Fugas - Viagens

O passaporte de Tiago Salazar |

O passaporte de Tiago Salazar | João Henriques

Tiago Salazar: Endereços conhecidos

Por Carla B. Ribeiro

Viaja para escrever e escreve para que quem o lê viaje. Não sem antes ser levado por escritos de outros, dos grandes, dos que têm o "factor de ignição". À FUGAS, o jornalista confidenciou que as suas viagens fazem-se de encontros: casuais, emotivos, espirituais, desastrosos. E de livros, sempre.
"Os textos vivem dos encontros." Assim como as viagens. Ou pelo menos é assim que Tiago Salazar, jornalista e escritor de viagens, que já foi "andarilho" e anda agora em busca de "endereços desconhecidos" pela Europa, as vive. Sempre em busca de um encontro.

Pelo seu passaporte, que guarda religiosamente ("qualquer cidadão deveria ter o direito a guardar o seu passaporte" como registo de memórias, defende), pululam vários encontros. Outros, guarda-os na memória, como o caso do arquivista do jornal O Heraldo de Goa. Numa viagem ao estado indiano e ex-colónia lusa, tendo por base um livro de José Eduardo Agualusa, Um Estranho em Goa, Salazar aproveitou para consultar o arquivo do jornal, onde o avô publicara alguns artigos. Quem o recebeu foi nada mais, nada menos que "o" Percival de Noronha, personagem da obra de Agualusa, ali em carne e osso... e memória. Noronha, que toda a vida trabalhou para o diário goês, não só conhecera o avô de Tiago Salazar como sabia, quase instintivamente, onde estava cada coisa que aquele publicara.

Ou como lhe aconteceu no Chipre, onde não encontrou nada do que o britânico Colin Thubron descreve em A Journey Into Cyprus (1975), "um livro de história e arqueologia sublime". "Até porque talvez seja o último livro de viagens que mostra um Chipre unido, sem fronteiras, sem arame farpado".
 
Mas, em Saint Barnabas, falou com um velho monge que foi testemunha da viagem de Thubron - "mostrei-lhe o livro e ele ficou, claro, comovido". Um encontro, aliás, que pode ser testemunhado em Endereço Desconhecido, o programa de viagens que promete levar-nos a conhecer "os últimos "parentes" europeus", isto é, "12 dos últimos países a entrarem na União Europeia". O Chipre é o mote para o último episódio, a ser transmitido a 26 de Março.

No passaporte, há ainda encontros gulosos, como a vez em que, durante um trabalho com alguns dos mais conceituados chefes espanhóis, "o [Juan Mari] Arzak fechou o restaurante só para nós, uma revista portuguesa de viagens [a Blue Travel] que não era propriamente a Condé Nast Traveller (uma das mais conceituadas publicações do sector)". Ou até encontros improváveis, como na Suíça, no pico de uma montanha, onde se cruzou "com um português a vender cachorros". 

Depois há os espirituais: ler "os poemas do exílio e da prisão do [poeta e dramaturgo turco] Nazim Hikmet numa antiga prisão de Istambul, hoje convertida em restaurante, é suficiente para alguém se desfazer".

"Há ainda lugares que não sei se quero conhecer. Li-os de tal maneira... Como o Equador de Henri Michaux". Embora haja viagens que "são inevitáveis, nem que seja simbolicamente", como a de [Joseph] Conrad Ao Coração das Trevas - "algures no caminho haverá desertos e rios do Congo".

"Há método na minha loucura"
A aventura faz parte do vocabulário, mas acima de tudo a vontade de "descobrir até onde" é capaz de ir. "Tal não significa escalar montanhas ou fazer mergulhos em apneia, mas viver as coisas o mais possível como elas são".
 
Com os limites de tempo e de orçamento com que se tem de trabalhar, há formas de maximizar o período passado num qualquer local. Primeiro de tudo é preciso pôr em prática o verbo "esplanadar", lembrando-se muitas vezes da história que Miguel Sousa Tavares conta de sua mãe Sophia de Mello Breyner Andresen que, depois de horas sentada numa esplanada na romana Piazza Navona, ter-lhe-á dito: "Miguel, viajar é olhar."

Mas, para que haja tempo e espaço para olhar, é imperativo preparar a viagem, embora confesse fazê-lo ao sabor do jazz, com improvisação q.b. mas sem cair em qualquer anarquismo: "Há método na minha loucura", brinca, numa alusão a Hamlet, de Shakespeare.

Mais a sério: "Tento sempre reunir informação para me mexer no terreno - com amigos e amigos de amigos - e fazer uma lista das coisas que quero realmente fazer". Já na mala, onde não se esquece de enfiar coisas mais pragmáticas como medicamentos ("um Ben-U-Ron pode fazer a diferença em certas partes do globo"), não lhe podem faltar blocos de notas, livros, guias.
 
"Os livros são pontos de partida e, ao mesmo tempo, âncoras." Exemplos? "No Brasil não fiz nenhuma viagem sem ler os guias do Ricardo Freire - que acabei por conhecer num bar de São Paulo (...); já quando preparo uma viagem a África falo com o Moutinho Pereira, jornalista aposentado, que conheceu todo o continente." Afinal, "as pessoas é que nos fazem a viagem".

Mas há um detalhe, muitas vezes menosprezado, que pode influenciar toda a experiência: o clima. "Há uma relação visceral [das viagens] com o clima", sendo este "um grande condicionante: pode ser o aborto ou o épico de uma viagem". "Uma noite, no Delta de Okavango, Botswana, apanhámos uma tempestade que arrasa tudo por onde passa. De tal maneira que tivemos de sair das tendas. Assisti então a uma espécie de fim do mundo. Dura um instante, mas é um espectáculo brutal. Assusta a ponto de, de repente, o medo evaporar-se." As tempestades não fizeram só história em África. "No Pantanal, durante uma pescaria num barco a remos, um temporal levou-nos a atirarmo-nos para dentro de uma água infestada de piranhas. Ou isso ou enfrentar a floresta que ameaçava desabar. E nestes momentos fica-se reduzido a um grão de areia." E é nesses momentos que tudo pode tornar-se claro como água: "quero viver para contar", remata Salazar.

As viagens de eleição
 
Sri Lanka "Tenho que voltar e levar a minha mulher [a cantora Cristina Branco]. No Sri Lanka, encontro as minhas paixões pelo chá e pelo budismo. Já para a Cristina, com uma paixão por hipopótamos, seria a oportunidade de conhecer um orfanato em Nuwara Eliya, onde cada bicho não tem só um bilhete de identidade; tem uma história de vida. Fala-se com um tratador e ele sabe a história do bicho desde pequenino". Como a história de Rhania, um elefante cego. Era o elefante dos trabalhos forçados. Era o mais pequeno de todos e era o que tinha mais força - era um sobrevivente. Gostava que a Cristina conhecesse o Rhania."

Namíbia "Viajar de carro, dormir ao relento e, num acaso, dar de frente com o Fish River Canyon. É uma espécie de acidente cósmico. Na Namíbia vivi os melhores momentos de relação paisagem/calor."

Bilhete de identidade
Nasceu em Lisboa em 1972. Formou-se em Relações Internacionais e estudou Guionismo e Dramaturgia em Londres. Trabalha como jornalista desde 1991, tendo publicado, entre outros títulos, no Diário de Notícias, na Grande Reportagem, Vogue e na revista Egoísta (em 1995, venceu o Prémio Jovem Repórter do Centro Nacional de Cultura). Foi membro da equipa fundadora da Blue Travel, em 2003, onde começou a escrever sobre viagens. Em 2010 foi bolseiro da Fundação Luso-Americana, em Washington, ao abrigo da Bolsa José Rodrigues Miguéis. Publicou três livros de viagens, Viagens Sentimentais (2007), A Casa do Mundo (2008) e As Rotas do Sonho (2010). Actualmente é colaborador permanente da revista NS, do Diário de Notícias, guia de Viagens Literárias nas agências de viagens Nomad e Halcon e formador de escrita de viagens, na escola Escrever, Escrever. É ainda autor de conteúdos e apresentador do programa Endereço Desconhecido, da produtora Connect Internacional, em exibição na RTP2 até 26 de Março de 2011 (sábado, 21h30 - repete dom., 11h30).

Carimbo mais desejado

Patagónia "Há algo estranho nas pessoas que deixam sempre as viagens de sonho para o fim. Não compreendo essa escolha". E nem a ideia de poder ser o fim do sonho justifica a decisão porque "uma viagem é irrepetível". Mas a verdade é que também a Tiago falta uma viagem de sonho: entre os carimbos do passaporte "falta a Patagónia". Muito por culpa de escritores como o Luis Sepúlveda e o Bruce Chatwin, "dois grandes que têm este factor de ignição". É para isso, aliás, que se escreve sobre viagens: para alimentar a vontade de viajar em outros. "Quero um dia poder dizer esta frase de um grande autor que é o Blaise Cendrars: "Já não há senão a Patagónia, a Patagónia que convenha à minha imensa tristeza"."
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