Fugas - Viagens

Enric Vives-Rubio

Pedalar pela cidade é cada vez mais chique

Por Mara Gonçalves |

Nem o trânsito, nem os altos e baixos, nem sequer a chuva. Nada parou as quase duas centenas de ciclistas que, em Maio, decidiram provar que se pode pedalar pela cidade, em trajes quotidianos ou mesmo com vestimentas mais chiques - o que até pode significar (e significou) vestido e salto alto. É o Lisbon Cycle Chic, que se repete este sábado na capital.


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A manhã vista pela janela até trazia um bonito céu azul e perspectivas de bom tempo, mas Miguel Barroso, o responsável pela organização do evento, já tinha confirmado previsões de trovoada e chuviscos. Nada que fizesse adivinhar, no entanto, o dilúvio que se abateu sobre o Campo Pequeno precisamente à hora combinada para o primeiro Cycle Chic lisboeta - uma iniciativa que pretende incentivar o uso da bicicleta como meio de transporte, sem necessidade de roupas ou equipamentos especiais, muito pelo contrário.

Abrigados nas entradas do Campo Pequeno, sob os chapéus das esplanadas, nos elevadores exteriores ou junto aos troncos das árvores, cada um protegeu-se como pôde. Mas nenhum ficou seco por muito tempo. O desânimo era geral e a iniciativa ia terminando antes mesmo de começar. Mas como quase 200 pessoas - metade das inscritas - não arredaram pé, e a vontade de seguir pedalando pela cidade era muita, não houve chuva que cancelasse o evento e, quase uma hora depois, lá se reuniram as bicicletas e o Cycle Chic arrancou (devo confessar que devagar e hesitante no meu caso, já que não pedalava há mais de sete anos).

Quem esperava qualquer coisa parecida com um desfile de moda em bicicleta poderá ter ficado desiludido. Entre os participantes, muitos foram os que, ou não compreendendo o conceito ou não aceitando tal imperativo, partiram de calção de lycra e capacete, sapatos e bicicleta de desporto. E com a chuva, até os mais chiques ficaram com as roupas encharcadas e os cabelos molhados e desalinhados. Mas durante o passeio ia-se descobrindo pessoas que não esqueceram os saltos altos, as saias e vestidos, os chapéus-de-chuva coloridos, as camisas ou as flores a enfeitar o cesto dianteiro dos velocípedes. E muitos, muitos ciclistas vestidos normalmente mas em sintonia com o tipo de bicicleta que conduziam: ora as românticas "pasteleiras" ora as de novo modernas dobráveis.

Todo o passeio foi em crescendo. Após o início naquela tarde chuvosa - que desencorajou muitos, desanimou outros e gelou todos -, os primeiros quilómetros foram sendo feitos entre aguaceiros e pausas. Já nós íamos tentando reaprender o básico: a controlar as mudanças, a esquecer a água que escorria pela cara, a prestar atenção às rodas que nos rodeavam, às motas da polícia - que abriam passagem pelo trânsito - e, claro, na pedalada, ora em ritmo frenético, ora a desfilar em lento pelotão.

Do Campo Pequeno, subiu-se pela avenida de Roma, percorreu-se até à Avenida do Brasil, desceu-se ao Campo Grande e, em ciclovia, até Entre Campos. Ritmos rápidos, fáceis, libertadores - interrompidos apenas por um ou outro semáforo. Metade do percurso ficava assim para trás, depois de ter sido encolhido em cerca de dois quilómetros por culpa do mau tempo. Paragem para reunir as tropas e, ao sinal verde, novo arranque, com curva para a Avenida 5 de Outubro. 

Entre ultrapassagens, desvios de carros estacionados, as conversas possíveis, incentivos e conselhos, fomos descendo pelas ruas lisboetas, até chegar ao início da novíssima ciclovia da Avenida Duque de Ávila. Eram muitas bicicletas para uma via tão estreita e num ritmo demasiado lento (não é nada fácil equilibrar uma bicicleta a passo vagaroso...), mas o curto passeio serviu para dar a conhecer a via, que se estende até ao Jardim do Arco do Cego. O final do percurso reservou-nos maiores desafios - as subidas e os caminhos de calçada - primeiro até Picoas, depois (já em trajecto de volta) pelos arredores do Instituto Superior Técnico.

Quando regressámos ao Campo Pequeno, umas duas horas depois do arranque, já o sol espreitava, sem termos dado por ele chegar, como que se rindo de nós. Aproveitando esta aberta, muitos foram os que ficaram pela praça, convivendo e trocando experiências, outros dando "a cara pela bicicleta" - um concurso fotográfico que deu prémios a quem conquistou mais cliques "gosto" no Facebook. No final, ficou a sensação de dever cumprido mas sede de mais. E, se não tivesse chovido, teriam vindo as 400 pessoas inscritas? Num tira-teimas, o Lisbon Cycle Chic repete-se já a 25 de Junho, no mesmo local e à mesma hora para um desfile em duas rodas, espera-se, já sob a bênção do Verão.

C'est pas chic, c'est Cycle Chic

O Cycle Chic começou, por um acaso, em 2007, em Copenhaga, quando o jornalista, cineasta e fotógrafo Mikael Coleville-Anderson decidiu fotografar a cultura dinamarquesa da bicicleta. "Aquelas imagens de gente vestida normalmente e a andar de bicicleta surpreenderam o mundo", conta Miguel Barroso. A cidade é conhecida como a meca europeia da utilização diária da "bicla", com mais de 500 mil a circularem todos os dias; muitas delas, pedaladas por homens de fato e gravata ou mulheres de vestido e saltos altos. 

A parte do chique vem daí, mas, como diz Miguel Barroso, "c"est pas chic, c"est Cycle Chic" (não é chique, é "cycle chic"). A essência do conceito está no facto de as pessoas se vestirem normalmente - usando o que vestiriam para ir de carro ou de transportes públicos -, mas utilizando as bicicletas como meio de transporte para as deslocações diárias, sem qualquer tipo de equipamento especial - "exactamente como a bicicleta estava destinada a ser utilizada quando foi criada", lê-se no blogue que iniciou o movimento (copenhagencyclechic.com). A ideia rapidamente pedalou por diversas cidades do mundo, que tentam - com blogues e eventos Cycle Chic - recriar a cultura dinamarquesa e reintroduzir a utilização original da bicicleta.

Desde então, mais de quarenta blogues já foram criados, em cidades como Paris, Londres, Barcelona, Sydney, Los Angeles, Toronto ou Porto. A cidade do norte de Portugal recebeu o primeiro Cycle Chic em terra lusas, onde mais de 80 pessoas percorreram as ruas, da Ribeira à Foz. O evento decorreu no dia 9 de Abril, onde não faltaram famílias inteiras, flores e balões. E até houve quem pensasse tratar-se de um cortejo de casamento: descobriram numa das participantes a noiva e pensaram que "a Joana [Campos Silva - uma das organizadoras, que ia à frente com um ramo de flores no cesto], era a madrinha", relembra Ânia Gonçalves, outra das organizadoras do Oporto Cycle Chic. 

Pelo Algarve, já se ensaia em blogue desde 2010 o desejo de "organizar alguns eventos Cycle Chic em várias localidades" da região, afirma Fernando Canteiro, gerente da Megasport, empresa que criou o blogue Algarve Cycle Chic (algarvecyclechic.blogspot.com). Para este ano fica a promessa de um evento em Vilamoura, mas com data ainda por definir.

Uma vasta minoria


Incentivados pela alternativa ao trânsito, para salvaguardar o meio ambiente e a saúde ou como passagem natural do desporto para o dia-a-dia. As razões são muitas e há cada vez mais gente a fazer finta às subidas e circular diariamente de bicicleta pelas cidades portuguesas. Com o crescente interesse, nasceram diversas iniciativas que procuram promover a utilização da bicicleta como meio de transporte. 

A Massa Crítica chegou a Lisboa há oito anos e, desde então, já se estendeu por outras cidades portuguesas, como Porto, Aveiro, Braga ou Coimbra. Um encontro de "ciclistas, patinadores, skaters, e pessoas noutros modos de transporte não motorizados", sempre marcado para a última sexta-feira de cada vez mês e partindo de um lugar pré-determinado. (No dia anterior ao novo Lisbon Cycle Chic há Massa Crítica - que, em Lisboa, parte da rotunda do Marquês de Pombal). Em 2009 nasceu a MUbi - Associação pela Mobilidade Urbana, que em Abril deste ano lançou um novo projecto: a equipa de voluntários Bike Buddy promete aconselhar e acompanhar novos utilizadores de bicicleta em meio urbano, até que estes se sintam seguros para usá-la como meio de transporte diário.

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