Não há memória de grandes restaurantes em Odivelas, mas este Tacho da Memória faz um bom trabalho para ser lembrado sempre que o desejo de fazer uma refeição honesta venha a ser evocado...
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O nome Tacho da Memória poderá sugerir vagamente um lugar onde se tem a imagem bucólica de um tacho a fumegar, e junto a ele alguém a colocar todo o seu saber num cozinhado feito em lume brando e com amor redobrado. Provavelmente imaginar-nos-emos a caminho de um recanto serrano onde nos aguarda uma poética casinha em pedra, de chaminé fumegante. Os aromas voláteis das panelas de ferro irão misturar-se no ar com o vapor das nossas palavras ao ser lançado na atmosfera pelo êxtase com que o cérebro antevê um repasto memorável, nesta tão fictícia quanto gélida tarde de Outono...
Sem querer, por um instante que seja, retirar ao sonho o comando da vida, há que desmontar parte deste cenário romanceado, e referir que o Tacho da Memória é um restaurante situado na Urbanização Quinta da Memória, bem no centro de Odivelas. A designação tem portanto uma origem mais prosaica do que o "postal" inicial fazia supor. Afinal é só mais uma zona urbana de prédios recentes, como tantas outras, em que uma das lojas é ocupada por um restaurante de cariz familiar.
A decoração tenta de uma forma simples e eficaz criar um ambiente acolhedor, conseguindo assim estancar a entrada pelas janelas da paisagem indiferenciada que se vive do lado de fora da porta. Dois lados da sala são envidraçados, enquanto uma das paredes do fundo se apresenta revestida em xisto, onde o relevo ganha destaque pelos focos encastrados de luz indirecta. As madeiras escuras do mobiliário sólido, mas prático, sobressaem ao lado dos tons luminosos dos atoalhados de mesa. Diga-se desde já, que no aspecto do conforto à mesa não há quaisquer concessões a "tendências" do género comer directamente sobre o tampo da mesa. Por aqui, o forro protector, a toalha, o individual e o guardanapo; são todos de pano. Este rigor no aparelhamento das mesas - extensível às loiças, aos talheres e à qualidade dos copos de vinho - não deixa de ser uma espécie de declaração de intenções do nível de serviço que o restaurante pretende ter.
Peixe fresco do dia
Este primeiro indicador de qualidade tem natural repercussão na carta, que além de ser diversificada em matérias-primas mostra logo à entrada, um expositor com vários peixes frescos do dia de aspecto vistoso e cativante. Algumas propostas que se podem encontrar a preços que oscilam entre os 10 e os 12 euros por dose são: Cataplana de tamboril "à pescador" com arroz de açafrão; Filetes de garoupa com arroz de tomate; Vitela à Lafões; Posta de vitela do Gerês; ou Lombos de veado com migas de grelos.
Pratos como as Bochechas de tamboril com migas de grelos e alho ou a Trouxa de bacalhau e camarão em massa filo, parecem estar entre as preferências dos clientes. A ementa recebe diariamente novas sugestões numa lógica de tentar ser abrangente nos gostos dos clientes, como é o caso do Caril de "madres" - onde o curioso nome antevia tratar-se de um trocadilho - e que na realidade era o aportuguesamento da palavra madras, um popular tipo de caril cuja mistura de especiarias surgiu através de ingleses, depois de estes terem chegado à cidade indiana de Madras, actual Chennai, em meados do século XVII.
No que respeita aos trabalhos práticos desta visita o «Pão e azeitonas» (2,80 euros) cumpriram sem reparos. As entradas não firmaram grandes memórias, começando nos Enchidos com cogumelos (6,20 euros), a padecerem da falha habitual de serem cozinhados em conjunto, com os mini champignons a serem de fraca qualidade, e ficando rapidamente à mercê da intensidade do sabor dos pedacinhos fritos de linguiça e farinheira. A ligação entre cogumelos e um enchido, ou um fumado (tipo bacon), é o tipo de casamento que funciona se forem separados à nascença... Ou seja, cozinhados em separado. Em conjunto o resultado só será um pouco melhor se o fungo tiver a personalidade vincada de uns boletos, ou de umas silarcas (amanita ponderosa), não obstante os seus aromas terrosos saírem diminuídos. À falta de outras opções cozinhadas, reincidiu-se numa proteína com o "Salteado de farinheira com maçã" (5,90 euros). Igualmente sem grande história, com o enchido de qualidade regular, a ser aplanado na frigideira sem a pele para libertar gordura, acompanhado por meias-luas de maçã levemente salteadas.
Nos peixes, a montra do dia forneceu a belíssima Tranche de robalo com batata-doce (11,70 euros). O lombo de um vistoso exemplar de aquacultura, de confecção e frescura irrepreensível, vinha cortado em duas tranches sobrepostas nas rodelas de batata-doce estufada, e acompanhada de compota de cebola em vinho do Porto, equilibrada e sem excessos de doçura. À parte uns bouquets de brócolos cozidos.
Um dos ex-líbris da casa é o saboroso Arroz de lingueirão (9,80 euros) servido em tachinho acobreado, generosamente guarnecido de bivalves, com o bago extra-longo num ponto de cocção perfeito, cremoso q.b., malandrinho sem estar aguado. O prato de carne foi a Presa de porco preto com guisado de favinhas e enchidos (10,90 euros) que exibiu o sabor delicado do reco alentejano, com os seis pequenos medalhões suculentos cortados da peça a evidenciarem gordura bem distribuída. Muito bom o guisadinho de favas bebé com cubinhos de bacon e linguiça, que até dispensava as batatinhas que vieram igualmente a acompanhar.
Oferta de vinhos escassa
Serviço afável e esclarecido, mas vulnerável ao volume de clientes nos picos de casa cheia, mantendo no entanto um nível positivo. Na parte dos vinhos, a temperatura do branco servido teve de ser revista (quase à temperatura ambiente), enquanto a do tinto estava adequada. A oferta é escassa, conservadora, com poucos brancos, pouco ambiciosa no vinho a copo (dois brancos e quatro tintos), e que previsivelmente carrega mais na secção de tintos alentejanos. Uma tónica que parece surgir quando se quer, supostamente, jogar pelo seguro em relação aos gostos dos clientes (não percebo porquê). Ainda menos se justifica a fraca oferta de vinhos do Douro ou do Dão (a título de exemplo) quando se tem na lista pratos que pedem a diversidade e o corpo de alguns néctares. Ponto importante a destacar é que os preços são de um modo geral comportáveis.
Na parte das sobremesas há uma ou outra sugestão que foge ao corriqueiro, com a boa particularidade de todas serem produzidas na casa diariamente, mas em pequenas quantidades para estarem sempre frescas, o que por vezes leva a que algumas acabem de forma abrupta consoante o movimento. O Mil-folhas de morangos com creme inglês (3,80 euros) era uma composição de discos de massa folhada entremeados com fatias de morango e o clássico creme de pasteleiro, com a pequena torre formada salpicada com açúcar em pó. Apesar da simplicidade de execução o efeito era vistoso, embora o sabor não surpreendesse, em parte devido à falta de leveza do creme que estava um pouco espesso. A ideia de fazer um Creme de arroz doce com pêra em vinho Moscatel (3,80 euros) parecia interessante mas pelo resultado há melhoramentos a fazer. O sabor de um arroz doce bem feito estava lá, não era é um creme mas antes uma espécie de bavaroise servida num copo, pois a consistência sólida que se "cortava" com uma colher denunciava a existência de gelatina. Metade de uma pêra cozida vinha no topo do "creme", mas o excesso de canela que a cobria abafava a delicadeza do sabor a Moscatel já de si bastante discreto, nas partes do fruto que não foram atingidas pela especiaria. A sugestão do dia era a Mousse de maracujá (2,80 euros), que foi de longe a sobremesa mais conseguida das três. Acidez genuína do fruto sem artifícios açucareiros, e consistência suave e homogénea.
Nota final para uma característica que ressaltou durante o serviço: a franqueza das respostas a algumas questões colocadas, tanto da equipa de sala como do proprietário. A frontalidade de assumir que alguns dos peixes são de aquacultura (mesmo que por vezes se consigam identificar visualmente) quer se trate de um robalo ou de um pregado, ou ainda a indicação de que o maracujá da mousse era obtido a partir da polpa do fruto congelada em fresco, são indicadores de uma forma de estar no negócio que merece ser enaltecida.
Despojando-o de toda a envolvência campestre idealizada no início, ficamos com o lado pragmático deste Tacho da Memória. É um restaurante sério situado numa zona incaracterística como Odivelas, onde não se pensa ir quando se combina um jantar familiar ou com amigos. Para lá do pragmatismo há sempre o sonho, e isso reflecte-se nesta cozinha tradicional autêntica que é feita com rigor, um facto que nos dias que se vivem merece ser louvado.
Nome
Tacho da Memória
Local
Odivelas, Odivelas, Rua Francisco Relvas Marques, 2
Telefone
219331354
Horarios
Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 23:00
e Domingo das 12:00 às 15:00