Depois de umas entradas titubeantes com laivos de aprendiz, a Adega do Fidalgo proporcionou--nos uma refeição de bom nível, à altura desta casa histórica da região da Bairrada. A renovação do espaço deu-lhe ares de tasca “chique”, mas felizmente a fidalguia da mesa portuguesa não pereceu.
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Há lugares que ajudam a “fazer” um restaurante. Seja por se aproveitarem as vantagens de uma localização estratégica ou por terem como chamariz a possibilidade de se usufruir de paisagens privilegiadas ou ambientes exclusivos. Não significa isto que sejam necessariamente bons restaurantes do ponto de vista da cozinha, mas sim interessantes no global da experiência. Por outro lado, também há lugares onde só se vai por causa de alguns restaurantes em particular. Sítios fora das vistas onde se extravasa do circuito principal para ir onde nos leva o coração, que no caso de um gastrónomo passa por orientar a cabeça através de uma memória gustativa, para assim confortar o estômago de forma substantiva.
Tergiversações camilianas à parte: sem “coração, cabeça e estômago”, seria mais difícil alguém deslocar-se à tranquila freguesia da Aguada de Cima, no concelho de Águeda, se por lá não existisse um motivo forte para o fazer, ou melhor, dois. O largo arborizado de Almas de Areosa tem espaço suficiente para a feira mensal que se faz junto à capela, mas também para receber o peregrino comensal que procura em cada lado do terreiro duas moradas de afamada reputação.
Uma delas é a prestigiada Casa Vidal, que há cerca de 50 anos leva muitos a profanarem a devoção de outros à recta da Mealhada. Andam alguns quilómetros para dessacralizar a via e desviam-se dos caminhos rectos da EN 1, para com devoção chegarem a este santuário dos leitões. Do outro lado da rua fica a respeitável Adega do Fidalgo, a ostentar quase nove décadas de existência. Cativa clientes desde os tempos em que era a tasca da senhora Laurentina e tinha os melhores petiscos ali da zona. Hoje é um espaço de aparência moderna, embora dedicado à cozinha tradicional, com destaque para os pratos feitos em forno a lenha. Chegados à Aguada, acaba por ser a boca a dar sentido ao nome da terra, fazendo-nos balançar o palato entre as duas tentadoras propostas.
A “redecoração” recente das instalações da Adega do Fidalgo foi um argumento de peso na escolha final. As mudanças ocorreram em 2011 e deram à sala um ar mais requintado, muito longe da designação de adega. Mesas com poucos utensílios, ficando-se por um marcador, um copo vermelho de vidro fosco e a alvura dos guardanapos de pano são o quanto basta para contrastar com os tons terra da roupagem sóbria que as paredes evidenciam. A iluminação pontual de candeeiros suspensos e umas caixas em madeira natural a lembrarem as do vinho, mas pensadas para serem mesas de apoio, são toques finais de leveza num ambiente que se pretende sofisticado.
A lista oscila entre um pouco dessa sofisticação e as bases da cozinha regional, com especial enfoque na utilização de Carne Marinhoa DOP, certificação originária em gado bovino criado em determinados concelhos da região Centro. Na lista há “carpaccio de marinhoa com Rabaçal”, “massada de marinhoa”, “bife de marinhoa”, ou “costeleta grelhada no carvão”, que são exemplos do que se pode encontrar neste domínio. Noutro registo, as opções podem recair numa “coxa de pato assada com compota de cebola e citrinos” ou na “perna de cabrito do Caramulo grelhada com piripiri”, ficando os domingos reservados para o cozido à portuguesa servido em buffet.
Logo a abrir o serviço fomos informados, e depois questionados, se havia algum problema em sermos atendidos também por dois jovens em formação (que estavam identificados). Um detalhe interessante de saber e que obviamente não levantou qualquer obstáculo, apreciando-se, isso sim, a honestidade e encorajando a nobre arte de servir à mesa, tão necessitada de bons artífices por estes tempos. Diga-se, aliás, que o serviço foi irrepreensível no trato, atenção e profissionalismo, dispensados pelos três elementos da equipa de sala.
A redenção
No “couvert” (1 euro) havia bom azeite para ser imbuído em cubinhos de pão marcadamente “encascado”, feito no forno a lenha da casa. Começaram então a perscrutar-se algumas entradas. Vieram as “enguias em escabeche da beira-mar” (8 euros), eram três e pequenotas - três, repito -, fritas em círculos e agrupadas como se fossem anéis olímpicos, mas aqui em versão low cost, já que as atléticas argolas, de origem, são a “fartura” de cinco unidades. O molho brilhante tipo gel que as envolvia fazia lembrar um escabeche, mas nada de vestígios de alhos ou cebolas no horizonte do prato. A textura gelatinosa do conjunto e a porção diminuta pouco deram para ir além do lado conceptual da apresentação, e ter apenas laivos sensoriais de algo que pretendia ser um escabeche.
Seguiram-se os “mexilhões de Aveiro com coentros” (11,50 euros) com nota de menu a referir ser para degustar “a dois”. Um avantajado e vistoso tacho de ferro chegou à mesa com alguma pompa, mas lá dentro jaziam pouco mais de uma dúzia de bivalves. Uns estavam irremediavelmente fechados, outros mirrados pelo baixo calibre não os ter poupado ao tempo de cozedura, enquanto dos poucos que tinham tamanho médio nenhum tinha as brânquias unidas, ou seja, o miolo inteiro. Só mereceu apreço a qualidade do azeite, mal empregue em tão sofrível preparação, que, diga-se sem rodeios, não devia ter saído da cozinha para vir dar tão fraca imagem de si. O melhorzinho deste intróito foram os “ninhos de ovos verdes em cama de alho-porro” (3,50 euros) onde uma juliana de alho francês frita brevemente para ficar crocante dava o mote à palha do ninho onde repousavam duas metades de ovos recheadas de forma clássica com um picadinho das gemas misturadas com pão, cebola, salsa e pimenta. Este recheio de sabor estimável e toque avinagrado lá deu o seu contributo para melhorar uns singelos ovos cozidos, num conjunto sem grande história e que se ficou pelo correcto.
Dos pratos principais, chegou primeiro a “mão de cordeiro de leite assada no forno” (17 euros), que estava a lascar e muito saborosa, devido ao tempero equilibrado e apetitoso, na companhia de boas batatas assadas e feijão verde, cozido a ponto e resistindo ligeiramente ao dente. Eu diria que esta mão foi providencial ao resgatar-nos das trevas “entradeiras” e devolvendo-nos o ânimo.
Seguiu-se a belíssima “carne marinhoa no forno a lenha” (13 euros), com um tempero rústico à base de colorau e alho que não escondia o excelente sabor da peça. Nas guarnições repetiram-se a batata assada e o feijão verde. Do mar veio o “polvo marinado em ervas aromáticas, creme de batata e favinhas salteadas” (15 euros), com as leguminosas sem pele e em tamanho bebé a serem salteadas e brevemente estufadas com tomate e coentros. O polvo em troços carnudos estava agradável mas a pender para o sal até ao limite do razoável. Ao lado trazia um creme de batata aveludado com o estufadinho de favas no topo.
O epílogo coube à “chanfana à moda da Bairrada” (11,50 euros), um clássico da região servido no típico caçoilo de barro escuro, de sabores profundos e muito aromático. Apesar da demanda para se confirmar na cozinha qual o tipo de carne utilizada, não foi unânime a certeza de estarmos apenas perante a receita com cabra (ou cabrito). A ossatura de alguns pedaços e o notório sabor a borrego deixa-nos dúvidas, no entanto a receita tradicional da Bairrada admite a utilização de carneiro desde que não seja “rexelo” (muito jovem). A acompanhar, batata cozida e de novo feijão verde.
A carta de vinhos apresentada não se alongava muito em opções, atendendo à diversidade da envolvência e à colecção que segundo parece existe na casa. Os vinhos seleccionados denotavam o critério de conseguirem “casar” com os diversos pratos da lista, dada variedade de perfis, e vinham acompanhados por uma ficha de prova com alguns descritores para facilitar a escolha. À parte há uma selecção denominada “amigos da Bairrada”, composta por vinhos da região ao preço do produtor, mas que estão à consignação e onde é cobrada uma desencorajadora taxa de abertura de rolha no valor de 7,50 euros.
Com as sobremesas veio a redenção do mau arranque. O “pudim de cevada com doce de ovos” (3,50 euros) era uma forminha do tipo flan de um delicioso pudim de café de cevada, ladeado por doce de ovos que fazia aqui um contraponto de doçura equilibrado com um resultado muito feliz. O “doce de aletria” (4 euros) era uma porção generosa que se confirmou ser muito gulosa e mais cremosa, com a “pasta” al dente em vez da versão de cortar à faca. O “bolo húmido de laranja” (3,50 euros) também óptimo e copioso, a cumprir em pleno tanto ao nível da textura como de sabor, claro!
Uma refeição que foi do 8 ao 80, onde sobressaiu o grande domínio nas confecções de forno e em que as sobremesas por si só já merecem o desvio.
Nome
Adega do Fidalgo
Local
Águeda, Aguada de Cima, Largo das Almas da Areosa
Telefone
234669501
Horarios
Todos os dias das 12:30 às 15:30 e das 19:30 às 22:30
e Domingo das 12:30 às 15:30