Fugas - Viagens

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O festival dos homens nus

Por Sousa Ribeiro

Todos os anos, no terceiro sábado do mês de Fevereiro, quando o frio chega em força, Okayama acolhe um evento que tem tanto de original como de bizarro mas no qual os participantes a nada mais aspiram do que a um pouco de sorte, a um ano de felicidade.

- Em duas palavras, apenas? Não é fácil. Bem...

Aya Inoue afaga o cabelo como se, com aquele gesto espontâneo, procurasse avivar na memória as recordações e encontrar resposta para a minha questão.

Sorri mas parece ter medo das palavras que lhe possam assomar aos lábios pintados de um vermelho carregado.

- Excitante e único. Mesmo quem fica de fora, limitando-se a observar, vive numa permanente excitação.

Aya Inoue já assistiu por duas vezes ao Saidaiji Eyo, o festival dos homens nus que todos os anos, no terceiro fim-de-semana de Fevereiro, agita a habitualmente serena cidade de Okayama. Escutando a jovem japonesa, enquanto fito os seus olhos brilhantes, imagino já, na antecâmara do espectáculo, o tumulto. Mas faltam umas horas para, como deduzo do arrebatamento de Aya Inoue, se atingir o verdadeiro clímax de um dia cheio de emoções para todas as idades. Outras manifestações culturais vão prender ainda os olhares, começando com a participação das crianças em programas com nomes tão exóticos como Shounen Hadaka Matsuri, Mochi Nage, Gofukuzutsu Soudatsu e Houzutsu Soudatsu, na verdade torneios que, de forma original, envolvem bolos de arroz e tesouros cilíndricos. 

- Vamos então?

Como que contagiado por aquele entusiasmo pueril, acompanho Aya Inoue até à estação de Okayama e, uns minutos mais tarde, chegamos a Saidaiji. A rua, sob um céu com algumas nuvens cinzentas e carregadas, conhece já algum movimento. A pé, cumprimos a última etapa, não mais de dez minutos, até ao templo homónimo e ainda a tempo de presenciar, no meio da euforia organizada, tão característica dos japoneses, os momentos que exacerbam a inquietude dos espectadores – o Hounou Embu, com  performances de grupos femininos de dança universitários e de clubes locais, logo seguido do Eyo Dayko, em que mulheres, tocando em tambores cor de vinho, procuram elevar a moral dos participantes e apelam aos deuses para que os protejam.

- Agora tens de te focar naquele lado.

À excepção de algumas luzes, quando me viro, de acordo com a indicação de Aya Inoue, pouco mais perscruto do que a penumbra. A japonesa, bem-humorada, ri-se.

- Tens de esperar. Aqui bem perto corre o rio Yoshii e, por cima dele, o céu será iluminado por uma sessão de fogo-de-artifício.

Entre o final do espectáculo de luz e cor, que se prolonga por cerca de trinta minutos, e o início do Saidaiji Eyo ainda é necessário aguardar umas boas horas, como se aquele hiato existisse para perturbar ainda mais os espíritos sobressaltados do povo. Aya Inoue aproveita esse tempo para me fazer perguntas sobre Portugal mas também para me fornecer dicas sobre locais a visitar quando o pano cair sobre o festival. E eu, cheio de vontade de os ver, com a sede de viajar que só pode ser comparada à de um camelo após a travessia de uma grande extensão do deserto, sinto que se redobra a minha ansiedade – a hora do festival que não chega e o foco já em nomes como os jardins Korakuen, o castelo, que é o símbolo da cidade, mais um outro, o de Bitchu-Matsuyama, a pouco mais de uma hora de Okayama.

 

Amálgama de corpos

Agora segue-se um silêncio e, momentaneamente, tudo mergulha na escuridão. Sinto o meu coração a bater como se fosse saltar.

Isto promete.

Um grito ecoa nos céus nocturnos.

- Wasshoi, wasshoi, é o que eles estão a gritar.

Quase não consigo ouvir Aya Inoue. Mas sei, por experiência, que este é um dos cânticos mais escutados em festivais do país, com mais do que um significado mas relevando sempre a paz e a união. Takayuki Tunashima, um amigo que a japonesa me apresentara no dia anterior, está entre os participantes que se precipitam, num movimento frenético, para o interior do recinto principal do templo. Mais tarde, quando a noite quer dar lugar à madrugada, Takayuki Tunashima, já recomposto, parece feliz por partilhar comigo a experiência vivida.

- Depois do festival, sinto-me sempre pleno de satisfação. Esta não foi a primeira vez em que participei mas, mesmo assim, todo o meu corpo treme de excitação no momento em que, depois de vestir o mawashi, me aproximo do palco da cerimónia.

Do ponto onde me encontro, o meu olhar vagueia de um lado para o outro, como confuso, perdido naquele mar de corpos nus – nus porque apenas os vejo da cintura para cima mas sei, porque Aya Inoue me traçou um retrato fiel do que me esperava, que vestem uma tanga branca, o mawashi, como brancas (tabi) são as meias que calçam. Os homens, impacientes e enfurecidos, lançam-se para a frente, é como uma amálgama de corpos lutando ferozmente pela conquista do melhor lugar para apanharem os shingi

Takayuki Tunashima também haveria de recordar esse momento, mais tarde, sentado à mesa a beber um copo de vinho português.

- Nessa altura, não consigo respirar porque todo o meu peito está comprimido. É por isso que, apesar do muito frio que se faz sentir, é atirada água sobre os participantes. À medida que se aproxima o momento do lançamento dos shingi, o lugar enche-se de uma atmosfera estranha.

Os shingi são um pauzinhos sagrados da sorte, com não mais do que quatro centímetros de diâmetro e 20 de comprimento, lançados por um padre de uma janela situada uns quatro ou cinco metros acima das cabeças de 9000 homens. Quem tiver a sorte de se apoderar de um deles e de o colocar na vertical numa caixa de madeira designada masu, a qual está cheia de arroz, pode considerar-se um homem de sorte e abençoado com um ano de felicidade.

Tenho dificuldade em acreditar no que os meus olhos observam, um shingi, mesmo na mão de um dos participantes, salta no ar, é disputado, há um furor homérico, o cenário assemelha-se a um jogo de râguebi – é complicado estabelecer uma fronteira entre o fervor e a ferocidade.

E agora me lembro que ainda não escrevi quantos shingi são atirados.

Além destes, são arremessados molhos de tiras de salgueiro, cerca de uma centena, objectos que também são vistos como um sinal de sorte mas igualmente difíceis de apanhar pela multidão que não se contém.

 

Dos mais excêntricos

 

O Saidaiji Eyo é considerado um dos três festivais mais excêntricos do país, com uma história que ultrapassa os cinco séculos (cumpre este ano a sua 508.ª edição) e uma popularidade que tem crescido de tal forma nos últimos tempos que a organização já disponibiliza inclusive um formulário que os turistas podem preencher caso pretendam participar no evento. Tudo começou com a tradição de os devotos receberem, todos os anos, e também lançados pela mão de um padre, uns papéis considerados talismãs, denominados Go-o. Uma vez que quem os recebia era bafejado pela sorte, o número de pedidos foi aumentando de forma assustadora – mas o facto de facilmente se rasgarem fez com que fossem substituídos pelos pauzinhos de madeira que nos dias de hoje seduzem milhares de homens sem receio de enfrentar por vezes temperaturas negativas.

Aya Inoue permanecera em silêncio o tempo todo, à mesa, escutando com atenção a descrição tão detalhada de Takayuki Tunashima. Mas, já perto do final, a jovem, como se ainda estivesse a viver aquele momento tão próximo, não se conteve.

- Não conheço um festival mais excitante, apesar de se realizar em pleno Inverno.

Takayuki Tunashima sorriu, bebeu um golo e retomou a palavra.

- Naqueles instantes, sinto uma exaltação como nunca senti e, em simultâneo, a estranha sensação de que o frio e a dor começam a ser aliviadas. Só mesmo quem participa no festival é que pode ter este tipo de sensações.

É a hora da despedida, cada um segue o seu destino, cada um com as suas memórias e as imagens a pesarem no cérebro. Mas a jovem tem algo mais a dizer-me.

- Já me esquecia, se tiveres tempo visita Kurashiki, é um lugar de uma beleza singular, fica próximo de Okayama e ocupa um lugar especial no coração dos japoneses.

Tempo não me falta.

 

Há mais Okayama

 

O dia desperta cheio de sol, as conversas decorrem em voz baixa nas ruas calmas de Okayama, onde nunca se sente – pelo menos quem a visita – o peso das multidões. Gosto de passear ao longo do pequeno canal que atravessa a cidade e, depois, mal a manhã avança, de apanhar um eléctrico que me deixa próximo de uma área ainda mais serena. Atravesso a ponte de ferro que cruza as margens do rio Asahi e, lembrando-me de Aya Inoue, não tardo a encontrar uma das entradas para Korakuen, considerado, juntamente com o Kenrokuen, em Kanazawa, e o Kairakuen, em Mito, um dos três mais belos jardins paisagísticos do Japão.

Mal os olhos se plantam naquele cenário verde sob um céu azul, torna-se menos difícil entender o estatuto de excelência de que goza e o facto de, todos os anos, atrair milhares e milhares de japoneses. Os trilhos, sempre limpos, serpenteiam por entre espaços relvados, por entre flores e plantas, aqui e acolá descobre-se uma ponte elegante, pequenas casas de chá perfeitamente integradas na paisagem e debruçando-se sobre as águas de um lago tão limpo que parece que acabou de ser varrido; mais para lá, uma colina suave de onde se obtém a melhor panorâmica sobre o Korakuen, como uma varanda sobre campos de arroz, de chá, cerejeiras e bordos, essas árvores que em determinadas alturas do ano mais parecem pintadas pelo pincel de um pintor com grande sensibilidade.

Na segunda metade do século XVII, quando os jardins foram mandados construir pelos senhores feudais locais, como área de recreio para a família e para receberem convidados importantes, o acesso ao público, salvo em raras ocasiões, estava vedado. Só em 1884 (poucos anos após o fim do período feudal), quando Korakuen se tornou propriedade da prefeitura de Okayama, é que o jardim passou a ser um espaço de todos. Alvo de danos consideráveis na sequência de uma cheia em 1934 e bombardeado durante ataques aéreos na II Guerra Mundial, Korakuen foi sempre restaurado de acordo com a sua forma original graças à exactidão dos registos conservados pelos arquitectos.

Contorno o jardim pelo exterior, caminho ao longo de um quilómetro por uma zona ribeirinha entre as pontes Horaibashi e Aioibashi, onde em finais de Março e início de Abril mais de duas centenas de cerejeiras se enchem de flores – fenómeno que no Japão é conhecido por sakura - passo por uma mulher que passeia pela trela um coelhinho branco e, depois de cruzar de novo o Asahi, fico sentado num banco a admirar o castelo onde o sol vai incidindo. Mandado construir (as obras prolongaram-se por oito anos e foram concluídas em 1597) por Ukita Hideie, um dos cinco regentes de Toyotomi Hideyoshi, veste-se quase todo de preto, o que lhe valeu a popular designação de corvo.

Regresso à ponte de ferro e a sua cor branca forma um bonito contraste com o corvo gigante. As águas do Asahi tornam-se mais escuras. O sol derrama a sua última gota de ouro.  

 

Castelo no céu

 

O meu destino inicial era Fukiya mas quando cheguei à estação ferroviária de Bitchu-Takahashi, ao final da manhã, já o autocarro (o serviço é errático) partira para a antiga cidade mineira situada a mais de 500 metros de altitude, ainda na prefeitura de Okayama. Não traçar um plano tem, especialmente no Japão, as suas consequências, mas nos meus planos estava, também, o castelo de Bitchu-Matsuyama (assim designado para se diferenciar do castelo Matsuyama, em Shikoku). A pé, fui diminuindo as distâncias, ora observando os campos de arroz, ora as casas com os seus jardins organizados, venci uma subida íngreme, passei um túnel e, no final, mal saí de uma das bocas deste, um carro, obedecendo ao meu sinal, deteve-se. Ao volante, um homem sorridente, com um vocabulário de inglês curto mas com modos tão delicados, tão educado, que talvez ele sentisse mais falta das palavras do que eu. Uns metros mais à frente, voltou a encostar a viatura à berma da estrada, mesmo ao lado de uma senhora.

- É a minha mulher.

Dela, quando se virava para trás, apenas me chegava o sorriso. Para mim bastava. Dos seus olhos emanava um brilho que me fazia sentir bem. Estacionada a viatura no parque, ele dirigiu-se, sem que eu me apercebesse, à bilheteira e pouco depois estendeu-me um bilhete, pago por ele, para o autocarro que estava prestes a chegar. Não sabia como reagir.

- É a primeira vez que visito o castelo. Vim às compras e, como agora estou reformado, tenho mais tempo para passear.

Juntos saímos do autocarro e juntos fomos subindo o trilho, lentamente, eu com mais dificuldade do que eles, tanto um como o outro já com mais de 70 anos. À chegada, quase meia hora depois, adiantei-me e, desta vez, comprei eu as entradas para os três. O cenário que rodeia a fortaleza deixa qualquer um enlevado de admiração mas o interior, embora bem preservado, pouco tem para mostrar, em contraste com uma história rica e de séculos e um exterior onde os olhos passam mais tempo. O castelo é, na verdade, entre os que sobreviveram, o mais antigo do país e é também a única construção (entre uma dúzia que foi levantada em zonas montanhosas) que se manteve intacta no período pós-feudal. Estando situado a mais de 400 metros acima do nível das águas do mar, o castelo, erguido em 1240, goza igualmente do estatuto de mais alto do Japão – e por se encontrar com frequência rodeado de nuvens, como se nelas flutuasse, mais parecendo uma ilha, é conhecido por castelo no céu. Estranhamente, nem a fortificação oferece boas panorâmicas sobre os vales próximos, cidades e aldeias, nem tão-pouco se deixa ver por entre a vegetação e árvores seculares.

É tempo de iniciar a descida. 

- Não quer que o deixe em Fukiya? Nós vivemos em Kurashiki, conhece? É muito bonito.

Não cheguei a saber o nome deles. Mas tenho-os escritos em caracteres japoneses. Os nomes são como as palavras – por vezes não são necessários.

 

A pitoresca Kurashiki

 

Apanho um comboio regional na estação de Okayama ao início de uma tarde de sol e, em menos de uma hora, já caminho pelas ruas de Kurashiki, por momentos apressando o passo para admirar a cidade com uma luz bonita. Percorro uma rua estreita e coberta onde no terceiro domingo de cada mês tem lugar um interessante mercado, o Sansai-ichi, revivalista de um outro que teve início durante o período Edo (1603-1868) e, de repente, pouco depois de deixar a arcada que actualmente acolhe lojas de comércio e restaurantes, Baikan abre-se para os meus olhos.

De acordo com um estudo recente, realizado a nível nacional, Baikan é, entre os bairros de mercadores, aquele que os japoneses elegem como o mais pitoresco. Na altura em que o shogunato assumiu o controlo da área, há cerca de 300 anos, foi criado um escritório de magistrados e a cidade e o canal conheceram um desenvolvimento que rapidamente transformaram Kurashiki, actualmente com perto de meio milhão de habitantes, num centro de comércio.

Um grupo de turistas, de chapéus cónicos na cabeça, ocupa posição dentro do pequeno barco a remos que os irá levar a dar um passeio pelo canal bordejado de casas baixas que a esta hora se reflectem nas águas como num espelho. Mesmo um banco e o posto do turismo estão abrigados em edifícios históricos restaurados e todo o distrito, que afortunadamente escapou a calamidades naturais e a conflitos bélicos ao longo dos anos, mantém quase todo o charme que sempre o caracterizou. Baikan estende-se ao longo do estreito canal e aninha-se também, mais para lá, no sopé da colina Tsurugata-yama, com arquitectura que remonta ao período Edo, quando os samurais ainda eram uma realidade, bem como à época dos Meji e dos Taisho (1868-1926), que coincide com o crescimento da influência cultural europeia.

Numa das margens, um idoso segura a mão de uma jovem sorridente e apresta-se provavelmente a ditar-lhe um futuro radioso. Mulheres vestindo coloridos quimonos fotografam-se em frente das fachadas mais elegantes das casas, já pintadas com as cores douradas que anunciam as últimas carícias do sol. Muita da arquitectura de Kurashiki reflecte um passado glorioso da cidade, como se pode ver errando pelas suas ruas sempre cheias de turistas. Dessas construções tradicionais, a mais antiga é a Inoue, que está a ser renovada e apenas tem reabertura prevista para o próximo ano; mas há outras que não devem ser desprezadas, como a Kusudo, um misto de loja (vende quimonos) e de residência, a Ohara, com um estilo único, bonitas janelas e paredes austeras pintadas de branco e, finalmente, com mais ostentação, a mansão Yurinso, pensada por Magosaburo Ohara – um dos grandes responsáveis pelo que Kurashiki é nos dias de hoje – e mandada construir para a sua mulher. Apelidada de palácio verde, devido à técnica utilizada na colocação das telhas, que se revelam verdes quando vistas de determinados ângulos, apenas pode ser vista do exterior, à excepção de um ou outro dia (especial) do ano.

Na verdade, os telhados são, em Kurashiki, dignos de ser observados (de preferência quando banhados pelo sol da tarde), sob pena de se perderem muitos dos detalhes que escondem – e já agora repare com atenção nas paredes dos canais, numa espécie de colunas, por elas entra a água (destinada à limpeza) para algumas das casas.

Para uma panorâmica geral sobre a cidade e sobre essas telhas escurecidas, nada melhor do que subir vários lanços de escadas até chegar, com respiração ofegante, ao topo da colina de Tsurugata-yama, ao encontro do templo Achi, com uma história que ultrapassa os 1700 anos e palco de dois festivais anuais (em Maio e Outubro). Quando desço, não sem passear o olhar pela glicínia que, com uma idade entre os 300 e os 500 anos, é considerada um tesouro nacional, limito-me a caminhar, embora detendo-me mais nas ruas Honmachi e Higashimachi, sempre com o som do jazz, vindo de diferentes cafés e bares, a acompanhar-me.

Era por estas artérias, hoje tão procuradas pelos turistas e com uma atmosfera distinta em relação à zona do canal, que passavam muitos daqueles que se dirigiam para leste de Kurashiki e era nelas que a vida mais pulsava, com a presença de mercadores e artesãos agora substituídos por modernos cafés e interessantes galerias de arte.

Não muito longe de Honmachi e Higashimachi, iniciando o percurso de volta às margens do canal, faço uma escala na praça Ivy, um espaço público que oferece múltiplas propostas e onde no passado funcionava uma fábrica de algodão (agora transformada num museu que presta o seu tributo a Kurabo, o fabricante de têxteis). A praça é mais um daqueles lugares, tão habituais no Japão, que convidam à mansidão, à leitura de um livro ou a apenas deixar correr os olhos pelos edifícios de tijolo, pelos lagos com os seus peixes coloridos, até que, com a alma já cheia de tranquilidade, se sente vontade de errar por algumas das atracções culturais que se encontram na área envolvente, como uma galeria ou o museu dedicado ao pintor Torajiro Kojima.

O dia escoa-se, sinto relutância em partir. Fico de pé, sobre uma das três pontes, a água corre silenciosa aos meus pés, certamente para não me perturbar ou para me manter domiciliado a esta beleza imperturbável e aos pensamentos que são uma retrospectiva destes dias – a memória de um povo educado, hospitaleiro, solidário. As luzes, tímidas, iluminam o canal, a atmosfera transporta-me para outro tempo – um tempo que Baikan teima em não abandonar, com a mesma fidelidade que impregna, a despeito do frio, o espírito de nove mil homens quase nus em busca de um ano de felicidade – e terão razão, é tão éfemera que não se pode pedir mais.

São dois os shingi lançados da janela.

 

Guia prático

Como ir

À falta de ligações directas entre Portugal e o Japão, terá forçosamente de fazer uma escala. Várias companhias áereas operam entre Lisboa e Tóquio ou Osaka (é importante estar atento às campanhas promocionais e o preço está sempre dependente da antecedência com que faz a reserva), entre elas a KLM, a Lufthansa, a Air France e a Turkish Airlines – com relativa facilidade pode voar para uma daquelas cidades por tarifas entre os 500 e os 600 euros. Tenha ainda em atenção que o aeroporto de Haneda está localizado a curta distância do centro de Tóquio, enquanto o Narita se situa a mais de uma hora de comboio (aproximadamente 80 quilómetros).

De Haneda, há uma dezena de voos, operados pela JAL e a ANA, para Okayama, um percurso que se cumpre em pouco mais de uma hora. Uma vez no aeroporto, pode recorrer ao autocarro para chegar, em trinta minutos, ao centro da cidade (estação ferroviária) – o preço do bilhete (só ida) é de 760 ienes. Caso deseje conhecer um pouco mais do que Okayama, como Takamatsu, Kurashiki, Himeji, Kobe, Osaka (ideal se voar de Lisboa para esta), Quioto, Hiroshima e mesmo a ilha de Miyajima (travessia de ferry), talvez não seja má ideia comprar o passe (válido por cinco dias e com um custo de 14 mil ienes) da JR-West Rail, Kansai-Hiroshima, o que lhe permite utilizar o Shinkansen (comboio bala), desde que não se sente em carruagens com lugares reservados, bem como outros comboios regionais, entre eles aquele que o deixa muito próximo do castelo de Bitchu-Matsuyama.

 

Quando ir

Se há algo de que Okayama se orgulha, além das muitas atracções, é do clima que proporciona durante a maior parte do ano – um clima seco, suave e com muitos dias de sol. Mesmo no Inverno, entre Dezembro e Fevereiro, ainda que as temperaturas desçam ocasionalmente até dois graus negativos, a maior parte dos dias são soalheiros e secos, é pouco significativa a queda de neve e mesmos os ventos frios são raros. No Verão, de Junho a Setembro, aumentam os níveis de humidade e de precipitação e os termómetros chegam facilmente aos 35 graus. A Primavera (com as cerejeiras em flor) e o Outono (a chuva é pouco habitual) são também boas épocas para se visitar a cidade.

 

Onde dormir

Em Okayama, há opções para todos os bolsos e, logo à saída da estação de comboios, basta levantar o olhar e facilmente irá descobrir, na Ekimae-cho, um edifício enorme que abriga, entre outros, o Daiwa Roynet. O hotel, muito procurado por homens de negócios, dada a sua localização, oferece conforto e múltiplos serviços mas no preço do quarto (espere pagar entre 12 mil e 14 mil ienes mas perto de 18 mil aos sábados) não está incluído o pequeno-almoço. Por um preço mais em conta, mas também num lugar central (a escassos dez minutos a pé da estação ferroviária), o River Side, na 4-11, Nishikimachi, numa das margens do canal Nishigawa, é mais frequentado por homens (o acesso à sauna, no piso térreo, está mesmo vedado às mulheres) e é o ideal para quem viaja sozinho (cerca de 30 euros por um single e dispõe igualmente de cápsulas) mas acolhe também casais (à volta de 60 euros, com possibilidade de beneficiar de um pequeno desconto se alargar a sua estada). O pequeno-almoço está incluído na tarifa diária mas é bastante limitado – ainda assim, o staff é simpático e há outras facilidades (como lavandaria, cujas máquinas funcionam com moedas). 

 

Onde comer

Em Okayama, há pelo menos um restaurante que não deve perder: é o Teppan Ku-Ya, com preços razoáveis, um serviço simpático e um ambiente descontraído, ao balcão, enquanto observa (se desejar na companhia de um vinho português) o chef a preparar uma refeição que é uma maravilhosa experiência culinária. Está situado no centro da cidade, na 1-1-17, Nodaya-cho (se tiver dificuldade em encontrar pergunte num supermercado da Seven Eleven, situado muito próximo), e é conveniente efectuar reserva com pelo menos 24 horas de antecedência. Para quem não apreciar teppanyaki (estilo que usa uma barra de ferro para cozinhar os alimentos) e preferir sushi (neste caso é mais bara-zushi, especialidade local), uma das opções passa pelo Azuma-Zushi, no edifício (segundo piso) da estação ferroviária da cidade. Em Kurashiki, tente a especialidade local, a sardinha, no Mamakari-tei, uma verdadeira instituição já com mais de 200 anos, na 3-12, Honmachi, e com preços entre os 800 e os 1500 ienes (encerra à segunda-feira e também é conveniente reservar).

 

A visitar

Okayama, mesmo não fazendo parte dos roteiros turísticos, pelo menos para os cidadãos europeus, é uma cidade rica do ponto de vista cultural – tem quase uma dezena de museus. Também Kurashiki conta com alguns espaços interessantes e o facto de ser facilmente percorrida a pé contribui para que muitas das suas atracções possam ser vistas num curto espaço de tempo. Entre eles, o museu arqueológico, situado num antigo armazém e com artefactos da região de Kibi (a sul de Okayama), como utensílios em pedra pré-históricos e antigos sinos em bronze; pode também dar uma espreitadela (seguramente que a fachada do edifício, datando do período Edo, o obrigará a uma paragem) ao museu do artesanato, com interessantes peças em barro e em vidro; finalmente, se viajar com crianças, torna-se imperdível uma visita ao museu dos brinquedos, com uma colecção de brinquedos do Japão rural que abarca os períodos Edo, Meiji e Showa.

 

Informações

Os cidadãos portugueses necessitam de um passaporte com o mínimo de seis meses de validade para visitar o país. O visto, gratuito e por um período de 90 dias, é concedido à chegada (é importante que tenha na sua posse o nome, a morada e o contacto de um hotel, mesmo que depois opte por se alojar num outro). 

A língua oficial é o japonês e encontrar quem fale fluentemente inglês é um dos grandes desafios que se colocam ao turista.

A moeda é o iene – um euro corresponde a pouco mais de 120 ienes.

Os fumadores devem ter em atenção que é expressamente proibido fumar na rua em muitas áreas de Okayama (há zonas específicas e devidamente assinaladas) mas, por estranho que pareça, podem fazê-lo no interior de muitos restaurantes, cafés e bares.

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