Fugas - restaurantes e bares

  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos
  • José Sarmento de Matos

Luigi, o encantador, no mundo dos cogumelos

Por Fortunato da Câmara ,

Um italiano apaixonado por cogumelos não é novidade. Se decide abrir em Lisboa um restaurante dedicado a eles, já é caso para querermos saber mais. Desde Maio que Santa Clara é a “padroeira” dos cogumelos no mercado junto à Feira da Ladra.
O slogan deste restaurante podia ser qualquer coisa do tipo “bem-vindo ao mundo encantado dos cogumelos onde há...” - onde há parte daquilo que a natureza dá. Pois, a realidade é que os exemplares comestíveis de maior valor gastronómico no universo micológico estão dependentes do clima, dos solos, da florestação, das estações do ano, e podíamos continuar a enumerar factores que os condicionam, mas que ao mesmo tempo os tornam fascinantes. O caminho é recorrer às espécies de cultivo, que gradualmente tem aumentado de número graças aos progressos na área da investigação.
 
Ter um espaço inteiramente dedicado aos cogumelos é, portanto, à cabeça um desafio ambicioso e que requer um empenho permanente. Desde logo pela tal inconstância das melhores espécies colhidas em fresco, mas também por ser um produto fracturante em termos de gosto, havendo quem os ignore por completo ou lhes seja indiferente, em contraste com os que prestam aos fungos uma devoção incessante. Eu, admirador confesso, estou nesta última tribo.
 
Foi por esta paixão que Luigi Pintarelli, um vèneto de Vicenza, saiu do mundo do cinema, onde se dedicava ao restauro de filmes, para em Maio entrar numa aventura a três dimensões chamada Santa Clara dos Cogumelos. O restaurante está situado no mercado do Campo de Santa Clara e foi buscar elementos do reino da fantasia, e alguma refinada ironia, para a decoração do espaço. Os cogumelos estão em força na criação de ambiente, interagindo com uma imaginada Santa Clara, radiosa por segurar numa espécie de boleto. Outras figuras e objectos povoam recantos numa alusão temática com um toque humorístico ou sarcástico, como é o caso dos esqueletos na zona dos lavabos.
 
A lista anda basicamente à volta dos petiscos, tendo apenas três pratos principais, entre os quais está um inusitado “carpaccio”, ao qual não foi possível comprovar a robustez para ser encarado como refeição - estava esgotado. Outro prato principal é a “Encarnação de Santa Clara”, um bife de novilho com puré de aipo bola e cogumelos portobello. Nas entradas há um deslocado “gaspacho com pleurotos salteados e bagos de uva”, a tailandesa sopa tom kha hed, cogumelos com chèvre e croquetes de alheira com cogumelos.
 
As provas começaram com a “manteiga com cantarelos e pickles de cogumelos” (4 euros). A primeira muito boa e intensa devido ao uso de cogumelos desidratados, que dão logo um sabor mais incisivo. No caso da conserva, os pobres “agáricos”, vulgo “cogumelo de Paris”, fizeram de “saco de boxe” dos temperos que a mistura levava, sendo autenticamente neutralizados pelo cravinho e o vinagre, que se aproveitaram do facto de alguns cogumelos serem esponjas de sabores, deixando-se dominar sem resistência. Entre os condimentos havia também laranja e estrela de anis, mas ainda assim lá se conseguiu apanhar algum sabor de “lepiotas” e “pleurotos”, que no entanto mostraram pouco resistência ao serem golpeados pelo vinagre.
 
Uma boa e inesperada surpresa foram os “cogumelos de escabeche” (3,50 euros), bastante mais equilibrados de tempero, sem excessos de acidez e até com alguma doçura na cebola, onde sobressaía o aroma anisado da estrelinha “especiada”, mas que não anulou a personalidade forte dos shitake, a servir de defesa ao sabor fumado (por serem grelhados) dos pleurotos e dos portobello (outro tipo de agárico).
 
A ideia de ter “cogumelos panados com molho de iogurte e açafrão ” (5 euros) é interessante mas podia ter sido mais bem conseguida. “Agáricos” inteiros, cortados em quatro ou às metades, passaram pela trilogia “farinha, ovo e pão ralado”, mas chegaram à mesa de mornos para frios. Estiveram previamente numa marinada suave para absorverem sabor (o que resultou), só que infelizmente acumularam água no seu interior, alterando a crocância da fritura ao serem trincados, além de esguicharem! O molho era agradável, embora não acrescentasse relevância, abafando inclusive parte do sabor extra que já tinham conseguido obter durante marinada.
 
Numa decisão espontânea surgiram uns “cantarelos” (7 euros) frescos, dos pequenos e amarelinhos, que haviam chegado há pouco e foram limpos na hora, não obstante ainda se terem sentido algumas areias incómodas em redor dos pedúnculos. Apareceram salteados com alho, um pouco de tomilho e umas inusitadas gotas de limão que os encortiçaram e lhes abafaram o sabor. Fechou-se o arranque com o “The Perfect Egg” (7 euros), que era uma clássica duxelle (cogumelos picados, cozinhados em manteiga, com chalotas e tomilho) à base de portobello, em que o estufado cremoso resultante fazia uma caminha deliciosa ao ovo escalfado, de gema rompante sobre o preparado. No topo, uns espargos salteados e tirinhas de tomate seco.
 
A sugestão do dia eram uns “gnocchis com camarão e cantarelos” (15 euros), que revelaram ser uma espécie de casamento forçado a três, pois a massa vivia bem só com os cogumelos - neste caso cantarelos secos, reidratados -, sem precisar dos camarões a fazerem de bengala e a roubarem a cena aos dois. Os três elementos não ligavam nem brilhavam, mesmo constatando que os gnocchis (de compra) eram de fraca qualidade. Pesados e massudos, quando o que se procura nestes “bolinhos” enfarinhados de puré de batata é precisamente delicadeza e leveza, sem parecer que levam batata. Com uma lista de pratos principais tão reduzida haverá certamente oportunidades para melhorar este ingrediente, não?
 
O ponto alto da noite estava reservado para o “risotto Santa Clara” (12 euros), um dos três pratos principais da lista. Pleno de personalidade, com o bago de bitola média (carnaroli?) bem al dente no centro mas cremoso por fora. Enriquecido com uns pedaços carnudos de boletos e trombeta dos mortos (craterellus cornucopioides) a darem um tom “escuro” e ainda mais intensidade no palato, a que se juntaram umas nozes salteadas e zestos de laranja fritos. As tirinhas da casca trouxeram um necessário contraste acre à exuberância micológica que invadia o prato, embora se tenha perdido alguma da frescura cítrica.
 
Dizer que o restaurante tem uma carta de vinhos é um eufemismo, pois os itens que estão disponíveis contam-se pelos dedos das duas mãos, além de que a oferta é praticamente o catálogo de um só produtor(!) - incluindo o vinho da casa servido a granel. Partindo deste monótono grau zero de diversidade vínica a preços distorcidos, parece-me que melhorar a lista é o mínimo que se pode ansiar para um futuro próximo.
 
As três sobremesas sugeridas apareceram juntas sobre uma base de xisto e feitas sob o signo do mui versátil boletus edulis, trabalhado de maneiras diferentes. A “Tentação de Santa Clara” (4 euros) era um crème brûllée em que a infusão dos boletos desidratados nas natas teve conta, peso e medidas certeiras, para ser docemente terroso e ter consistência firme. Na “Paixão de Santa Clara” (5 euros) um brownie de chocolate ligava na perfeição com uma bola de gelado de boletos muito rico de sabor, graças aos pedacinhos de cogumelos que a guarneciam. Para o “Mistério de Santa Clara” (5,50 euros) foi preciso desvendar as ligações entre uma delicada mousse de laranja, um refrescante e muito bem conseguido “gel” de Lúcia-lima (ágar-ágar), e uma bola de gelado a repousar sobre um soberbo crumble de boletos, feito à base de farinha do cogumelo misturada com açúcar que vai ao forno até ficar crocante.
 
Em Portugal o interesse por cogumelos tem crescido nos últimos anos de forma mais informada. Durante décadas, recolectores particulares dedicaram-se à apanha empírica dos chamados “míscaros” - em geral da espécie Thricoloma equestre, proibida por suspeitas de ser tóxica a longo prazo -, por vezes misturando outras espécies no mesmo cesto com os resultados fatais. A questão de fundo é que, mesmo sendo apreciadores ou apaixonados potencialmente conhecedores, o mundo dos cogumelos deve conjugar sempre a paixão dos curiosos com a supervisão de estudiosos da matéria.
 
A cozinha do Santa Clara dos Cogumelos está dependente da sazonalidade de algumas espécies, mas também da afinação de algumas preparações com cogumelos de cultivo, como as conservas ou os panados, mas também nas ligações com peixes. De referir a estranheza por não haver nenhum prato com “pantorras” (morquella spp), um dos ícones do reino dos fungos.
 
A paixão de Luigi é visível pela forma encantadora como este simpático transalpino fala de cogumelos. Ir ao seu restaurante é como fazer uma saída para os apanhar. Mesmo que não se tenha encontrado os melhores cogumelos, já se fica a ganhar pelo ambiente descontraído e a forma apaixonada como as coisas são feitas. E no mundo duro e cruel da restauração ser apaixonado pelo que se faz vale mais do que uma boa decoração. Ganham os clientes e é feliz o anfitrião.
Nome
Santa Clara dos Cogumelos
Local
Lisboa, São Vicente de Fora, Mercado de Santa Clara, 7
Telefone
218870661
Horarios
Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira e Sexta-feira das 19:30 às 23:00
Sábado das 12:30 às 15:00 e das 19:30 às 23:00
Website
http://www.santaclaradoscogumelos.com
Preço
20€
Cozinha
Petiscos
--%>