Fugas - Vinhos

Os vinhos de Nicolas Joly são para beber e rezar

Por Pedro Garcias

Andamos todos a sonhar com os grandes brancos da Borgonha, os tais que custam milhares de euros, e há noutros lugares menos famosos de França vinhos muito mais baratos que também nos fazem subir ao céu. Os brancos de Nicolas Joly, no Loire, por exemplo, são para beber de joelhos.

Éramos quatro, reunidos no restaurante Corte Real (Nevogilde, Porto), em torno de “vinhos que nos sabem bem”. O desafio tinha sido lançado por Raul Riba D’Ave, produtor, distribuidor de vinhos (directwine) e candidato a master of wine.

Começou-se com um Champanhe extraordinário, Andre Clouet Silver Brut Nature, um zero dosage (sem um grama de açúcar residual) não datado. Proveniente de Bouzy, uma das poucas zonas de champanhe com a classificação de Grand Cru, é um blanc feito apenas com uvas Pinot Noir. Seco, austero e raçudo, passa pela boca como água de bosques primordiais, inundando-a de um frescor e de uma pureza mineral admiráveis.

Seria um vinho perfeito também para fim de refeição, mas respeitou-se a sequência clássica e beberam-se a fechar dois vinhos doces: um licoroso de Bastardo da casa Horácio Simões, colheita de 2009, muito untuoso e delicado (foi alvo de apreciação na Fugas de 13 de Maio); e um icewine canadiano, um Peller Estates 2007, da casta Vidal. Coisa séria. Comparados com este vinho, de aroma e sabor complexos e acidez soberba, muitos dos colheitas tardias que se bebem por aí são meros refrescos.

Antes, a acompanhar a carne (irrepreensível, como o resto da comida), estiveram em confronto dois tintos do mesmo ano, 1990: São Domingos Garrafeira, do Dão, e Château Ducru-Beaucaillou, de Saint-Julien, Bordéus. Com apenas 12% de álcool, o São Domingos surpreendeu pelo seu aroma limpo, sabor delicado e frescura de boca. Muito bom. Mais maduro, o tinto bordalês (lote de Carbernet Sauvignon e Merlot Noir originário de vinhas com uma densidade de plantação de 10 mil videiras por hectare) mostrou outra estrutura e complexidade e também mais juventude. Está para durar. Um vinhaço. Bordéus no seu melhor.

E regressamos quase ao início. Antes dos tintos e logo a seguir ao champanhe, bebeu-se “o vinho”, um branco Clos de la Coulée de Serrant 1997, do vale do Loire. Raul Riba D’Ave tinha decantado o vinho de véspera, antes de o verter de novo para a garrafa.

No copo, o vinho tem cor de oxidado, de bebida morta, e a primeira inspiração não augura nada de bom. Mas à medida que vai arejando o aroma torna-se mais límpido e começa a transmutar-se. Quando se prova, nem se acredita. Mal o vinho toca a língua, sente-se uma frescura natural impressionante, que parece não ter fim. E o melhor é que essa frescura, essa acintosa acidez, surge envolta numa grande estrutura, numa riqueza de sabores indiscritível.

Como caçadores em busca de uma presa esquiva, entramos num exercício de descoberta, de adivinhação, incapazes de acompanhar a metamorfose do vinho, que parece renascer a cada minuto. O que parecia morto mostra-se, afinal, cheio de vida. É um branco tão singular, tão puro na sua frescura mineral que emociona. “Este vinho é para beber de joelhos”, tinha avisado Raul Riba D’Ave. E é. Ou então de braços abertos para o céu.

Um vinho destes emociona-nos não pelo seu nome, não pelo seu preço (custa umas dezenas de euros, nada de mais), mas sim por ser diferente, por trazer a natureza até nós, por ter uma história e uma paixão por trás. Clos de la Coulée de Serrant é um branco 100% Chenin Blanc e é também uma denominação: Savennières-Coulée de Serrant. Um vinho, uma denominação (só mesmo em França).

O seu criador é Nicolas Joly, um dos principais gurus da agricultura biodinâmica. Joly despertou tarde para este movimento, criado por Rudolf Steiner. Durante anos trabalhou em finanças no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em 1977, regressou ao Loire para tomar conta da propriedade da família. Mal chegou, um funcionário dos serviços de agricultura da região visitou-o, para lhe dizer que a sua mãe tinha gerido bem a exploração mas de uma forma antiga e aconselhá-lo a modernizar a forma de cultivo. Como exemplo, disse-lhe que, se começasse a usar herbicidas no controlo das infestantes, pouparia 14 mil francos. Nicolas Joly levou a sério o conselho, mas arrependeu-se ao fim de dois anos, quando percebeu que a cor do solo tinha mudado, que já não havia joaninhas e que as perdizes tinham desaparecido. As vinhas, na sua descrição, assemelhavam-se a um Inverno perpétuo, desprovido de vida.

Nicolas Joly leu logo a seguir um livro sobre agricultura biodinâmica e, a partir de 1981, sem aderir ao movimento, passou a aplicar os seus principais conceitos: respeitar os ritmos e ciclos da natureza e estimular o equilíbrio entre todos os elementos que fazem parte da propriedade (solo, plantas, animais, homem) sem recurso a adubos químicos, herbicidas e qualquer outro composto que não seja natural e não tenha origem na própria exploração. Parte da vinha de sete hectares (plantada inicialmente em 1130 por monges cistercienses) passou a ser trabalhada com um cavalo. As mudanças estenderam-se também à adega.

Joly passou a usar apenas leveduras naturais e a intervir o mínimo possível na vinificação. Não faz controlo de temperatura e não chaptaliza (adição de açúcar). Recorre a batonnage (batimento das borras), filtra ligeiramente os vinhos e adiciona quantidades pequenas de sulfuroso apenas no momento do engarrafamento. Os vinhos estagiam menos de um ano em barricas maioritariamente usadas (mais recentemente, Joly começou a estagiar também os vinhos em ânforas de barro, como nos primórdios da vitivinicultura) e continuam a sua educação em garrafa. A variação de colheita para colheita pode ser grande — as condições climatéricas são determinantes. Os melhores vinhos, garante o produtor, nascem nos anos em que a floração dos cachos coincide com o solstício de Verão.

Não sabemos se 1997 foi um desses anos. Foi, isso sim, um ano quente, talvez até quente de mais, apesar de a casta Chenin Blanc precisar de calor para expressar todo o seu potencial. Por essa razão, na maioria das colheitas as uvas já são colhidas com alguma podridão nobre. Isso explica a cor de oxidação que os vinhos têm e também as nuances meladas e exóticas que se sentem no nariz e na boca.

Apesar de serem vinhos alcoólicos (o 1997 tem 14% de álcool), Nicolas Joly recomenda beber os seus vinhos a uma temperatura de 14 graus centígrados (a grande acidez natural da Chenin Blanc aguenta tudo) e assegura que eles vão melhorando nos dias seguintes até atingirem o pico ao sexto dia (depois da garrafa aberta). Não fizemos a experiência. Bebemos a única garrafa de 1997 em menos de uma hora, mas deu para perceber o carácter camaleónico do vinho e, acima de tudo, vibrar com a sua originalidade, o seu carácter. Nenhum dos quatro que o bebemos jamais esquecerá a experiência… pelo menos até provarmos outro Clos de la Coulée de Serrant. Segundo Joly, 1997 até nem é a sua melhor colheita. Os seus favoritos são o 1996 e o 1999. Um dia havemos de os provar, para tirarmos as dúvidas.

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