequeno-almoço custa entre e oito euros - tu decides quanto queres pagar. O preço deve estar relacionado com a tua situação financeira, e não com a quantidade que comeste". Assim, "as pessoas que podem pagar mais podem pagar mais para que as pessoas que não possam paguem menos".

brunch é delicioso: há hummus, pastas com wasabi, saladas, tudo vegan, sem usar produtos animais. Há muito por onde escolher para barrar pão, duas saladas, mozarellas de soja, e duas grandes saladas para quem tiver mais fome. No final, há fruta e uma deliciosa mousse de chocolate.

Entre os clientes, há uma grande predominância de jovens "alternativos", do punk clássico (roupas pretas e com ar gasto, maus cortes de cabelo), às famílias neo-hippies (mãe com cabelos longos e escorridos, pai com dreadlocks numa grande coroa no cimo da cabeça, desafiando a gravidade, um bebé), aos mais frequentes hipsters excêntricos (tudo o que está na moda, skinny jeans com botas pelo tornozelo, por exemplo, que em Berlim parecem ter sempre um toque mais irreverente).

Sabine e Margaret procuram uma mesa e acabam por se juntar a mim - o Morgenrot está já está bastante cheio. "É maravilhoso haver um lugar como este", diz Sabine, de 29 anos, que trabalha numa companhia farmacêutica. "Eu ganho um salário justo pelo meu trabalho, portanto vou pagar o máximo." "Não passaria pela cabeça de ninguém fazer o contrário", acrescenta a estudante Margaret. "Eu pago conforme o dinheiro que tenho nesse mês. Se tenho mais, pago mais, assim sinto que posso aproveitar quando tenho menos".  "Este sítio mostra que é possível fazer pequenas experiências de justiça social", diz Sabine. "Faz-nos é perguntar porque não é mais comum." 

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