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O caminho das pedras

Por Nuno Henrique Luz

A maior prova de BTT por etapas da América do Sul e tem o atractivo extra de se realizar na Chapada Diamantina, reserva natural no estado da Baía. Nuno Henrique Luz pedalou 600 quilómetros debaixo de um calor extremo mas sobreviveu para contar a história. Uma história feita de emboscadas da natureza, resquícios coloniais e muita carne de sol

Cenários remotos e deslumbrantes e sofrimento extremo, dia após dia. São estas as características essenciais de uma corrida de ultra-endurance, e as duas foram ainda refinadas na Brasil Ride, a maior prova de BTT por etapas da América do Sul, que recentemente terminou na Chapada Diamantina, uma reserva natural no estado da Baía. O percurso era tão emocionante e as dificuldades tão extravagantes que para os apreciadores a corrida foi quase perfeita.

No final, depois de 600 quilómetros e quase 40 horas de competição, a uma aversão súbita e profunda à bicicleta seguiu-se, passadas poucas horas e já de caipirinha na mão, a melancolia de ainda faltar um ano inteiro para a próxima edição - os dois passos da confirmação de que tudo correu às mil maravilhas.

Se descrevermos ao comum dos mortais o percurso da Brasil Ride, e de provas semelhantes, como o Titan Desert, sete dias e 600 quilómetros em Marrocos, ou o Transalp, nove dias e quase 700 quilómetros nos Alpes alemães e italianos, tudo clássicos do género, o comentário será "espectacular". Se explicarmos o desafio do ponto de vista físico, a resposta é outra: "Quanto me haviam de pagar."

A Brasil Ride, se é também turismo de aventura, já é uma aventura para ser levada a sério - já mete algum medo, e mesmo preparados já andamos sempre um pouco na incerteza se a conseguimos cumprir até ao fim ou não.

Este ano, das 103 equipas (de dois elementos) à partida, apenas 67 completaram as sete etapas, e teria sido pior se a organização não tivesse prolongado alguns tempos-limite de chegada.

Lisboa-Mucugê: dois dias de viagem

Neste tipo de prova, a estafa começa muito antes do primeiro dia, com uma logística que requer paciência, sobretudo a bicicleta, um objecto pouco prático para viajar e incómodo para transportar em qualquer situação que não seja irmos a pedalar.

Entre o empacotamento em Lisboa, a navegação nos aeroportos de Lisboa e Salvador e o carregar e descarregar contínuo desta mala de quase 30 kgs e dois metros de comprimento até estarmos dentro do autocarro a caminho da prova, é um facto que ajuda conseguir respirar fundo e manter o contacto com o nosso Buda interior. Até porque depois, a tal ligação Salvador-Mucugê, o local da partida, equivale a fazer Portugal de alto a baixo antes de haver a A1 - são 700 quilómetros e 10 horas de viagem até à Chapada Diamantina. Dois dias para lá chegar, portanto, um para o avião e um para o autocarro.

Dentro do autocarro, o pelotão finalmente sentado depois de horas a fio em cima das pernas impecavelmente barbeadas, o que se vê é uma floresta de Crocs e meias de compressão a testar posições para um dia inteiro de aperto no assento. Ou então é o nervoso miudinho das vésperas.

Na Chapada Diamantina: Mucugê

Mucugê, onde começa e onde acaba a Brasil Ride, foi fundada em meados do século XIX e é uma das mais antigas cidades da Chapada Diamantina. (Chapada significa zona de penhascos, e Diamantina porque a região tem uma história ligada às minas de diamantes e ouro - os centros de exploração eram Mucugê e, a 130 quilómetros, Lençóis.) Os habitantes, hoje, são pouco mais de dez mil.

Passeando pelas ruas de pedra, o que vemos é um cenário de outros tempos, bem conservado e com os casarões coloniais de estilo português a sublinhar o charme de época. Rodeada de cascatas, grutas e montanhas escarpadas, e com uma dúzia de pequenos hotéis e pousadas, a cidade vive sobretudo do turismo. Não parece, mas estamos a mil metros de altitude.

O ritmo das ruas é pachorrento, as conversas nos cafés incompreensíveis de longe para ouvidos estrangeiros, mesmo os de nacionalidade portuguesa, e de manhã à noite toca uma banda sonora de música de feira, com ritmos frenéticos e letras romântico-canalhas: "Você não vale nada/mas eu gosto de você".

Visita obrigatória é o cemitério bizantino, um conjunto de igrejas e capelas em miniatura, de formas pontiagudas e em estilo gótico, pintadas de branco. Por causa do solo pedregoso, é impossível sepultar os mortos debaixo dos sete palmos de terra e eles descansam nestes túmulos acima do chão. À noite, a visão azulada do cemitério domina todo o horizonte de Mucugê.


O pouso ideal: uma pousada

A Brasil Ride tem o seu próprio acampamento, com uma tenda (e um colchão a sério) para cada participante, mas por 50 reais, uns 20 euros, compravam-se duas noites numa pousada, com duche individual e, sobretudo, sem o "banheiro químico" das tendas.

O que se perdia em imersão no circo ambulante, internacional (muitos americanos, alemães e belgas), típico destas provas, ganhava-se em paz e sossego depois do castigo físico e mental de cada etapa.

Também permitia explorar melhor a cidade - é que nem sempre apetece ficar na órbita do acampamento a discutir pneus, mudanças partidas, desfalecimentos e outras incidências do dia ciclístico. Há um momento para as conversas monotemáticas, mas aquele não era esse momento.

Igualmente importantes para a recuperação para amanhã vão ser a carne de sol, as paçoquinhas (uma guloseima salgada de amendoim, sal e açúcar), as cocadas (um doce de coco, leite e açúcar) e os sumos tropicais.


145 quilómetros, 49 graus

O primeiro dia, um prólogo de 13 quilómetros, servia para dar a conhecer, em ponto pequeno, as dificuldades futuras: a areia, as pedras, o grau de exigência técnica do percurso - e o calor. Felizmente sem humidade, a Chapada Diamantina é uma região árida. Mas houve dias de 45-49 graus.

Ao contrário, a segunda etapa era uma coisa simplesmente absurda, uma barbaridade de 145 quilómetros e 3500 metros de subidas de tal forma temível que o tempo máximo para fazer o percurso passou de 12 para 14 horas, para evitar desclassificações a mais logo no início da prova.

Para além da distância, das subidas, das temperaturas e da quantidade ridícula de pedras, a agonia suprema foi um sector de 17 quilómetros de uma floresta impenetrável conhecida localmente como "Vietname" e onde o "empurra-bike" podia durar, e em muitos casos durou mesmo, horas.

Sair finalmente, intacto, daquele cerco apertado, daquela emboscada contínua de natureza, era por si só um alívio.

A etapa acabava com um espectacular requinte de malvadez, uma subida de 12 quilómetros que foi para muitos o golpe de misericórdia - vi pelo menos dois ciclistas a pé, em sentido contrário, a descer aos esses, desorientados -, um obstáculo intransponível dentro das 12 horas previstas. Já o sol se punha e ainda havia gente a chegar e a chorar na meta.


O impossível: como fazer

O truque num dia destes é não parar a não ser nos abastecimentos, e mesmo aí rapidamente. Se vamos bem, comemos e bebemos. Se estamos mal, é preciso comer e beber - o açúcar na boca é crítico para a força de vontade. Não podemos pensar muito no que ainda falta para acabar, nos problemas que tivemos ou podemos ter, nem dar ouvidos àquela voz que aparece nestes momentos a perguntar o que é que estamos ali a fazer.

Idealmente, a certo ponto começamos a perceber aquele conceito inefável da "zona" - de mergulho total no presente, de privilégio por fazermos parte daquele instante, daquele cenário, daquele desafio maior do que nós até o vencermos pelo nosso esforço. Pois - mas o que vai na cabeça naqueles momentos, naqueles momentos faz sentido. Um dia assim é das coisas mais difíceis que se pode fazer em cima de uma bicicleta, e o sentimento de realização pessoal é do mesmo calibre.

Por outro lado, ok, a Aldina Duarte no iPod parecia penar ainda mais profundamente, o que tornava relativas as dificuldades na bicicleta. O fado, património imaterial da Humanidade e doping auditivo.

Passar mal dias a fio e aguentarmo-nos é, aliás, para falarmos com franqueza, a principal motivação para estas provas. Ninguém faz o Brasil Ride, o Titan Desert, o Transalp, para se divertir, mas sim porque a dor, o sofrimento, o caminho das pedras podem ser imensamente recompensadores, e uma necessidade importante depois de se experimentar a primeira vez (nunca antes). Os maratonistas falam da runners high, da "pedra do corredor", uma explicação não muito diferente.

A rotina: carne de sol

A chegada da segunda etapa era em Rio de Contas, a base de operações para os quatro dias seguintes. Mais uma vez, e não desfazendo os encantos do campismo de competição, sobrepôs-se o apelo da pousada, mais concretamente do banheiro da pousada.

O resto do dia, uma rotina nesta altura firmemente estabelecida, era passado a tentar conjugar as necessidades igualmente prementes de estar deitado de pernas para cima e de comer sem parar - fácil com as cocadas e as paçoquinhas, impossível com a carne de sol e os sumos.

O banquete continuava ao jantar - outro aspecto em que a Brasil Ride marcou pontos. Em vez da intragável pasta party habitual nestas provas, a organização conseguiu pôr de pé diariamente, e com isso ganhou um lugar de destaque no coração esfaimado de cada participante, um buffet que era um verdadeiro festival da gastronomia local, que incluía mas transcendia a omnipresente carne de sol.


Rio de Contas

Com uma população actual também perto dos 10 mil habitantes, Rio de Contas foi criada em meados do século XVIII por Provisão Real e com o nome de Vila Nova de Nossa Senhora do Livramento das Minas do Rio de Contas. Primeira cidade do Brasil integralmente planeada, e sofrendo em tempos de uma epidemia de "febre de mau carácter", Rio de Contas é agora um local encantador, que mantém o traçado original nas ruas e nas praças largas, nos monumentos em pedra e nas igrejas barrocas.

As minas de ouro, que há 200 anos fizeram de Rio de Contas uma cidade rica, secaram há muito, e, tal como Mucugê, a principal fonte de rendimento, para além da exploração agrícola, é hoje o turismo.

Ainda assim, e apesar de habituados a receber, aos riocontenses falta-lhes por enquanto a indiferença aos visitantes característica de destinos turísticos com mais experiência - a permanência na cidade das quase 300 pessoas da Brasil Ride produziu grande excitação, e não apenas na faixa mais impressionável, as crianças.

Mucugê, Rio de Contas e ainda Ibicoara são os pontos principais de uma região de turismo ecológico, com uma abundância de rios e cachoeiras e uma geografia rochosa monumental, dramática. Em suma, um cenário feito por medida para a Brasil Ride.


Quem tem lycra tem medo

Depois da esfrega do segundo dia, o terceiro seria, por comparação, um percurso mais fácil, cinco voltas a um circuito típico de cross-country - isto é, sem planos, ou se subia muito, ou se descia muito, subia-se tanto que se atravessava o interior de uma capela no alto de um monte, e descia-se tanto que boa parte dos atletas, mesmo os dotados de uma técnica decente de BTT, faziam muitos dos precipícios a pé.

Em alguns ainda era visível a tentação de fazer uma bravata, mas uma espreitadela lá para baixo bastava, desmontavam logo à cabeça. O cálculo era óbvio: ninguém faz milhares de quilómetros e um considerável investimento em tempo e dinheiro para desistir por queda anunciada nos arredores de Rio de Contas, antes do meio da prova. Quem tem lycra também tem medo.

Por outro lado, é verdade que em toda a Chapada Diamantina não vimos um único hospital, o que, se não significa que eles não existem, pelo menos dava que pensar na rapidez do acesso em caso de necessidade.


O "empurra-bike"

Depois deste terceiro capítulo, que parecia menos mau no papel mas no fundo tinha sido outro massacre, até porque em corridas por etapas o cansaço acumula-se rapidamente com o passar dos dias, já sabíamos o que esperar das três etapas seguintes. Com distâncias entre os 80 e os 130 quilómetros, e despertares entre as quatro e as sete da manhã, partiam todas de Rio de Contas, na direcção de percursos diferentes que nos iriam tramar cada um à sua maneira, mas quase sempre envolvendo pedras de grande porte e troços de "empurra-bike".

Por esta altura, desaparecidas algumas nuvens tímidas que pontualmente chegámos a ver, tornava-se decisiva a gestão do calor. Por mais cedo que fossem as partidas, o número de horas de cada etapa obrigava-nos sempre a enfrentar a violência implacável do sol. "Bandanas" na cabeça, arm coolers nos braços, um revestimento completo de protector solar para bebés, baldes de água fria a escorrer do cabelo aos pés em cada abastecimento e uns óculos tão escuros quanto possível - valia tudo em legítima defesa contra aquela brutalidade solar.

Mesmo assim, durante as etapas era frequente a visão de bicicletas à beira da estrada, com os atletas refugiados debaixo de árvores, deitados. Como se fosse dia de chuva e eles esperassem o fim da tempestade - só que infelizmente o sol não pára de repente.


O calor: um peso no estômago

O calor também não ajuda noutra dificuldade inevitável nestas provas, os problemas gastrointestinais. E o estômago pode ser um adversário terrível, se juntarmos uma alimentação a que não estamos habituados, água das torneiras em vez de engarrafada, a agressão permanente do açúcar dos géis e das barras energéticas, as temperaturas e a desidratação, e frequentemente uma gestão do esforço demasiado optimista - quando o ego passa o cheque de um ritmo forte, mas as pernas e o treino que se fez não lhe dão cobertura.

Qualquer um destes factores pode ser a morte digestiva do artista, o que quer dizer imediatamente o fim da etapa. Este ano, na Brasil Ride, aconteceu aos melhores, líderes da sua categoria, e aconteceu a muitos outros mais para o fundo da lista.

Ao fim de alguns dias, e como é também vulgar neste tipo de corrida, as conversas começavam a derivar imperceptivelmente para o funcionamento da "caldeira" de cada um, com uma alegria positivamente infantil nas descrições mais gráficas e uma solidariedade forjada na certeza de que, no momento da verdade, somos todos iguais.

De qualquer modo, também aqui, what happens in Vegas stays in Vegas, e uma vez acabada a prova nada de extraordinário aconteceu. 15 dias a clorofila líquida no regresso a Lisboa - perfeitamente normal.


O final: felizmente abreviado

A etapa número seis levou-nos de volta a Mucugê, onde chegámos mais mortos do que vivos já com 30 e tal horas nas pernas. Piedosamente, e a pretexto de haver risco de incêndios no percurso original, a organização decidiu abreviar a sétima e última etapa para 50 quilómetros em vez dos mais de 100 previstos.

E entre toda aquela malta de barba rija, de sexo masculino ou feminino, com tatuagens do Ironman e camisolas ganhas noutras corridas épicas, facto é que ninguém se queixou dos 60 quilómetros a menos.

Por esta altura, as classificações também estavam decididas - Luís Leão Pinto, o melhor atleta português de BTT e um dos melhores do mundo, já sabia que ia ficar no segundo lugar, depois de o seu parceiro, Alejandro de la Peña, campeão espanhol de maratonas, ter tido problemas físicos durante a prova.


A próxima: onde será?

Vinte e quatro horas depois, deixámos para trás o Verão brasileiro rumo ao Inverno português. A logística não é mais fácil na volta, mas a ansiedade é menor - o que havia a fazer está feito, o físico está massacrado mas inteiro, e o diálogo no avião já trata de onde será a próxima do género.

Possibilidades não faltam, a oferta de provas de ultra-endurance, de BTT e outras, multiplicou-se nos últimos anos. Tantas corridas, tão pouco tempo - e dinheiro. O regresso à realidade e aos taxistas do aeroporto da Portela é, como sempre, duro.

Em 2012, a Brasil Ride realiza-se um mês mais cedo, entre 23 e 29 de Setembro, certamente com temperaturas mais amenas. O preço da inscrição é de 2500 reais (mais ou menos 1000 euros), e um voo de ida e volta para Salvador custa outros 1000 euros. Quase um ano chega perfeitamente para preparar a prova. Uma rotina sólida, um bom conhecimento do que é preciso e uma motivação forte farão o resto.

www.brasilride.com

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