A cachaça serve para fazer caipirinha e, no fundo, é toda igual. Certo? Errado, diz António Gomes, proprietário do Uai!, restaurante de Lisboa especializado em gastronomia do estado brasileiro de Minas Gerais. Quando preparava a abertura do restaurante, António viajou algumas vezes para o Brasil, e rapidamente percebeu que tinha muito que aprender sobre a bebida nacional do país: a cachaça.
"Tive a minha lição numa cachaçaria em Belo Horizonte. Passei uma hora a ouvir falar de cachaça", recorda. E descobriu que "em Portugal não havia boa cachaça". Decidiu então que o Uai! seria uma referência para quem quisesse descobrir a cachaça, e hoje tem uma colecção com mais de uma centena de marcas, e reúne aqui desde 2006 a Confraria da Cachaça.
Primeira lição: há boa cachaça e má cachaça, é preciso aprender a distingui-las, e é possível fazê-lo sem esperar pelo teste da dor de cabeça do dia seguinte. António vai buscar algumas garrafas e distribui pela mesa uma série de cálices próprios para beber cachaça pura – "não têm nada de especial, o que se pretende é apenas que se veja o líquido e que tenha uma abertura ligeiramente mais larga para se poder cheirar". À nossa frente desfilam duas cachaças industriais novas, duas artesanais novas (as novas são as usadas para fazer caipirinha) e duas artesanais envelhecidas. Estas últimas distinguem-se pelo tipo de madeira usada no processo, carvalho no caso da Cachaça Doministro, e amburana, no caso da Porto Estrela – o que resulta em dois aromas e dois sabores muito distintos (a diferença é mais evidente no aroma, sendo que o carvalho é, para um consumidor europeu, muito mais familiar e reconhecível do que a amburana).
"Nos supermercados portugueses praticamente só encontramos cachaça industrial", lamenta António. "O lobby dos industriais é muito forte, e a lei brasileira não permite a designação de ‘artesanal de alambique’". Isto prejudica o consumidor, que, olhando para o rótulo, não tem forma de distinguir. Daí que seja preciso experimentar para ver a diferença. António coloca um pouco das diferentes cachaças nos copos, e nota que o rótulo de uma das cachaças industriais, a Velho Barreiro, indica a adição de açúcar. "Todas as industrializadas têm açúcar acrescentado", diz, frisando que no Uai! serve apenas cachaça artesanal (as garrafas que tem da industrializada servem unicamente para fazer provas como esta e sublinhar as diferenças).
Mas há mais coisas que separam uma boa cachaça de uma má. "No caso da industrializada, queima-se o canavial para acelerar o processo", explica António Gomes. "E de seguida usam-se produtos químicos para acelerar a fermentação, sendo depois a destilação feita de forma contínua, sem interrupções, o que significa milhares de litros de produção por dia". Tudo isso se reflecte no sabor, muito mais artificial e agressivo no caso das industriais, mais suave e natural, prolongando-se agradavelmente na boca, no caso das artesanais – das quais António destaca a Diva, primeiro prémio num concurso de cachaças em Minas Gerais, e que é a que usa no seu restaurante como base das caipirinhas.
Mas o que é, afinal, a cachaça? "É um destilado da garapa, o suco da cana-de-açúcar moída, fermentado naturalmente e depois destilado em alambiques, de preferência de cobre". No processo natural, ao caldo de cana são adicionados elementos naturais de fermentação, leveduras que se encontram no milho, ficando depois o líquido a repousar no prazo mínimo de 12 e máximo de 24 horas.
Para além das garrafas, António Gomes coloca em cima da mesa um monte de livros que reuniu para tentar reconstituir a história da bebida. "O nome tem origem espanhola, vem da palavra cachaza, que é uma bagaceira de qualidade inferior", conta. E, ao que parece, a primeira referência a ela surge numa carta do século XVI de Sá de Miranda; oficialmente, só é citada num parecer de 1755 do governador da capitania de Minas Gerais.
No entanto, muito antes disso era consumida pelos escravos que trabalhavam nos engenhos de açúcar do Brasil – a cana-de-açúcar viajou da Ásia até à Europa, e de Portugal, mais exactamente da Madeira, seguiu para o Brasil, onde encontrou as condições ideais de temperatura e humidade para se desenvolver. "Em 1532 vai daqui a primeira cana-de-açúcar para o estado de São Paulo, e depois sobe pela costa".
Sendo bebida tão apreciada no Brasil, como se explica que a cachaça não se tivesse implantado mais em Portugal (apesar de o país ser o maior importador mundial, a seguir à Alemanha)? "O que aconteceu foi que, a certa altura, o rei de Portugal proibiu a produção de cachaça para que esta não concorresse com o vinho e a aguardente. Nós produzíamos aguardente de vinho, o rei tinha o monopólio do comércio interno e queria vender a nossa aguardente às colónias. O Brasil não a aceitou porque já produzia cachaça", conta António. "Mas não resultou, porque não era possível fiscalizar. Por isso, mais tarde, em 1757, D. José I, cria um imposto sobre a jeribita [outro nome pelo qual era conhecida a aguardente de cana] que passasse no porto do Rio de Janeiro".
Foram essas tentativas de a reprimir que levaram a que a cachaça se tornasse um símbolo da luta pela independência do Brasil. Mas esta divisão entre bebidas nacionais dos dois lados do Atlântico não faz sentido, tanto mais que, prossegue o proprietário do Uai!, "a caipirinha tem uma base portuguesa, porque deriva da ida da corte para o Brasil". A família real e os nobres que a acompanharam levaram para a colónia muitos usos e costumes, entre os quais o de combater a gripe com uma mistura de limão, mel e aguardente. "No Brasil o limão passou a lima, o mel a açúcar, e a aguardente a cachaça", e nasceu a caipirinha. E conta-se até que D. Pedro, que era produtor de cachaça, terá usado o destilado da cana-de-açúcar para brindar à independência. "Chamo a isto a vingança da cachaça", diz, sorrindo, António Gomes.
Uma coisa que o surpreendeu nas suas pesquisas foi o facto de no livro Bebidas e Excitantes o historiador francês Fernand Braudel referir o rum, mas não a cachaça. "É no século XVI que vemos o aparecimento de bebidas destiladas no mundo. Mais tarde, Braudel diz-nos que o rum era cotado na bolsa de Amesterdão no século XVIII. Os holandeses produziam açúcar e rum nas Caraíbas, e como não produziam vinho nem aguardente não tiveram problemas em trazer o rum para a Europa. Nós não trouxemos a cachaça para Lisboa. E ela nunca mais apanhou o rum. Mas o facto é que a cachaça começou-se a produzir primeiro que o rum, sempre se produziu mais que o rum, mas o rum é muito mais conhecido que a cachaça."
Mesmo no Brasil, a bebida – que chegou a ser muito utilizada como moeda de troca para a compra de escravos – foi durante muito tempo olhada de cima, como um hábito das classes mais baixas, que nunca poderia competir com a sofisticação de um whisky. Entretanto, as coisas mudaram: nas décadas de 30 a 50 do século XX o meio académico brasileiro tornou-se um divulgador da cachaça, e mais tarde o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso impulsionou a sua promoção internacional – tornou-a bebida nacional, pôs universidades a apoiar e a investigar a produção de cachaça, e lançou medidas de apoio ao associativismo dos produtores, que ganharam assim outra dimensão para poder entrar no mercado internacional.
"Hoje a cachaça está na moda, e é chique ter em casa uma colecção de boas cachaças. Há concursos, provas, e até surgiu uma nova palavra para o equivalente ao sommelier: o cachacier, especialista em cachaça". Mas se o Brasil já percorreu – embora lentamente – um enorme caminho, em Portugal, acredita António Gomes, ainda há muito trabalho a fazer para que os consumidores descubram a verdadeira cachaça para lá da cada vez mais popular caipirinha.