Fugas - Vinhos

Quinta dos Murças, o Esporão no Douro

Por Rui Falcão

Os vinhos do Esporão marcaram para muitos o início de um longo romance com os vinhos alentejanos.

Numa época em que os vinhos alentejanos ainda estavam longe da reputação e eloquência actual, os vinhos do Esporão surgiram melodiosos, sedutores e capazes de despertar emoções até aí quase desconhecidas.

E foi assim que ficámos a conhecer o Esporão como um produtor sério e seguro, capaz de apresentar vinhos bons em todos os patamares de preço e qualidade. Habituámo-nos a identificar o Esporão como um produtor de vinhos alentejanos de referência, uma casa que, com o passar do tempo, se transformou num verdadeiro ícone de Reguengos e da região.

Mas, apesar da filiação alentejana, a verdade é que o Esporão conta igualmente com uma incursão por terras durienses assente nos vinhos da Quinta dos Murças.

Situada na margem direita do Douro, a pouco mais de seis quilómetros da barragem de Bagaúste, quase em frente ao já célebre restaurante DOC, a Quinta dos Murças impõe-se pela verticalidade perturbadora das paredes de muitas parcelas cobertas de vinha, transformando a vindima e o trabalho da vinha numa tarefa simultaneamente ousada e cansativa, uma empreitada dura nas paredes vertiginosas cobertas de vinha que na época de vindima mais se aproximam de uma actividade não muito distante das práticas de escalada.

Quem vê a quinta do seu ponto mais visível, da estrada que une a Régua ao Pinhão pela margem esquerda do Douro, não consegue ter noção do tamanho dela nem das múltiplas exposições e orientações que se sucedem ao longo dos 160 hectares de ladeiras e vertentes. A paisagem discorre por entre encostas íngremes que impressionam pela dimensão e tirania do declive, numa sequência de montanhas e vales que se vão descobrindo, por vezes cobertos por vinha, por vezes dedicados ao olival, por vezes coberto por mata no seu estado mais puro, nos sítios onde a inclinação supera a vontade do homem.

Uma das primeiras prioridades após a aquisição da Quinta dos Murças foi recuperar, e em alguns casos refazer por inteiro, o sistema de drenagem das linhas de água e do escoamento de águas pluviais de toda a vinha, procurando defendê-la das enxurradas de terra que as chuvas mais fortes foram desagregando ao longo do tempo. A tarefa, apesar de ciclópica, tem tudo para dar os frutos a que o Esporão se propôs com esta empreitada de criar um novo propósito no Douro.

A escolha do coração do Douro para a grande aventura duriense não foi um acidente de percurso. Depois de esquadrinhadas as várias conjunturas possíveis, João Roquette não teve dificuldade em perceber que a opção ideal estaria numa localização algures entre o intervalo que medeia entre a Régua e o Pinhão, obrigatoriamente com uma frente de rio. Não se sentiu seduzido pelo Douro Superior, que não só lhe pareceu ter menos futuro face às dolorosas mudanças climáticas, como lhe pareceu ser menos indicado para o estilo de vinhos que decidiu fazer.

As vinhas e a localização perfeita convenceram enólogos e administração. Havia muito a fazer, e continua a haver muito para fazer, mas as bases sólidas ajudaram na decisão. Alguns dos desníveis das vinhas mais velhas assustavam pela fortíssima pendente em que estavam plantadas, vinhas ao alto das primeiras nascidas no Douro… desenhadas por um engenheiro suíço que nos anos cinquenta jurou ser possível trabalhar com tais declives. Não é fácil trabalhar em vertentes tão inclinadas e em solos xistosos de pedra solta num autêntico caldeirão natural que condensa o calor abrasador que só o Douro consegue soltar.

--%>