Fugas - Viagens

  • Adriano Miranda
  • Adriano Miranda
  • Adriano Miranda

José Cid e Mogofores

Por Sara Dias Oliveira

Tem 72 anos, está mais de duas horas em palco em cada concerto, arrasta multidões que cantam as músicas do princípio ao fim. E tem uma bela quinta em Mogofores, juntinho à Curia, com uma piscina que é pública no Verão, jardins e pinhais a perder de vista. Noutros tempos, a censura proibiu-lhe 28 canções. Hoje é um dos rostos de um novo partido que "nem é à esquerda, nem à direita".

Nas mãos, duas bolachas americanas que nos oferece como uma guloseima de criança. “São melhores do que aquelas que eram proibidas na infância”, garante-nos com sorriso. As melhores das melhores feitas pelo genro do senhor Horácio, dono do café a dois passos de casa. Mesa de bilhar, plantas frondosas na montra, cartazes afixados na porta com o que vai acontecendo na pequena freguesia de Mogofores. O senhor Salgado entra, pede um café, avisa que está com pressa, mas arranja tempo para dois dedos de conversa com o amigo Zé.

Num ápice, recua aos gloriosos anos dos desportos praticados pelos catraios lá da terra, em que Toni, que treinou e jogou no Benfica, dava uns belos toques na bola e era conhecido como a “locomotiva de Mogofores”. Há também as façanhas do Zé: o jeito para a bola, as conquistas no ténis de mesa — chegou a ser campeão universitário da modalidade —, o gosto pelos cavalos, os prémios no hipismo. O senhor Salgado não chega a sentar-se à mesa, vai ao balcão, bebe o café, e volta para as despedidas. De repente, José Cid lembra-se do medo que, nessa altura, os miúdos da sua idade tinham do Côca, o homem-mulher que lavava a roupa com as mulheres nos tanques públicos. Salgado ri-se dessa recordação. É hora do café a seguir ao almoço e quem entra cumprimenta o Zé, que pergunta como corre a vida entre um e outro aperto de mão — com uma confidência pelo meio só para nós: “Aqui há três pessoas conhecidas: o Toni do Benfica, o visconde de Seabra, autor do primeiro Código Civil, e eu.”

“A minha vida aqui é muito simples.” De manhã, quando o tempo permite, José Cid e a mulher, Gabriela Carrascalão, pintora timorense, passeiam pelo pinhal com as duas cadelas, Perdida e Chamusca, que nos recebem com pedidos de brincadeira — patas no ar, pedaço de madeira na boca. “Fiz um circuito dentro de um pinhal da quinta em que andamos dois quilómetros até chegar a casa outra vez.” A sesta também faz parte da rotina quando não há marcações na agenda. Depois, o músico vai para o estúdio, a pintora para a sala das telas e dos pincéis. José Cid tem a família perto, a irmã mais velha e três sobrinhos — um deles vive ali perto e tem também um estúdio de música. “Herdei esta casa do meu pai.” Casa grande do início do século passado com um sino no telhado que servia para chamar os empregados da quinta, corredores espaçosos, vários pianos, quadros nas paredes, uma cozinha azul à moda antiga com pássaros à janela.

Este Verão foi intenso, com dezenas de concertos por todo o país. Perdeu a conta aos espectáculos, mas não ao público que o acompanha. “Em Cascais, foram 70 mil pessoas. Tenho 30 canções que o país canta do princípio ao fim.” Não há muito tempo, recebeu um Emmy Award pelo genérico Mais Um Dia que compôs para uma telenovela da TVI, que se juntou a um currículo de várias páginas com álbuns, concertos, distinções, vitórias em festivais da canção. Qual o momento maior num percurso musical tão recheado? Quase não deixa acabar a pergunta. “O momento é este. Tenho 72 anos e uma homenagem pública nacional fortíssima, com altíssimas audiências eufóricas. Devo ser caso único na música portuguesa nesse aspecto — temos o Carlos do Carmo, um cantor fantástico, mas os seus circuitos são mais pequenos, o meu é dos grandes concertos, das queimas, das latadas, das grandes exposições nacionais, do Campo Pequeno.”

O músico de Como o Macaco Gosta de Banana não pára, está aí para as curvas. Em Novembro estará no Coliseu de Lisboa, em Abril do próximo ano no Meo Arena. “Nessa altura, terei 73 anos, espero estar em boa forma.” Faz por isso e não facilita. “Nos dias em que vou cantar, entro em estágio absoluto, durmo imenso, durmo a sesta, na hora do jantar não vou para o restaurante. Entro em estágio antes de explodir em palco”, conta. A piscina da quinta de Mogofores é uma excelente aliada, com muito espaço para exercitar o corpo. Há dias em que o músico e a mulher se metem dentro de água para exercícios de flexibilidade. “Esta manhã, a água estava tão fria, eu ainda aguento, mas a Gabriela...”. Aquela piscina torna-se pública nas tardes de Verão, das 15h às 17h. José Cid abre-a às crianças acompanhadas dos pais.

Multas por cantar Amália

Mogofores entrou definitivamente na vida de José Cid quando tinha 11 anos, altura em que a família se mudou de malas e bagagens da Chamusca, onde nasceu, para a casa do avô paterno. As recordações da casa da infância não se esquecem. No Ribatejo, havia um velho piano no sótão e o pequeno Cid não lhe dava sossego. Sozinho, sem qualquer manual de instruções, aprendeu a dominá-lo sem dificuldade, sem pautas por perto. Arrancava melodias e surpreendia quem ia lá casa. “Com quatro, cinco anos, tocava e cantava e as pessoas ficavam de boca aberta”, lembra. Com apenas três deditos da mão direita fazia a festa e raramente carregava na nota ao lado. Chegou a ter professora de piano, mas durante pouco tempo. O ouvido para a música sobrepunha-se a qualquer lição e não havia paciência para seguir as notas das pautas. “O meu sonho era cantar na rádio”, recorda. Diziam-lhe que a rádio ficava longe, em Lisboa.

O seu percurso desaguou na música e não foi difícil chegar à rádio em Lisboa. Chegou a estudar Direito na Universidade de Coimbra, por pressão dos pais, que queriam vê-lo vestido de preto na magistratura. Desistiu sem concluir o primeiro ano e matriculou-se em Educação Física no então Instituto Nacional de Educação Física. Nos tempos da tropa, na Força Aérea, chegou a dar aulas de ginástica, só que a música já andava a fazer das suas. Começou no piano na banda Os Babies, em 1956, a interpretar versões, passou depois para Os Claves e a seguir fixou-se no Quarteto 1111. A carreira a solo foi um processo natural. “O Quarteto 1111 já não conseguia acompanhar-me no que eu queria.” E cada um seguiu o seu caminho. “Não morremos na praia”, garante.

“O projecto da minha vida é escrever canções, gravá-las e depois cantá-las o melhor que puder.” Ao vivo, tem uma superbanda. “Escolho músicos que sejam bons e que toquem para mim, que toquem o que as minhas músicas precisam. Rock é rock, pop é pop, balada é balada, étnico é étnico, fado é fado.” Anda com o novo disco do fadista António Pelarigo nas mãos (será apresentado na próxima semana no Speakeasy, em Lisboa). Assina a produção de uma das músicas. E enche o peito para falar de Pelarigo, o pescador-fadista que cantava nas horas vagas e que agora é conhecido no meio. Em Novembro, pelo São Martinho, é tempo de apresentar o seu novo álbum, Menino Prodígio, que tem baladas roqueiras, uma canção dedicada a Marilyn Monroe, um poema de José Régio. Quando lhe dizem que o rock não é para a sua idade, encolhe os ombros e não passa cartão. É tempo de ouvir algumas músicas desse álbum. “O menino prodígio morreu, o seu epitáfio sou eu”, canta numa das canções. Soa a familiar. “É uma história de vida, é a minha história já no fim.” O grafismo está praticamente pronto, terá as letras escritas e fotos de José Cid de várias etapas da sua vida. Uma autobiografia em CD.

Esteve no top 10 australiano e também no sul-africano nos anos 80. Nos anos 1990, teve hipótese de assinar pela Sony americana — só não se concretizou por causa da sua idade, andavam à procura de jovens músicos. Nessa altura, José Cid entrou em hibernação. “Foi uma década em que desapareci, mas em que gravei álbuns bestiais”, adianta. Seja como for, a internacionalização nunca lhe tirou o sono. “Fora de Portugal quem funciona são as fadistas. Andam à procura de uma nova Amália, o que é completamente impossível. Amália é só uma, a melhor cantora do mundo na sua época. Não temos nada que se compare e devia sair uma lei na Assembleia da República que proibisse cantar Amália Rodrigues, quem o fizesse era pesadamente multado.”

O estúdio de José Cid tem vista para mais quintas, árvores e jardins. Não há barulhos de cidade a entrar pela janela. Nas paredes insonorizadas, fotos a preto e branco das suas primeiras bandas, dos anos 50 e 60 do século passado. Um recorte de revista que lembra o sucesso que o seu álbum 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, de 1978, alcançou no resto do mundo — figurou na lista dos 100 melhores álbuns de rock progressivo de sempre da revista americana Billboard. Álbum que, neste momento, e mais de 30 anos depois, entra no alinhamento dos seus concertos e que estará em força no Coliseu de Lisboa. Na parede, há também uma foto de Salazar bem jovem com um pedido do bispo de Coimbra. “Encontrei isso na biblioteca cá de casa, mas aqui não havia salazaristas. Fartei-me de rir, encontro estas coisas surrealistas e ponho aqui no estúdio.” E conta a história. “Em 1937, houve um atentado ao Salazar e o bispo de Coimbra dava uma bula e absolvição a quem rezasse não sei quantas avé marias.” Uma brincadeira, portanto. Uma provocação também. As músicas que o antigo regime lhe proibiu não foram brincadeira. José Cid sabe exactamente quantas não passaram no crivo de Salazar. “Foram 28 cantigas proibidas pela censura.”

No estúdio, tem uma mesa cheia de botões. “Nunca na minha vida me passou pela cabeça que ia gravar em computador, não me dá prazer nenhum. Este som é muito mais quente. Mais humano do que o digital. E está na moda outra vez porque as novas gerações já não se deixam enganar.” Mais um CD para ouvir, desta vez de canções de poemas do espanhol Federico García Lorca que cantou na língua original, em 1998. Fica em silêncio a ouvir-se. E nós com ele.

Aquela sala é o compartimento mais concorrido da casa. Ali, dentro de dias, seria gravado o hino do novo partido político que está a recolher assinaturas para se apresentar nas eleições legislativas do próximo ano. Está tudo preparado. José Cid é um dos rostos do Nós, Cidadãos. “Nem à esquerda, nem à direita, mas por baixo para ajudar e ouvir a população”, diz. O músico anda preocupado por ver triste um povo que é alegre. “Estou a apoiar um partido que seja mesmo nacionalista, que venha pela base, que defenda as pessoas, que não permita corrupções, que não permita escândalos.”

Assume-se como monárquico progressista e acredita que é possível acabar com os jobs for the boys. “Nos lugares de competência têm de estar as pessoas com competência”, defende. E recua até 1974. “O 25 de Abril, em vez de destruir a pobreza e controlar a riqueza, sustentou a riqueza, de offshores, destruiu a classe média e fez o país mais pobre. Não contesto, constato.” Ficou contente com a Revolução dos Cravos, mas confessa que a pouco e pouco percebeu que havia coisas que não batiam certo.

Despido de preconceitos

José Cid entrou e não mais fechou a porta à música. Teve êxitos incomparáveis, concertos atrás de concertos, salas cheias. Há cerca de cinco anos, recebeu o prémio de consagração de carreira pela mão da Sociedade Portuguesa de Autores. Tem dificuldade em destacar um momento especial, como se todos fossem únicos e indescritíveis. Pelo caminho, houve também festivais da canção — quem não se lembra de Cai Neve em Nova Iorque, Um Grande, Grande Amor e A Padeirinha de Aljubarrota. “Os festivais da canção eram interessantes, tinham bons poetas, boas poesias e boas músicas. Quem tivesse um grande poema, uma grande canção, automaticamente ganhava visibilidade.” Há um que recorda com particular emoção. O Festival da Canção de 1974. Nos bastidores, corriam rumores que poderia ser desmarcado. O que não aconteceu e Paulo de Carvalho ganharia com E depois do Adeus. José Cid ficou em segundo, terceiro e quarto lugares com O dia em que Rei fez Anos, A Rosa que Te Dei e Imagens. No início da década de 1990, o músico surpreendia o país com uma foto numa revista social. Estava despido, tinha apenas um disco a tapar-lhe as partes íntimas. A foto foi tirada com intenção de provocar. “Não estava nu, estava despido de preconceitos. Se estivesse nu tinha tido, nessa altura, muito mais êxito do que tive ainda.” Na altura havia coisas que o incomodavam. E assim despiu-se para defender novos projectos e as novas gerações da música portuguesa. “As playlist vieram destruir a ideia de que os radialistas podem ser criativos, podiam escolher as canções que quisessem, podiam optar pelo estilo de músicas que mais lhes conviesse. Hoje estão sujeitos a uma playlistque é imposta e que, muitas vezes, nem é feita por pessoas portuguesas. Na rádio já não se diz quem é o autor da música ou o autor do poema e, muitas vezes, nem sequer quem canta. As músicas passaram a ser uma espécie de puzzle e os radialistas passaram a ser protagonistas. E isto é altamente prejudicial ao próprio mercado da música.”A atitude resultou? Na sua opinião, conseguiu separar o trigo do joio. “Mas querem tirar uma fotografia dessas? Podemos tirar, mas vestido”, diz-nos. Não está a brincar. O sofá ainda lá está, numa das salas da quinta de Mogofores. Compartimento que mantém a aura do passado, com livros antigos que contam a história da Curia — em que o seu bisavô teve um papel preponderante —, quadros de gente de família em pose majestosa, um lindo piano de cauda, janelas com vista para o jardim.

Mogofores parece uma freguesia tranquila, não chega aos 1000 habitantes. A quinta de José Cid fica perto do colégio salesiano, da estação de caminhos-de-ferro por onde passa a linha do Norte. A piscina tem água, as cadelas brincam no jardim, um rapaz anda de carrinho de mão a limpar as cavalariças. Gabriela, com quem casou há pouco mais de um ano, está ausente. O telemóvel toca de vez em quando. Querem marcar mais concertos. Pede para ligar mais tarde. Ali tem tudo o que precisa para descansar e criar. Escreveu, há dias, um poema que baptizou de Rumo ao Norte e que não sabe a quem dará para musicar. Talvez não saia dali. Gosta de transformar em canções as palavras de poetas. Natália Correia é uma das favoritas. “Sophia Mello Breyner é brilhante.” Ultimamente tem cantado poemas da prima Maria Manuel Cid e de Maria Luísa Baptista do Cartaxo. O telemóvel avisa que está na hora de ir buscar a sua Gabriela pintora à Curia.

--%>