Fugas - Viagens

Tiago Salazar continua em busca de endereços desconhecidos

Por Carla B. Ribeiro

Depois da série televisiva na RTP2, Tiago Salazar apresenta "Endereço Desconhecido" em formato livro de viagens, acabado de chegar às livrarias e com passeios por doze dos últimos países a entrarem na União Europeia. Em entrevista à Fugas, aconselha vivamente a Letónia, fala da sua paixão pela literatura e como esta influencia as viagens, lembra momentos marcantes da odisseia, adianta o destino da 2.ª série e, como o que "conta no final são os encontros e as pessoas", até revela a sua lista de encontros marcantes com "indígenas".

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O passaporte de Tiago Salazar

(05.02.2011)

 
FUGAS: Como foi passar a aventura televisiva para livro?

Tiago Salazar: Para já foi uma dádiva, pois de outra maneira não teria podido partilhar as histórias vividas nas gravações e ficaria de fora muita da investigação (histórica, literária...) que não havendo o contexto de livro só serve para o meu gozo pessoal de apresentador e como suporte das entrevistas. Depois, no livro há a economia das palavras, e agora até o factor peso (para que o livro saia o mais em conta possível), mas nunca há as contingências do tempo relâmpago da "aventura televisiva". Além disto tudo, há o prazer de poder dar aos leitores que antes foram telespectadores uma memória também escrita e fotográfica de uma aventura que foi de todos. Estão lá também todos os heróis que foram as minhas maiores alegrias, e que são sempre em primeira e última instância a melhor recordação das viagens.

F: Numa conversa anterior, confessou que viaja muito através dos livros. Foi o que aconteceu com este "Endereços Desconhecidos"?
T.S.: Desta vez, além dos escritores lembrados amorosamente, como o Kafka, o Gustav Meyrink, o Bohumil Rabal, só para falar no caso de Praga (capítulo da República Checa), quis ter de viva voz os nomes ilustres das letras de cada lugar, fossem ou não originários de lá.
Por exemplo, ainda no caso de Praga, convidei o escritor Manuel da Silva Ramos para ser o meu cicerone tendo como pretexto o seu extraordinário romance "Jesus, The Last Adventure of Franz Kafka", edição da Fenda. Embora não seja nativo de Praga, o M.S.R. deixou a sua obra gravada para sempre nas ruas da cidade. Assim, tive não só um cicerone de luxo, conhecedor dos autores mencionados, como ainda fui levado a conhecer uma espécie de cidade invisível, polvilhada de histórias incríveis como a de o Kafka ter pensado em mudar-se para a Madeira com a namorada, a Dora Diamante, onde queria ser empregado de mesa. Já agora, conte-se a história que na televisão é abreviada e que pude agora detalhar. Em 2001, M.S.R. planeou um romance passado em Praga, com o escritor Franz Kafka apaixonando-se por um hermafrodita português que trabalha num circo. O projecto ganharia uma bolsa de criação literária, e M.S.R. começa a escrever em Janeiro de 2001, no bairro da Graça. Escreve dez folhas a lápis. Depois, parte em meados de Fevereiro para Praga. M.S.R. não conhece a cidade, mas conhece bem os escritores que falam dela. Kafka, em primeiro lugar, os já falados Meyrink, Bohumil Rabal, mais Hasek ou Kundera. A cidade mágica que é Praga vai avivar a prodigiosa imaginação do autor de "Os Três Seios de Novélia". Praga é a principal personagem do romance. Kafka, o romancista, Jacobson, o teorizador da linguística, Til, o vagabundo que é o Diabo, e Jesus, o hermafrodita português, são os outros restantes personagens. À boleia do cicerone português, fui conhecer uma outra Praga, afinal uma cidade turística repleta de uma infinidade de endereços desconhecidos. O M.S.R. não foi caso único de cicerone literário.
Em Talin, na Estónia, a tarefa generosa coube ao imparável João Lopes Marques que ali vive como um príncipe das letras e em Portugal ainda não deram devidamente por ele. A conversa com o J.L.M. daria pano para mangas e aqui o livro cumpre a função de me dar o tal espaço de manobra para contar o que é a vida de um português literato num país de quem se conhece apenas a fama das mulheres bonitas. A lista de autores que me atravessam estas viagens é extensa. Desde o Eça de Queiroz ou o Hans Christian Andersen em Malta ao Lawrence Durrell e ao Colin Thubron no Chipre. Mas há também o jazz, as galinhas ou o gin tónico polaco que podia ter inspirado os contos do Mário-Henrique Leiria.

F: Qual dos 12 países visitados mais o surpreendeu?
T.S.: Talvez a Letónia, pelo sentido de humor e o exercício da memória. Ia com uma ideia de um país de gente sofrida e cabisbaixa (e continua a ser) com uma história antiga de ocupações, perseguições e morticínios, mas não imaginava que fossem capazes de rir, e fazerem sátiras das suas próprias dores. Quando cheguei fui logo surpreendido com um guia adolescente mas capaz de dissertar como um doutorado sobre História Política e Militar e com a graça e subtileza de um Ricardo Araújo Pereira.
Foi este rapaz, o Kristas, que me levou a jogar um jogo de guerra que recria os tempos da ocupação russa e soviética, em que muita gente tentava fugir para a Suécia. Ninguém conseguiu escapar e o caminho era a prisão, a tortura e o fuzilamento. O jogo chama-se «Bgšana no PSRS» ou «Fuga da URSS», e é uma recriação minuciosa das tentativas de fuga dos opositores do regime durante a ocupação soviética de Liepaja, a maior cidade portuária da Letónia e a principal base naval da URSS nos Bálticos até aos anos 90 do século XX (data da independência de Moscovo). A táctica era a dos manuais de guerrilha e consistia em abater os ocupantes soviéticos, e andar o máximo de tempo possível debaixo de terra, no labirinto dos velhos bunkers mandados construir ainda no tempo da primeira ocupação russa czarista, até chegar ao areal, embarcar no esquife salvador e rumar à miragem dos suecos livres. Quando corria mal a investida do dissidente, a etapa seguinte era o fuzilamento sumário ou, com "sorte", os calabouços da "Virssardzs ekai", a penitenciária centenária, antigo tribunal marcial nazi entre Junho de 1944 e Maio de 1945 e o mais temível presídio dos Bálticos, de onde o mais certo era sair-se morto ou para o hospício.
O jogo, além de levar a experiência a extremos neo-realistas - como percorrer bunkers húmidos e infectos a vários metros de profundidade, usar máscaras de gás quando os soldados se lembram de desinfestar os ratos ou atirar granadas e tiros de morteiro ao nível das cenas de efeitos especiais dos melhores filmes de acção - insiste no carácter pedagógico. Como me explicou o Kristas obriga a tomar decisões rápidas, a ler mapas e a ser camarada (no sentido bíblico e não soviete do termo). Toda a gente pode jogar, desde que não sofra de claustrofobia ou sovietofilia.
No rescaldo do jogo, fui recambiado para a prisão, onde me interrogaram segundo os métodos persuasivos da Tcheka e cumpri três horas de solitária antes de ser vendado, humilhado e brindado a preceito com uma saraivada de fulminantes. Já agora, calcula-se que perto de trinta mil pessoas tenham sido presas e executadas pela Tcheka de Liepaja.

F: E se tivesse de aconselhar apenas um dos 12 destinos?
T.S.:
Diria a Letónia, pelo que disse atrás e mais uma mão cheia de coisas extraordinárias, como a reserva de cavalos selvagens (os Tarpan, descendentes dos aurochs) em Pape; as saunas que se podem fazer em qualquer aldeia do caminho e são mais pujantes do que outras de maior fama como as finlandesas; as relíquias soviéticas, sobretudo as antigas instalações militares soviéticas de Liepaja hoje convertidas em atracções satíricas de turismo de espionagem e de guerra; fora das cidades há um território inesperadamente marcado por tradições animistas. É espantosa a relação com a água, as flores, as árvores e as cegonhas, consideradas aves abençoadas e mensageiras da paz.

F: Já nos tinha dito que "o que conta no final são os encontros e as pessoas". Qual o encontro que mais o marcou - nestas ou noutras viagens?
T.S.: Podia, e devia citar vários, como nesta viagem o jovem Kristas. Um dia fiz uma lista dos indígenas que não foram apenas passageiros. Fizeram a fortuna das viagens. Acho que, se couber, é boa hora para a revelar.

Helena Peirão (Itacaré, Baía, Brasil, Janeiro de 2003), 50 anos. Professora de ioga e terapeuta aiurvédica. Adoptou o modo de viver baiano para «fugir à morte» paulistana. A irmã, Vera, foi baleada à queima-roupa numa das principais avenidas de São Paulo. Sobreviveu, mas decidiu mudar de vida. Abriu um resort ecológico e convidou Helena para dirigir o spa, ou o espa, como dizem por ali. O modo de vida baiano vive-se a três velocidades: devagar, muito devagar e ao ritmo Dorival Caymmi. E porquê Dorival? Porque onde quer que olhemos, o que quer que ouçamos, só dá Dorival. Dorival, Jorge Amado, Caetano e Carybé: o Quarteto da Bahia, o mais famoso depois do de Alexandria. «Seu» Dorival é o espírito do lugar, o espírito da preguiça, o espírito de Helena. Uma preguiça lendária, desfrutando o lento trânsito dos dias e das noites, comendo ostras (e siri), tocando violão, limpando garrucha, coleccionando punhais, bengalas... e saciando a preguiça com a borla da paisagem. Com Helena, também conhecida por madhuramati, aprendi o modo de vida baiano.

John Malone ou Johnnie Walker (ilha de Skye, Escócia, Março de 2003), 72 anos. Reformado, walker, uma tribo de caminheiros que corre o país a pé e de cajado. Uma espécie de peregrino de Santiago mas sem obrigações metafísicas. Caminhei com John Malone e vi que, apesar de aposentado, não está a morrer.

Castigo (Bazaruto, Moçambique, Setembro de 2003), 22 anos. A mãe, diz, estava zangada quando Castigo nasceu - «deu azar no parto», e Castigo ficou. O sonho de Castigo era ter um dicionário, «para aprender palavras difíceis» como «Independência» ou «Grato». Enviei-lhe o dicionário de Francisco Torrinha.

Reis‐Pedro (Bazaruto, Moçambique, Setembro de 2003), 12 anos. O menino-filósofo, amigo de Castigo, que sabia o mapa-mundo de cor e para quem a palavra mais difícil de entender era «Paz». Fizemos um bate-bolas de geografia e levei, como sói dizer-se, uma cabazada.

Sacha (Moscovo, Rússia, Setembro de 2003), 18 anos. A estudante de Literatura em crise existencial que, sem me conhecer de parte alguma (e sem querer um dote no Alentejo ou um anel de noivado), me mostrou a nova Rússia dos sibaritas do petróleo e do salve-se quem puder.

Mário Cabral de Sá (Goa, Índia, Novembro de 2003), 73 anos. Um «castiço», isto é, um descendente directo de portugueses, autor do belíssimo livro "Legends of Goa". Recebeu-me na sua casa na ilha de Divar, acabado de ser operado ao coração. Falámos de castas, castrações e do canto de liberdade dos freedom fighters. Saí de Goa como se tivesse saído de uma narrativa da Idade Média.

Stass (Roatán, Honduras, Março de 2004) Sem idade. Ex-roadie de Chick Corea, vive aposentado numa árvore de mangas em Roatán. É uma espécie de soba e, apesar de viver no topo de uma árvore (uma araucária pintada em tributo a Gauguin), controla toda a economia e política de subsistência da ilha. Quando conheci Stass, este estava muito ocupado a juntar dinheiro para comprar um moinho de pão para os meninos da freguesia de West End - que acabou por conseguir graças a uma colecta entre cada estrangeiro que lhe batia ao ferrolho (já agora, por cada dólar recolhido dava em troca uma semente de cânhamo). Conheci-o através de um americano chamado Kevin Chinasky, um antigo marine do género enfarta-brutos (no fundo, um sentimental que tanto lia Bukowski como as irmãs Brontë) exilado em West End com a mulher e dono do melhor restaurante de burritos. West End é a praia mais bonita de Roatán e dois anos antes tinha sido varrida pelo furacão Mitch. Ainda estavam a recuperar da devastação quando ali cheguei.

Hari (Quénia, Junho de 2004), 53 anos. O driver político. Dizia que escrevera um relato dos crimes do Governo sudanês e que tinha a cabeça a prémio. Não soube onde acabava a verdade e começava a fantasia. Nunca cheguei a ler a obra de denúncia. Com Hari, conheci o Quénia de Karen Blixen, não no aeroplano de Finch-Hatton, mas numa Toyota Hiace.

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