Javalis, claro, muitos, sempre. Mas nem só de javalis se faz a história da comida nas aventuras de Astérix, Obélix e dos outros irredutíveis gauleses de uma pequena aldeia da Gália que resiste, ainda e sempre, à ocupação romana. Quando viajam pelo mundo, os dois heróis têm vários choques culturais - e, quer sejam positivos ou negativos - muitos deles têm a ver com a comida.
Obélix tem um apetite inesgotável mas é muito pouco imaginativo quando se trata de pensar no menu: se puder comer apenas javalis assados, que caça nos bosques em redor da aldeia, fica satisfeito. O problema é que nem todo o mundo é tão entusiasta em relação a esta iguaria. É um choque, por exemplo em A Odisseia de Astérix, perceber que em Jerusalém não se come carne de porco, como lhe explica Isaías, o judeu que encontram no caminho, que tem para lhes oferecer apenas frutos secos e nem sequer sabe o que é um javali.
"Singularis porcus, género de mamífero ungulado, paquiderme, cujo tipo habita na Gália e é bom que se farta", explica-lhe Obélix. "Porco?!! Mas isso é absolutamente proibido pelas nossas leis! Aliás, mesmo as outras carnes só podem ser consumidas se forem puras!", responde-lhe Isaías. Mas, lost in translation, Obélix percebe "duras" e conclui que "nesta terra são um bocado sovinas". No entanto, não perde o apetite e nessa mesma noite delicia-se com (pelo menos) dez carpas recheadas.
O peixe não é uma novidade para os gauleses (embora Obélix não costume comê-lo). Uma das personagens icónicas da aldeia é precisamente o peixeiro Ordemalfabétix, que tem como característica vender peixe muito pouco fresco. Este é, aliás, o ponto de partida de A Grande Travessia: o stock de peixe na aldeia está a acabar e Astérix surpreende-se por isso ser possível num sítio que fica a dois passos do mar.
"Estava à espera de uma remessa nova, mas os carros de bois que trazem o peixe de Lutécia estão em greve como forma de protesto contra o preço do feno", diz-lhe Ordemalfabétix. Astérix argumenta que basta ir buscar o peixe ao mar. "O mar? Que tem o mar a ver com o meu peixe?", responde-lhe o peixeiro, indignado. "Eu vendo peixe de Lutécia, sôr Astérix! Eu respeito o freguês! Abasteço-me nos melhores grossistas! Não vou desatar a vender peixe saído da água, sem garantia de qualidade!"
Outro choque cultural semelhante ao do Médio Oriente acontece em Astérix entre os Bretões, quando os dois amigos descobrem que aqueles que serão os britânicos do futuro param tudo às cinco da tarde para beber uma inexplicável água quente, às vezes com uma pinguinha de leite, servem cerveja morna e comem javali cozido com molho de hortelã - a ideia de que na Grã-Bretanha se come mal é confirmadíssima aqui, onde mesmo numa estalagem com o promissor nome de O Bem-disposto Javali este é servido com o incontornável molho de hortelã.
Curiosamente, onde os gauleses encontram as suas almas gémeas é Entre os Belgas. Estes gostam de comer e de beber tanto quanto os gauleses e, tal como estes, fazem grandes banquetes numa mesa em forma de U no centro da aldeia. Apesar de os dois autores de Astérix, René Goscinny e Albert Uderzo, serem franceses, neste caso tomam partido pelos belgas na eterna disputa sobre a origem da batata frita (que viria a ser conhecida no mundo anglo-saxónico como french fries).
Nikotina, a mulher do chefe da aldeia Cervejalambix, é uma cozinheira de primeira e quando o marido traz os gauleses para almoçar, ela preocupa-se: "Há uma mã cheia de javalis, enchidos e cerveja... podem comer pão com conduto, mas é poucachinho." Minutos depois, frente a uma mesa a abarrotar de comida, Obélix está feliz. E ainda não foram inventadas as batatas fritas...
Isso só vai acontecer mais tarde, devido a um feliz acaso. Num campo romano a sul da aldeia belga, os romanos estão a aquecer óleo para lançar sobre os inimigos quando estes os atacarem. Cervejalambix pergunta ao soldado romano para que é o óleo "e ele...batatas" (ou seja, não responde porque o terror fá-lo desmaiar). Mas a palavra "batatas" deu uma ideia a Cervejalambix: "Batatas fritas... tenho de falar nisso à Nikotinita". (E quando vê mexilhões agarrados a um pedaço de madeira do barco afundado dos piratas, interroga-se se "nã marchavam bem com batatas fritas?" - o início da hoje instaladíssima tradição das moules et frites belgas.)
E assim, segundo Astérix, terão nascido as batatas fritas que, de acordo com o jornalista belga Jo Gérard, surgiram no século XVII (e não em 50 a.C., ano em que se passam as aventuras de Astérix), no território que mais tarde passou a ser a Bélgica, porque os habitantes tinham o hábito de pescar no rio e fritar os pequenos peixes - quando o rio congelou, cortaram batatas de modo a parecerem os peixes e fritaram-nas também. Há, no entanto, dúvidas quanto à veracidade desta história. O que se sabe é que as batatas chegaram à Europa vindas do Novo Mundo nos finais do século XVI e que a fritura já era uma técnica generalizada desde a Idade Média.
Mas também a questão dos javalis está longe de ser pacífica. Sabe-se que todas as espécies de porcos domesticados que existem hoje são descendentes dos javalis selvagens. Mas será que os gauleses em 50 a.C. comiam javali? Uma exposição organizada em Paris em 2011, intitulada Les Gaulois, tentava desfazer alguns mitos, explicando por exemplo que os menires que Obélix transporta são do Neolítico e não existiam naquela época na Gália - tal como os javalis assados.
"Não sabemos de onde veio esta ideia dos javalis, excepto talvez da crença popular de que os gauleses viviam em florestas", disse o arqueólogo francês Vincent Charpentier, citado pelo The Telegraph. A exposição mostrava que os gauleses desse período já criavam animais, nomeadamente porcos, e praticavam a agricultura.
Onde aparecem porcos domesticados - mais uma vez para surpresa de Obélix - é em Astérix na Córsega. O que, na verdade, não é surpreendente: os registos mais antigos da existência de porcos domesticados datam de 7000-5000 a.C. na zona do Mediterrâneo e Médio Oriente. Quando chegam à aldeia do herói corso desta aventura, Ocatarinetabelatchitchix, os dois gauleses vêem porcos na rua. "Oh! Olha! Javalis domésticos!, exclama Obélix. "São porcos selvagens", explica-lhe Ocatarinetabelatchitchix.
Tão importantes são os javalis para os gauleses (pelo menos para estes gauleses), que quando vão aos Jogos Olímpicos (Astérix nos Jogos Olímpicos) o druida aconselha, "para uma dieta equilibrada", que levem para Atenas um carregamento de javalis, vivos, que, inclusivamente, ficam instalados com eles na estalagem. E, no entanto, come-se bem na Atenas daquele tempo: "Os nossos turistas iniciam-se nos prazeres das parras recheadas, das espetadas, das azeitonas, das melancias e do vinho resinoso" (a resina era usada para selar as ânforas).
O problema é que, como sabemos, os atletas devem evitar excessos alimentares - e os espartanos são disso um bom exemplo, alimentando-se apenas de "figos, azeitonas, carne crua e água" (ou, na versão de um atleta revoltado, "caroços de azeitona e banha"), enquanto os gauleses se banqueteiam com tudo o que há de mais saboroso.
E as orgias?
Em Roma, sê romano. Mas aí os gauleses não têm muitas dificuldades. Afinal, o império romano conhecem eles bem. Em Astérix Gladiador encontram facilmente em plena capital do império um restaurante gaulês onde a especialidade é... javali no espeto. Na Roma Antiga abundavam os espaços para comer fora de casa. Havia muito aquilo a que hoje chamamos fast food nas popinae, bares onde se consumia vinho e alguns petiscos, geralmente pão, azeitonas, guisados (com feijões, ervilhas, lentilhas), ou peixe frito, frequentados pelas classes mais baixas e por prostitutas, e que serviam muitas vezes de palco a actividades ilegais.
Semelhantes às popinae eram os thermopoliums, um nome que deriva do facto de servirem comida quente. Depois, existiam as tabernas, que estavam um pouco mais acima na qualidade e no ambiente. Mas Astérix e Obélix não se dedicam a grandes experiências gastronómicas em Roma (não há referência, por exemplo, ao garum, o célebre molho de peixe fermentado, que os romanos adoravam, e que tinha em Portugal um dos principais centros de produção), e não se deixam impressionar com a comida exótica que lhes é servida na casa de um romano rico: "Uma nova receita de pastéis à base de ingredientes que custam uma fortuna: línguas de rouxinóis importadas do Norte da Gália, ovos de esturjão vindos dos confins dos países bárbaros, gengivas de baratas da Mongólia". Obélix só tem um comentário: "Salgado."
Quando se juntam ao exército romano, ou mais exactamente à Legião Estrangeira, em Astérix Legionário, para irem salvar Tragicomix, o apaixonado da bela Falbala, Astérix e Obélix revolucionam a forma como se come. Rapidamente desaparece a nauseabunda ração do legionário: "trigo, toucinho e queijo, cozido tudo junto para poupar tempo". Os gauleses "persuadem" o cozinheiro a servir-lhes javalis e bolos com frutas cristalizadas, e mesmo quando vão a caminho do Norte de África não lhes falta javali no espeto e bolo com natas.
Não está confirmado pelos factos que a comida do exército romano fosse má (talvez na Legião fosse particularmente má) - pelo contrário, segundo documentos e pesquisas arqueológicas citadas em Food in the Ancien World, de Joan P. Alcock, os soldados comiam pão, bacon, queijo, frango, guisados com carne, fruta, frutos secos, e bebiam vinho, embora o de menor qualidade. Mas não se pode falar do império romano sem falar de orgias. E orgias não faltam em Astérix entre os Helvécios, sobretudo no palácio de Gracchus Deulhovírus, "o poderoso governador romano de Condate" (Rennes). Aparentemente, a grande iguaria aí consumida eram as tripas de javali fritas em gordura de bisonte. Que ficam deliciosas... com mel. Mas não são o único petisco. Há também, por exemplo, receitas elaboradas, como "morcela de urso e pescoços de girafa recheados".
Quanto a Astérix e a Obélix, nessa história resta-lhes o queijo suíço (Obélix admira-se por este ter tantos buracos), inteiro ou fundido. E, por falar em queijo fundido, há até uma orgia em torno deste tema. Desta vez, na Helvécia (Suíça), no palácio do governador romano Dinossaurus. Aí, "quem perder o seu pedacinho de pão no queijo fundido tem que pagar uma multa! Da primeira vez, recebe cinco bastonadas; da segunda vinte chicotadas; à terceira é atirado ao lago com um peso amarrado aos pés."
Se a aventura na Suíça é um banho de queijo, a descrição de maior sensibilidade gastronómica em todas as histórias é a de Ocatarinetabelatchitchix quando descreve o queijo corso, cujo cheiro deixa os dois gauleses zonzos: "Este perfume leve e subtil, de tomilho e de amendoeira, de figueira e de castanheiro... associado a um aroma quase imperceptível a pinho, um toque de artemísia, um laivo de alecrim e de alfazema... meus amigos!... este perfume... é a Córsega!"
E, como não poderia deixar de ser, os dois amigos vão também, em Os Louros de César, à grande capital gastronómica: Lutécia, que é como quem diz, Paris, onde visitam Homeopatix, o irmão de Boapinta, a mulher do chefe gaulês Matasétix. "É evidente que não tem nada a ver com a comida da aldeia", comenta Homeopatix no início da refeição refinadíssima que serve aos seus convidados, e que inclui "casco de vaca com natas". Insultado, Matasétix lança um desafio ao cunhado: vai servir-lhe, na aldeia gaulesa, um guisado temperado com os louros da coroa de César.
McDonald's? Estão loucos!
E como pode quem tem tanto orgulho nas suas tradições gastronómicas de repente aparecer num anúncio da McDonald's? Foi isto que se perguntaram os franceses, indignados, quando em 2010 a cadeia de fast food decidiu recrutar toda a aldeia gaulesa e pô-la a fazer o seu banquete dentro de um McDonald"s. Tudo parecia normal, e até o bardo Cacafonix estava cá fora, devidamente amordaçado. Mas os franceses acharam a cena tudo menos normal. "Será que o céu lhes caiu em cima das cabeças?", perguntava um leitor de um site de informação citado pelo The Telegraph.
Nem o facto de o slogan da campanha ser Come as you are (venham como são) acalmou os actuais descendentes dos antigos gauleses. Que também não se mostraram sensíveis à defesa dos editores, que argumentaram que tinham anteriormente recusado uma proposta para que Obélix aparecesse num anúncio de Diet Coke, por o produto "não corresponder aos valores da personagem". Pois a McDonald's também não, reagiram os fãs da série. Afinal, os irredutíveis gauleses não resistiram ainda e sempre ao invasor romano para sucumbir ao avanço da fast food americana. Aliás, e para citar Obélix, "uma história que acaba mal é uma história que no fim não tem javalis". Por isso, "amarrem o bardo e tragam o javali!".