É para lá que subimos, pela Rua de Santa Cruz do Castelo, encaixada entre as muralhas da alcáçova e as ruelas da freguesia do Castelo: a mais antiga de Lisboa, que vive, como habitualmente, entre os turistas e as roupas a secarem nas janelas, portas abertas, gaiolas nas paredes e fado que se desprende de aparelhagens - garantimos que não é (só) cliché. E com um pé no Castelo, que para muitos foi o pátio de todos os recreios. D. Paixão entra antes de nós, cabisbaixa. "O que se passa, está cansada?", saúda a segurança. "Venho só um pouco à esplanada", responde. "A sua amiga já entrou." Vêm sempre, D, Paixão e a amiga, habitantes do Castelo e sem precisar sequer de parar na casa partida - portas escancaradas pelo cartão de residentes da freguesia - enquanto outros confundem a caixa multibanco com a venda de bilhetes.
Da Praça de Armas, D. Afonso Henriques, que conquistou Lisboa em 1147, continua de atalaia ao castelejo, ao paço real e até ao bairro residencial muçulmano, envolvidos aqui pelas muralhas da alcáçova. Começamos pelo paço régio, com as grandes abóbadas restauradas para lá da entrada sob arcos ogivais, onde funciona agora o Núcleo Museológico, feito do espólio encontrado nas escavações feitas aqui. Afinal, é este paço, que já existia em tempos islâmicos, o motivo do destaque de Mário Barroca - a partir de D. Afonso III (século XIII), que transferiu a capital para Lisboa, o castelo passou a ser residência real oficial até que D. Manuel I se mudou para o Paço da Ribeira). E, como tal, foi testemunho de episódios marcantes da história nacional: as comemorações do regresso de Vasco da Gama da Índia, a apresentação da primeira peça de teatro portuguesa, para citar os mais óbvios.
No castelejo, fugimos à tentação da entrada mais fácil - até porque as nossas guias nos dizem que é uma espécie de "remendo", rasgada por motivos pragmáticoturísticos na barbacã. A original fica mais à frente e atravessamos a ponte levadiça sobre um fosso seco para dobrar a esquina impetuosa da barbacã (para evitar transição fácil) e entrar finalmente no "castelo". A música anda no ar - e não é figura de estilo: é a guitarra de Pedro Godinho, um dos músicos "residentes", que nos acompanha pelos dois pátios - enquanto caminhamos pelo adarve, que não se limita à muralha e se aventura sem "trapézio".
Cumpre-se o "cruzamento" central e desemboca-se quase por cima da porta principal, com direito a passagem na "Câmara Escura" da Torre de Ulisses (onde funcionou o arquivo do Tombo), para a experiência de um Big Brother nas ruas de Lisboa com o auxílio do periscópio aqui montado. Segue-se para bingo para chegar à miragem da Torre de São Lourenço, assente já a fugir na encosta inclinada ligada por uma couraça ao castelejo (lógica: permitia a saída da cidade subitamente cercada) e passagem pelas torres da Cisterna e do Paço, antes da Torre de Menagem, num dos extremos da muralha povoada por gatos, vemos agora. Já ajudaram a controlar os pavões tão característicos de São Jorge, agora todos convivem pacificamente: os gatos preguiçam, os pavões exibem-se mais à frente.
Seguimos para o Núcleo Arqueológico e, admiramo-nos, não saímos do castelejo. A única entrada obriga a seguir pelo adarve, uma vez que um parque de estacionamento - para os residentes da freguesia - se implantou entre as duas secções da alcáçova. É, portanto, do alto que vemos a intervenção de Carrilho da Graça que lhe valeu o Piranesi Prix de Rome 2010, que premeia trabalhos de valorização do património arqueológico através de projecto contemporâneo.
Está delimitada por painéis de aço e no seu interior reúne vestígios da Idade do Ferro, das ruínas do Palácio dos condes de Santiago (séculos XV a XVIII) e do período islâmico - e aqui está o destaque: percorremos uma rua do século XI (no final da qual se encontrou uma espécie de "frigorífico" colectivo) e entramos em duas casas, bem preservadas em termos de planta, às quais a intervenção do arquitecto deu sensação de espaço. Ambas se distribuem em torno de um pátio central, com delimitação da zona mais íntima - ainda há restos de estuques decorados (com o "cordão da felicidade": dourado sobre fundo vermelho) e restos do chão de argamassa.
Hoje, uma neblina estendeu um manto suave sobre a cidade. Mas, garantem-nos, em dias limpos vê-se até ao Castelo de Palmela, bem do outro lado do Tejo. Dos terraços nas traseiras da alcáçova, pontuado de canhões onde todos se querem fotografar, espreitamos o casario até ao Terreiro do Paço, o Cristo Rei e a Ponte 25 de Abril. Lisboa é a única capital europeia com um castelo do século XI no seu centro, ouvimos. Que bem lhe fica.