Fugas - Viagens

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    África do Sul, Sun City Thomas White/Reuters
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    África do Sul, Joanesburgo Mike Hutchings/Reuters
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    Uruguai, Colónia do Sacramento Jorge Adorno/Reuters
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    EUA, Waikiki Beach em Honolulu, Havai Chris Wattie/Reuters
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    E navegar num submergível para espeitar da janela a Grande Barreira de Coral australiana? OVE HOEGH-GULDBERG/UNIVERSITY OF QUEENSLAND/REUTERS
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    Mapa-múndi da volta ao mundo DR
  • "Fogg tinha razão: o mundo diminuiu. É tudo uma questão de tempo. E de dinheiro." REUTERS/NASA

Anatomia de uma volta ao mundo em 27 dias

Por Amilcar Correia

Phileas Fogg deu a volta ao mundo em 80 dias numa ficção de Júlio Verne. Passados 63 anos, Jean Cocteau concretizou-a e escreveu um livro de viagens. Amílcar Correia foi mais rápido: 650 horas, 19 voos, muitos saltos entre continentes. De facto, Fogg tinha razão: o mundo diminuiu. É tudo uma questão de tempo. E de dinheiro.

O mundo já não era tão grande como “antigamente” quando Phileas Fogg aceitou a aposta de lhe dar a volta em 80 dias. O célebre personagem que Júlio Verne forjou para a sua novela de 1873 tinha razão: o mundo diminuíra. Era matematicamente plausível – ainda por cima para uma personagem que o autor asseverara ser tão “exacto quanto um cronómetro” – fazê-lo “em 1924 horas, ou seja, 150 mil e 200 minutos”. Para alguém que achava que o imprevisto não existia, Fogg acreditava ser possível saltar matematicamente dos comboios para os navios a vapor e destes novamente para os comboios.

– Eu saltarei. Matematicamente – dizia o personagem à mesa do Reform Club de Londres, enquanto jogava, mecanicamente, mais uma partida de whist.

Fogg, ou Verne, tinha, de facto, toda a razão: não só o mundo encolhera, como também era tudo uma questão de tempo. As desventuras africanas de Mungo Park, à procura das fontes do Níger e da cidade de Tombuctu, inspiraram uma classe de viajantes ou de exploradores que tanto desagradou a Claude Lévi-Strauss. Mas todos eles, e Lévi-Strauss aspas aspas, contribuíram para tornar o planisfério mais plano, familiar e reduzido aos nossos olhos de europeus. Mungo Park, René Caillié, David Livingstone, John Speke, Samuel Backer, Henry Stanley, Richard Burton, James Bruce ou Joseph Thomson escreveram relatos e epopeias que desvendaram terras e costumes misteriosos, enigmáticos ou bárbaros, consoante o ponto de vista de cada um. Já muitos séculos antes Montaigne tinha explicado que chamávamos bárbaro a tudo aquilo a que não estávamos acostumados; que era bárbaro que os franceses fossem tão selvagens como aqueles a quem chamavam selvagens e ao mesmo tempo tão cegos com os seus próprios defeitos.

Na época vitoriana, os livros dos exploradores exerceram um enorme fascínio; eram documentos ou reportagens de grande circulação. Algumas dessas obras foram autênticos sucessos na época do seu lançamento e convenceram muitos outros aventureiros ou oportunistas a seguirem-lhes as pisadas por aqueles territórios que continham, para a ânsia dos europeus, demasiados espaços em branco. Daquele rol, quase todos eles eram escoceses, todos eles eram britânicos, à excepção de René Caillié, e quase todos agiram como exploradores, aventureiros (com ou sem causa) e tinham na retaguarda um mercado livreiro e um público ávido de ler os seus contratempos, privações e façanhas. E nenhum deles tinha a pressa do personagem de Verne. Presume-se que a única excepção fosse mesmo a do galês Stanley.

Capello e Ivens, ou Serpa Pinto, Duarte Barbosa ou Pêro Pais, exploradores, marinheiros, comerciantes ou missionários, também andaram por esse planisfério amplo e desconhecido e escreveram o que tinham a escrever. Uns eram escritores, outros apenas escreventes. Cada país teve os seus viajantes e exploradores na exacta medida das suas pretensões em se apoderar de uma fatia dos continentes-alvo de disputa mundial. Na maioria dos casos, é claro que os exploradores eram batedores do colonialismo. As suas descobertas (um conceito tipicamente europeu, como se os nativos não tivessem sido os primeiros a descobrir as Montanhas da Lua, o lago Vitória ou a cratera de Ngorongoro, para falar apenas no caso de África) serviram interesses científicos, comerciais e políticos. Só poderia ser europeu, de tão arrogante que era, o hábito de designar de novo o que já tinha nome.

Foram essas mesmas manchas em branco do globo, prestes a serem definitivamente preenchidas, mas algumas das quais ainda por nomear, que também inspiraram Bronislaw Malinowski a sonhar transformar-se no “Conrad da antropologia”, e a diminuir a ignorância que nos separava das culturas que tínhamos (e continuamos a ter) dificuldade ou desinteresse em conhecer, entender ou aceitar. Malinowski fazia na sua infância o que ainda hoje fará qualquer criança curiosa com o rodopio incessante do globo: fixar um dedo e exclamar:

– Irei lá quando for grande. 

E enquanto Malinowski se sentava à frente de um mapa de África em branco, com vontade de um dia partir e de o conhecer, Joseph Banks e Roderick Murchison, da Real Sociedade de Geografia inglesa, procuravam descobrir, conquistar e explorar os dois grandes mistérios do século XIX: as fontes do Níger e as do Nilo. A nascente do Nilo foi um gigantesco enigma, como antes o fora o percurso do Níger ou a localização de Tombuctu – as suas primeiras tentativas de resolução remontam a Heródoto.

Sim, era tudo (e ainda o é) uma questão de conhecimento e de tempo. O escritor francês Jean Cocteau, por exemplo, afirmava que podia viajar tão bem e tão rápido como fizera a personagem de Verne. Desafiado pelo Paris-Soir e acompanhado do secretário e amante Marcel Khill, a quem chamou Passepartout no relato dessa viagem, o Mon Premier Voyage, Cocteau concretizou a profecia literária do seu conterrâneo em 1936: deu a volta ao mundo em 80 dias e demonstrou que a estória de Verne havia deixado de ser ficção científica! Ponto.

Hoje, é mais excêntrico continuar a jogar whist num qualquer Reform Club do que dar a volta em menos dias do que aqueles que Phileas Fogg ou Jean Cocteau necessitaram para vencer uma aposta ou responder a um desafio literário.

Vejamos. Dar a volta ao mundo com partida e regresso a Lisboa (evitando os ameaçadores céus europeus de Agosto passado, mês fatídico para o transporte aéreo), com escalas e estadas em África, América do Sul, América do Norte, Ásia e Oceânia, foi exequível, digamos, façamos as contas, em... 27 dias. Foram necessárias 19 viagens de avião, num total de 95 horas e 91 minutos de voo, praticamente quatro dos 27 dias de viagem, para circunvagar por aeroportos, capitais e metrópoles, ruínas incas, estradas panorâmicas com leões marinhos e baleias, praias resplandecentes, etc., de Luanda, Joanesburgo, Sun City, São Paulo, Buenos Aires, Colónia do Sacramento, Lima, Cusco, Machu Picchu, São Salvador, Los Angeles, São Francisco, Honolulu, Guam, Hong Kong, Singapura e Zurique (ver infografia). Juntem-se-lhes quatro curtas viagens de barco (no rio da Prata e no mar do Sul da China), uma admirável viagem de comboio de Cusco a Machu Picchu e as obrigatórias auto-estradas entre Los Angeles e São Francisco. Duração total, para inveja do personagem literário inglês e do escritor francês: 650 horas, ou seja, 39 mil minutos. Visto assim, o mundo tornou-se ainda mais pequeno do que era à mesa fictícia de um clube masculino do centro de Londres ou na ficção científica do autor de Nantes.

No interior de uma manga, em contagem decrescente para a entrada de mais um voo, sem saber se podia igualar Cocteau em classe e conforto, pensava como Fogg, com uma ligeira nuance:

– Eu embarcarei. Matematicamente.

A rapidez...

A norte de Joanesburgo, Sun City já não é a mesma inexpugnável fortaleza africânder – o paraíso branco artificial com praias artificiais, cinemas, reservas naturais, casino e tudo o mais que se possa imaginar neste paraíso imaginário. Mas permanece como lenda de um mundo perfeito no meio da selva, um conto de Kipling numa versão da Disney. Sun City – ex-líbris do embargo cultural ao apartheid – é agora um local transponível pela curiosidade e pelo poder financeiro dos black diamonds, a classe negra mais abastada sul-africana, cuja entrada estava outrora reservada à função do criado. Agora, pequenas cidades de assalariados engordam a sua cintura. Agora, quando Sun City acorda, também desperta para os petrodólares da península arábica, para os muitos novos-ricos asiáticos, enfim, para todas as cores e todas as moedas. Joanesburgo, nos seus ricos enclaves de Sandown, é também ela mais a preto e branco do que alguma vez foi. Porque antes era simplesmente monocolor. E basta existir uma evocação de Mandela, ora uma enorme escultura a abençoar a cidade ora uma representação insuflável, para acicatar o desejo de uma selfie com o velho amigo Madiba. O que não quer dizer – atenção – que os guetos se tenham tornado incompatíveis com uma democracia, seja ela qual for.

Em Buenos Aires, não se acorda da mesma maneira que em Sun City. Na Argentina, procura-se o refúgio sadio a norte de Buenos Aires, no paraíso lacustre do delta do Paraná ou dos seus condomínios fechados. Ou do outro lado do rio da Prata, na Colónia do Sacramento, uruguaia, mas de velho parentesco português, uma árvore genealógica caída no olvido. Nas ruas da grande metrópole, os arbolitos tomaram conta das ruas com o seu negócio: o câmbio ilegal nas ruas de maior circulação de peatones. São como árvores sopradas pelo vento, que reproduz uma cantilena em uníssono: “Câmbio, dólar, euro, real”.

Os peatones brasileiros visitam-na pela proximidade, pela extravagância do frio de Agosto, pelo charme europeu ou pelo encanto que as grandes salas de tango e os cantores de bigode à Clark Gable reservam às respectivas “galeras”. Enquanto isso, Kirchner vaporiza-se de helicóptero pelos céus de Buenos Aires para não escutar as tristes milongas e evitar a Avenida 9 de Julho. A crise é o dia-a-dia e Borges uma coisa de intelectuais. Grades e polícia permanente protegem a sua Casa Rosada (cujas janelas Evita Perón eternizou nas suas litanias populistas) dos protestos dos veteranos das Ilhas Malvinas, das mães de Maio que insistem em saber o que aconteceu aos filhos que a ditadura militar evaporou ou de todos os desafortunados dos solavancos de uma economia catatónica.

No Peru, ex-presidentes da república estão presos, outros ainda a monte, o caminho iluminado da guerrilha maoísta parece ter-se ofuscado de vez e um prato de ceviche na marginal de Lima faz esquecer a morrinha e as obras que fazem lembrar o Dubai.

Nestes tempos de huelga, lá em cima, a 3500 metros de altitude, no património da humanidade, os cães vagueiam pelo lixo das ruas de Cusco, alguns com as mantas caseiras que protegem o seu corpo pelado do frio. Como já perceberam, os cães no Peru não têm pêlo. Os de Buenos Aires nem padecem da temperatura nem de abandono: o paseador de perros é uma profissão respeitada e importante.

O turismo é um vai-e-vem constante de Lima para Cusco e de Cusco para Machu Picchu. Se os imperadores incas regressassem hoje às suas antigas cidades andinas certamente que se espantariam com o número de mulheres polícias, com a substituição das suas construções pelas catedrais católicas e, sobremaneira, pela forma como Machu Picchu retirou a Cusco o título de “umbigo do mundo”. A ruína inca, tantos séculos oculta e desconhecida de todos, menos dos indígenas locais, é um ponto de confluência de viajantes e de turistas de tudo o mundo. Há quem vá a pé, há quem o faça de autocarro e de comboio. Não há outro emprego para um jovem em Cusco que não esteja directamente ou indirectamente relacionado com o turismo. E não é por falarem quechua. E não é, convenhamos, caso único de mono-indústria no globo.

E o que é que esta América tem a ver com as outras? Com esta, por exemplo, com a sua metade wasp e a sua metade mexicana? Com Los Angeles e as suas praias (Marina del Rey, Santa Mónica, Venice Beach, etc.) ou com os seus retiros de luxo em Santa Bárbara, exclusivos da constelação de estrelas que gravita no céu à volta de Hollywood? Com o Pacífico pela frente, estes são pequenos e ordenados centros urbanos, engalanados, luminosos e ensolarados, que acolhem quem singra e que devolvem os losers recalcitrantes. O que é que a América de Buenos Aires ou a de Cusco têm a ver com a pequenez, pacatez, riqueza e conforto, obviamente wasp, também, de Santa Ignez ou de Carmel, a Carmel de Clint Eastwood?

Enfim, com o calor e abastança desta Califórnia? Ou com a licenciosidade ou com a crueza das ruas de São Francisco, cinzentas e frias no mês de Agosto, com as paragens de autocarro da Baixa ocupadas por veteranos de guerra, crianças perdidas ou um rol significativo de pessoas sem-abrigo? Nada, aparentemente nada. Mas, mesmo assim, o mundo está mais pequeno. E mais semelhante, quiçá. Há várias formas de classificar o que é o “umbigo do mundo”, como diziam os incas, ou de entender e apreciar o que é um oásis. Não é um dislate aplicar o substantivo masculino a Buenos ou a Cusco, a São Francisco ou ao Havai. A cada leitor a sua escolha. 

Repare-se, ademais, na influência do turismo asiático, já não apenas o japonês, mas sobretudo o de origem chinesa, em todo o Pacífico. Se os japoneses, a despeito de Pearl Harbour, escolhem o Havai para casar e cenário de intermináveis sessões de fotografia, os chineses escolhem qualquer lugar que possua a concentração destas três variáveis: um hotel XL com largas centenas de quartos, um centro comercial labiríntico com todas as marcas europeias de notoriedade planetária (automóveis, roupa, relógios, carteiras, por aí fora) e um casino aberto 24 horas por dia, de preferência. Tudo intercomunicável, note-se. Se sabem o que é o pachinko sabem do que é que os nipónicos são capazes de fazer quando têm uma máquina de jogo pela frente.

Não se trata, pois, de um modelo exclusivamente macaense, onde já existem 24 casinos – hoje, esse número já deve ter crescido –, uma vez que os estabelecimentos de jogo continuam interditos em solo administrativamente chinês. Os casinos crescem a uma progressão geométrica em Coloane e no que sobra do resto da antiga colónia portuguesa, mas também proliferam em todos os outros países que procuram estratégica (e desesperadamente) turismo em massa oriundo da China. Os casinos crescem na progressão inversa à da influência portuguesa na cultura macaense, da qual sobram alguns jornais, poucos restaurantes, nos quais mal se fala português, e nas nostálgicas placas das ruas com alguns nomes familiares. Há mais selfies por metro quadrado nas ruínas de São Paulo do que em Portugal inteiro (incluindo regiões autónomas).

Também cidades australianas como Brisbane ou como a minúscula e pacata Cairns já não sobrevivem com a mesma desfaçatez sem o faites vos jeux. Aparentemente, à imagem de Sun City, os aborígenes de Cairns só são avaliados pelas moedas que têm nos bolsos e não pela cor, pela biografia ou pelo preconceito, embora ainda não tenham a opulência dos black diamonds da África Austral. E a existência de um casino, do jogo, tanto pode ser um pretexto de Cairns para uma visita à Grande Barreira de coral como a própria razão da viagem até à Austrália. Mas ainda ninguém é obrigado a entrar.

É verdade, o mundo está ao nosso alcance. A acessibilidade mudou como nunca antes mudara, embora tudo dependa, mais uma vez, do tempo. E, já agora, do dinheiro. Fogg colocou um punhado de notas num saco de viagem e entregou-o ao seu Passepartout, o criado francês que acabara de contratar, antes de os dois se encaminharem para a estação de Charing Cross:

–  Tome bem conta disto, pois estão lá dentro 20 mil libras – recomendou o cavalheiro da Saville Row.

Júlio Verne escreve que Passepartout quase deixou cair o saco, “como se as vinte mil libras fossem de ouro, e o seu peso o fizesse vergar”. Hoje, 20 mil libras equivalem a cerca de 27 mil euros, um pouco mais que o montante necessário para contratar uma volta ao mundo (ver como ir).

E então? Navegar num submergível para espeitar da janela a Grande Barreira de Coral australiana, escalar Machu Micchu e mascar folhas de coca, ouvir tango ou comprar livros nas fabulosas livrarias de Buenos Aires, mergulhar nas águas de Waikiki, em Honolulu, fazer o roteiro das ruas dos filmes e séries norte-americanas rodados em São Francisco, ficar encandeado no terraço de um último andar de Hong Kong (com os néones dos arranha-céus em volta, e a sua paleta de arquitectos, de Norman Foster a I. M. Pei), passear na rua de Wenscelau de Moraes em Macau ou ficar pasmado diante do pechisbeque luxuoso de Singapura valem uma volta ao mundo? Retórica, evidentemente.

“O que trouxera [Phileas Fogg] desta longa e cansativa viagem?”, questiona Verne, coloquialmente. “Nada, diz o leitor? Talvez; nada a não ser uma mulher encantadora, que, por mais estranho que pareça, fez dele o mais feliz dos homens! Muito francamente, quem não daria a volta ao mundo por muito menos?”, conclui o autor. Foi o caso.

... e o remoto

O romantismo das caravanas de camelos ou dos transatlânticos são caminhos de outros séculos. A Índia de Marco Polo, a África de Caillié, o Oriente de Nerval, o Tibete de Heinrich Harrer, a Pérsia de Anne Marie Schwarzenbach, a Sakalina de Tchekhov, mas também a Alice Springs ou a Patagónia de Chatwin. As ideias de remoto ou de recôndito estão “hoje ao nosso alcance através dos itinerários traçados nos mapas definitivamente varridos de manchas brancas”, diz Michel Ofray, o da Teoria da Viagem – Uma poética da Geografia.

A ideia de remoto é uma ideia subjacente a qualquer vontade de partir; seja o sonho de um resort exclusivo e escondido no delta do Okavango ou o de um resort numa ilhota da Melanésia bafejada por um oceano. Como diria Ismael, personagem de Melville no Moby Dick: “Sinto-me sempre irremediavelmente atraído por aquilo que é remoto e misterioso.” Ou: “Adoro navegar em mares perigosos e desembarcar em litorais hostis e bárbaros.” Os livros de Melville estão cheios de sósias ficcionais e Ismael será um deles. Ao desembarcar nas ilhas Marquesas, no seu “cativeiro indulgente”, Melville foi tratado com se fosse uma espécie de príncipe e vagueou por várias ilhas do Pacífico, recolhendo as histórias que originaram os livros que o celebrizaram. E foi assim, graças a essa vagabundagem, que Malinowski, esse personagem “conradiano”, transformou a antropologia. Se Conrad trocou a solidão de marinheiro pela solidão de escritor, como observa Lindqvist, Malinowski trocou a solidão da academia pela solidão da antropologia nas ilhas Trobriand.

Uma ilhota afastada, ignorada de todos, o paraíso na terra, longe da modorra da família ou do trabalho, com praias polvilhadas de palmeiras, era uma imagem idílica e fascinante para aventureiros como Melville, essa espécie de Robinsons Crusoes de mais ossos que carne. Dada a metáfora do remoto, privado, exclusivo, paraíso, enfim, do folheto imaculado de que a nossa necessidade de felicidade e de ilusão tanto precisa, essa imagem ainda continua a ser – e não apenas para os vagabundos das praias, dos esfarrapados que habitam os Náufragos no Paraíso de James C. Simond –, o que sempre foi: idílica. É o que o comum dos mortais tanto aspira, sem escorbuto, e com transfers, room service, wi-fi. E ninguém diz que não a uma piscina. E também por que é não podemos dizer não a tudo isso?

Hoje existem denominadores comuns do turismo que encurtam e nivelam ainda mais o planeta e as suas diferenças e que poderiam enojar ou facilitar a vida de Fogg ou de Cocteau. Esses denominadores comuns não são só os aeroportos, os hotéis, os spas, os resorts, os lodges, etc, e os seus respectivos serviços, que se mimetizaram; padronizaram-se. Aconteceu, precisamente, o mesmo com os viajantes e os turistas, com os seus tablets e smartphones (e respectivos selfie sticks), transformados nas novas câmaras fotográficas ou de vídeo, os GPS ou a parafernália de aplicações (e um dia destes os óculos de realidade aumentada). Tudo para registo de uma memória futura; de uma posteridade que a maré apagará com a mesma facilidade com que apaga as belas estórias que as aborígenes Warlpiri escrevem na areia.

Somos presas de um padrão de consumo, mas também de uma “extraterritorialidade”, por pertencermos instantaneamente a locais de escala ou de permanência que sabemos que serão sempre temporários. Sabemos que nunca pertenceremos a estes locais e que nunca pertenceremos a qualquer tempo preciso: os fusos horários andam para trás e para a frente com a mesma displicência de um limpa-pára-brisas. Para citar uma oportuna e saltitante frase de Peter Carey, trata-se de “uma noite muito longa aos saltos por cima da Terra”. Na verdade, uma volta ao mundo são várias noites muito longas aos saltos por cima da Terra.

Mas a padronização do turismo e do que lhe é intrínseco, sobretudo reflexo de um massificado padrão de consumo, ainda não chega para eliminar a riqueza da diversidade e para nos fazer permanecer inamovíveis, numa época em que a mobilidade e essa diversidade são, mais do que nunca, opções de inconformidade. Isso não basta para nos inibir de andar aos saltos por cima da Terra. Literalmente.

E depois “ficamos imediatamente presos a este estranho paradoxo: o planisfério parece pequeno e o mundo vasto”, como nota Michel Ofray. Que acrescenta o que vem a seguir: “Mas o inverso também é verdade: o planisfério é vasto e, contudo, o mundo pequeno porque, não obstante a sua natureza e a sua extensão, qualquer lugar está porém ao nosso alcance e, graças aos transportes modernos, cada vez mais rapidamente.” Sim, rapidez. A velocidade mudou o conceito de viagem. Afinal, não foi ela o segredo de Fogg? Afinal, também ele se poderia socorrer da Teoria da Viagem para exclamar em mais um jogo de whist: “Todos os destinos se tornaram possíveis – é tudo uma questão de tempo.”

O que nos deve querer dar a volta ao mundo – e, já agora, há quem o faça das maneiras mais imaginativas – é conhecer em sentido lato, bem lato. Seja aproveitando a rapidez, seja pregando a lentidão: a caminhada a pé, a montada de um burro ou de um camelo, o barco a vapor ou o cruzeiro, as roulottes ou as bicicletas ou o eterno comboio. Rimbaud foi a pé, bem mais do que Graham Greene. Cendrars e Theroux utilizaram o comboio; Jack London vagabundeou pelas linhas de ferro como quis; Monod sempre quis o camelo para divagar pelas dunas do Sara; Conrad ou Melville os barcos, fossem estes quais fossem. Somerset Maugham, um personagem diferente, transportava-se de pónei, com uma data de servos e de mulas, e interrogava-se, em plena selva birmanesa, sobre as razões pelas quais os exploradores do século XIX não falavam de comida nos seus relatos. Bowles usou o barco, o avião e até num jaguar se passeou pelo deserto marroquino.

Na primeira das novelas deste último, em “Um Céu que nos Protege”, há um personagem que explica, na sua óptica peculiar, as diferenças entre um turista e um viajante. Port, assim se chama ele, defendia uma teoria: o primeiro é o que está sempre a ir-se embora, o segundo é o que permanece. No fundo, uma questão de pressa. Enquanto o primeiro movia-se sempre com a pressa de regressar a casa, o outro movia-se lentamente, ao longos dos anos, de um lugar para o outro.

Duração e lentidão acabam por ser questões colaterais. Conhecer é diferente de descobrir, conquistar ou explorar, por pressupor vontade, interesse ou fascínio de encontrar o “outro”; o desconhecido. Somos sempre um outro perante alguém, mas a definição do outro foi feita a partir de nós, brancos, europeus. Não é verdade que muitos dos viajantes ou turistas também se movem à procura de autenticidade e pureza, como escreve Benedict Allen em The Faber Book of Exploration; de culturas imaculadas que resistiram ou não conheceram a mecanização e a globalização? No fundo, sempre nos movemos à procura do que não conhecemos.

Dizia Kapuscinsky, um apaixonado da História de Heródoto, que a considerava como a primeira grande reportagem da literatura universal, que não é possível definir o que é a nossa identidade sem a confrontarmos com as dos outros. A necessidade imperiosa de Heródoto em “cruzar a fronteira” destinava-se a encontrar resposta para a pergunta da sua infância: de onde vinham os barcos que se aproximavam no horizonte? Conhecer, querer conhecer, reside em saber de onde vêm, afinal, esses barcos que tanto intrigaram Heródoto ou para onde vão esses barcos que tanto arrastaram Melville. E hoje Heródoto perguntaria de onde vêm aqueles aviões e quanto duram aqueles voos.

Cada um saberá da lonjura de que carece. Afinal, o homem do tempo e do espaço, dos recantos mais remotos da alma, nunca se afastou de casa mais do que 160 quilómetros. E não sabemos o que Kant perdeu por não se ter distanciado de Königsberg (a actual Kalininegrado). Por outro lado, o destemido Richard Burton dizia a quem o quisesse ler e ouvir: “Os homens que vão à procura da nascente de um rio estão simplesmente à procura de algo que falta dentro deles e nunca encontram.” Ele sabia do que falava.

A uns e a outros, boa viagem.

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GUIA PRÁTICO

Como ir

A Volta ao Mundo que a Across está a organizar, em parceria com a Hifly e com o broker aéreo EmptyLeg, tem partida de Lisboa a 1 de Agosto de 2015 e seguramente que será mais confortável e rápida do que aquela que o personagem de Júlio Verne fez no célebre A Volta ao Mundo em 80 dias, escrito em 1873. A viagem, de 28 dias, inclui um avião A340 da Hifly, fretado exclusivamente para o percurso e paragem nos seguintes locais: Paris (França), Istambul (Turquia), Joanesburgo e Sun City (África do Sul), Malé (Maldivas), Hong Kong, Macau, Brisbane e Cairns (Austrália), São Francisco e Honolulu (Havai, Estados Unidos da América), Cusco e Machu Picchu e Lima (Peru), Buenos Aires (Argentina) e Colónia do Sacramento (Uruguai). As viagens incluem guias em português, inglês, francês e espanhol, um médico a bordo, alojamento em hotéis de cinco estrelas e as formalidades de aeroporto devidamente tratadas com antecedência. O preço é de 25 mil euros, com um suplemento de cinco mil para uma classe superior ou para um quarto individual. Para mais informações, contacte a Across através do número de telefone 217817470 ou pelo seguinte endereço de email: travel@across.pt. Pode consultar o programa em www.acrosstheworld.pt

A Fugas viajou a convite da Across

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