Fugas - Vinhos

Manuel Roberto

As castas perdidas

Por Rui Falcão

Orgulhamo-nos das castas portuguesas, do nosso imenso património genético, mas, vindima após vindima, estreitamos tamanha herança, reduzindo o número de castas a um pequeno punhado de eleitos. Terá mesmo de ser assim?

O rosário já vem de longe e o diagnóstico há muito que está traçado: somos um povo tristonho e melancólico que sofre de uma tremenda falta de auto-estima que nos afunda numa espiral de depressão colectiva. Somos pessimistas, não acreditamos nas nossas virtudes e valorizamos de forma despropositada tudo o que chega de fora. Porém, apesar do muro permanente de lamúrias a que nos entregamos com diligência, ainda nos conseguimos animar com algumas das nossas proezas, entusiasmando-nos com algumas das particularidades que nos singularizam neste planeta tão globalizado. Entre os poucos assuntos que nos despertam um sentimento pátrio, desembainhando sem temor a bandeira do orgulho nacional, encontram-se os produtos agrícolas de forma genérica, capítulo que valorizamos até à hipérbole, louvando tudo o que é nacional, desdenhando com voz grossa a fruta e as batatas que nos chegam de fora, ou virando a cara ao vinho que chega de outras paragens.

E se há posição onde nos sentimos especialmente privilegiados é no número de castas nacionais, um número quase infinito de variedades autóctones que não existem em nenhum outro país ou região. Fomos abençoados pela natureza com um leque impressionante de castas originais, numa colecção ampelográfica descomunal que, apesar da reduzida dimensão do país, é considerada como a segunda mais rica do mundo, logo a seguir à fartura italiana.

Orgulhamo-nos justamente deste património riquíssimo, único no mundo, mas depois... Depois esquecemo-nos, infelizmente, de concretizar as boas intenções demonstradas pelas palavras bonitas, estreitando o vasto património de Portugal a um pequeno punhado de castas, que em cada vindima que sucede se afunila mais, deixando de lado a imensa maioria das variedades portuguesas, condenandoas a uma pena de extinção prematura, ostracizando-as de tal forma que em pouco tempo o empobrecimento genético das vinhas será um dado adquirido, cerceando a originalidade dos vinhos portugueses, sujeitando-os a uma decadência qualitativa quase inevitável. Gostamos de falar, de exibir a nossa riqueza natural, mas pouco ou nada fazemos para preservar aquilo que a natureza nos entregou de mão beijada.

Como é estranho ver desaparecer séculos de evolução natural e de adaptação da vinha aos diferentes solos e climas no espaço de uma geração, incapaz de compreender o potencial escondido de tantas variedades nacionais. Como é estranho ver as universidades tão alheadas deste desígnio nacional, sobretudo as ligadas umbilicalmente ao sector do vinho, sem vontade de investigar, sem querença para se ligar aos problemas reais da produção, sem determinação e coragem para ultrapassar as barreiras artificiais entre a vida académica e a vida efectiva e concreta da produção.

Quantos trabalhos de investigação se encontram perdidos nos arquivos cerrados das universidades e institutos públicos, tão longe da produção, sem qualquer repercussão na vida económica dos produtores... e de Portugal? Quantos trabalhos de investigação sobre as variedades nacionais tiveram em conta o vinho, a produção, preocupando-se em criar modelos que ajudem os viticultores a descobrir quais as melhores castas para cada região, para cada solo, para cada condução, para cada clima, deixando de lado o simples prazer académico da investigação pura?

A consequência de tais atitudes é que hoje, quando olhamos para a maioria dos contra-rótulos dos vinhos nacionais, acabamos por descobrir as mesmas castas por entre os actores principais e secundários de cada região, firmando o lote favorito de cada denominação. Se no Douro raramente nos conseguimos esquivar ao duo Touriga Nacional/ Touriga Franca, por regra temperado com um cheirinho de Tinta Roriz, no Alentejo iremos certamente embater em tintos acariciados pelo duo Alicante Bouschet/Aragonês, aqui e ali adubados pela presença da Trincadeira. No universo dos vinhos brancos, raramente conseguimos evitar o casamento entre Arinto e Antão Vaz no Alentejo, e Rabigato, Viosinho e Códega no Douro.

Não há nada de errado nestas variedades, todas elas brilhantes na sua especifi cidade, nem sombra de pecado por parte dos produtores em cingir-se a estas poucas castas. Pois se pouco se fala das restantes castas nacionais, pouco ou nada se investiga com resultados palpáveis para a produção, pouco se divulga e pouco se promove, não será de esperar que sejam os produtores a empenhar o seu capital financeiro numa aventura de que não se conhece o retorno.

É que plantar uma vinha, esperar três anos até que ela esteja apta a produzir, com os custos inerentes ao empate de capital e aos custos do tratamento da vinha, realizar ensaios com microvinificações para aferir do potencial de cada variedade em diferentes solos, climas, conduções, podas e mais um número quase infindável de outras variáveis é algo que não se pode reclamar de um produtor, estejamos nós em tempo de crise ou em tempo de vacas gordas.

O que não impede que alguns produtores visionários, com uma dose de teimosia e empenho pessoal dignos de aplauso, não sigam, por sua conta e risco, um trabalho notável de estudo e diversificação, resgatando do esquecimento algumas das castas mais obscuras do nosso imenso património genético.

Entre muitos outros, gostaria de salientar o trabalho de João Nicolau de Almeida, na Ramos Pinto, um dos progenitores do maior estudo sobre as castas durienses, patrono da selecção das cinco grandes castas do Douro (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinto Cão e Tinta Barroca) que, longe de se sentar na tranquilidade de um trabalho feito, continua com o seu espírito inquieto a investigar castas antigas que o tempo fez esquecer. Entre as suas novas preferidas contam-se a Tinta Barca, nos vinhos tintos, e a Folgosão, nos vinhos brancos, a famosa Terrantez da ilha da Madeira, que encontrou um refúgio seguro nas terras mais quentes do Douro Superior.

Um trabalho feito em surdina, sem necessidade de ruído mediático, sem alaridos mas também sem segredos, que faz mais pelo futuro e pela sustentabilidade do vinho nacional que muitas campanhas públicas e muitos estudos universitários rebuscados, sem aplicação na vida real. Assim existissem muitos mais João Nicolau de Almeida!

--%>