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Índia: Como se contorna a morte num país onde isso é uma oferenda aos deuses

Por Tiago Bartolomeu Costa

A partir da passagem da aventura "As 1001 Horas de Astérix" pela Índia, um memorial do Ganges

Em As 1001 Horas de Astérix, os heróis gauleses salvam o Ganges da seca extrema. Mas o livro, escrito em 1987, na sua imensa e feliz ingenuidade, é uma porta de entrada bastante menos solar para um mundo onde céu e terra celebram a morte como devoção aos deuses.

Pode chover sem parar durante um dia inteiro. Semanas inteiras. Uma chuva escura, pesada mas quente. Pode chover até que não exista mais terra para se dissolver aos nossos pés. Uma chuva que leva colheitas, animais, pessoas, casas, vidas inteiras, para sempre. Uma chuva que pinta ainda de mais escuro as paredes das casas que nem pintadas estão mas uma chuva que lava a própria água dos rios, aos quais se entregam os corpos como se renascessem da própria chuva que mata. Uma chuva que mata mas uma chuva abençoada.

Indra, o deus das chuvas e das tempestades é, por entre os milhares de deuses adorados na Índia, um de particular devoção pela hipótese de renascimento que possibilita. Há algo de particularmente belo quando o céu e a terra se juntam. Está escrito desde os Veda: "Céu e terra que jorram com o mel, que são nutridos de mel, que têm o mel por voto, deixai-os encharcar-nos em mel, trazendo o sacrifício e a prosperidade aos deuses, grande fama, o prémio da vitória e virilidade para nós."

O poema, escrito em 1200 a. C. (com uma belíssima tradução de Manuel João Magalhães, incluída no essencial Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim) termina com esta frase: "Deixai que as duas metades do mundo que juntas trabalham em benefício de todos nós, juntas lancem sobre nós o proveito, e o prémio da vitória e da prosperidade."

Nenhum deste negrume, deste imenso cheiro a morte, habita as páginas de As 1001 horas de Astérix, delírio inspirado no cinema musical norte-americano que leva os heróis gauleses até ao Oriente, sem nunca especificar onde fica a Índia e acaba a imaginação. Astérix e Obélix são levados a salvar o povo do Ganges, esse imenso rio-mundo que ao longo de mais de 2500 quilómetros atravessa um país que é um continente. Seco, porque as monções ainda não chegaram, faz sofrer aqueles que dele vivem, e que se sujeitam a banhos de lama quando deveria ser água purificadora. A graça de As mil e uma horas de Astérix está, por isso, no modo como se esquiva a uma reflexão aguda sobre a dimensão deificante da sociedade indiana e se diverte a tentar imaginar as relações entre o cepticismo gaulês e a devoção indiana.

Compreende-se por que o "bondoso rajá Estáláh" (Cékouhaçà, no original) tenha pedido ao faquir Kemseráh (Kiçàh) que atravessasse o mundo para encontrar esses gauleses que faziam chover. Dizem os Veda: "As águas são todas as coisas deste mundo, uma vez que as encontramos por todo o lado, mesmo no lugar mais longínquo."

De longe, portanto, chegaram os gauleses para salvar esse "reino no vale do Ganges" e, com ele, a vida da princesa Chárazad (Rahàzade), pedida em sacrifício por Kemvemláh (Kiwoàlàh), aquele que quer ser rajá no lugar do rajá, como Iznogoud queria ser califa no lugar do califa. Imaginamos que a beleza de Chárazd, que, como todas as heroínas trágicas que Astérix teve que salvar ao longo dos livros, não ignore a descrição que noMahabharata se faz de Ghanga, a deusa que daria nome ao rio: "Imensa como o mar, perfeita de rosto e corpo, de pele como se fosse delicado ouro, luminosos olhos, e com um cabelo negro que lhe caía como uma cascata."

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